quinta-feira, 26 de março de 2020

Criaturas da Noite


Mais uma noite se aproxima. O generoso dia de sol, lindo e imponente que aquece nossos corpos nesse inverno rigoroso de ventos gelados e cortantes, nos deixa mais uma vez de forma abrupta. Cada vez mais sinto o frio chegar aos meus ossos enquanto meus lábios racham ao sabor do gelado ar que nos toma conta, à medida em que a lua dá boa noite dando despedida ao astro-mor, para mais uma vez desnudar os segredos da noite.

Ah sim! A noite. Cada dia mais soturna e sombria nesses tempos onde a escuridão parece querer dominar, não apenas a paisagem dessa cidade, mas também as almas e corações que nela caem em suas garras. Pois é na noite que encontro segredos, desde os mais pecaminosos, impuros e excitantes que instigam os instintos mais primitivos dos homens, àqueles que permeiam à maldade humana nos remetendo a desvelar diversos mundos sombrios num mesmo lugar. Aqui, nas ruas dessa cidade, vejo com meus olhos, por um raro dom agraciado pelo Senhor, o mundo como realmente ele é perante suas sombras. São nessas ruas que vejo aquilo que outros homens não conseguem ver através de sua simplória natureza. O oculto, o escondido, o perverso, o abominável, o maligno.

Agora é 01:30 da manhã. Hoje, durante o jantar, eu não bebi. Resolvi dispensar minhas habituais duas taças de vinho tinto para que, mais uma vez, por entre a vastidão daquelas ruas frias e escuras eu possa enxergar com a devida lucidez as trevas em sua essência. Dirijo-me ao meu carro devidamente agasalhado e com ele, por mais uma noite, irei ao encontro delas. É preciso, pois é na noite que elas se revelam por completo e quando posso encontrá-las na busca pela compreensão de suas naturezas infames, maravilhosas e ao mesmo tempo horrendas e extremamente corruptíveis, quando não já consumidas por completo pelas trevas. Ah sim, as trevas! A ausência da luz, da razão e da civilidade, em prol dos mais hedônicos atos. E por ela hoje à noite circularei.

Na principal avenida da cidade, em meio à densa neblina sobre o seco asfalto onde pequenos raios de luz a atravessam advindos dos postes de iluminação, vejo as primeiras delas. São andarilhos da noite que andam em bandos, curvados e envoltos a cobertores de lãs baratos, arrastando-se sem um rumo definido, senão apenas movidos e orientados pela constante fome por almas desalentadas como a delas, já tragadas e enviadas ao inferno. São mortos-vivos sem consciência cujas bocas não se pode ouvir um som sequer, adornadas por poucos dentes afiados e feridas abertas. Elas olham para mim girando levemente suas cabeças e arregalando seus olhos sem brilho algum. Mostram suas presas na tentativa de emanar um rosnado selvagem, porém inaudível. Elas me reconhecem de imediato tapando seus rostos com aqueles farrapos imundos apressando seus passos para uma direção oposta à minha e em meio à nevoa elas somem. Volto a acelerar o carro com a mão em meu peito dando seguimento ao meu sombrio passeio noturno.

À próxima alameda todos os semáforos dispostos ao longo de seus cruzamentos piscam de maneira coordenada, num pulsante tom amarelado refletidos na neblina. Assim como as luzes dos postes, apenas a piscadela dos sinais são visíveis. Aquela via está vazia e nada nela me chama a atenção, senão um letreiro luminoso com os dizeres “Hell Station”. Sobre este, vejo uma entrada que dá acesso a uma escadaria. Eu estaciono meu carro a poucos metros e me dirijo ao local, cuja entrada - agora consigo ver com clareza - é guarnecida por um corpulento e alto homem loiro de rosto pálido, vestindo calças jeans e uma jaqueta de couro preta. Ele olha para mim dos pés a cabeça e abre um sorriso malicioso como se autorizando minha entrada da mesma forma como que advertindo meu acesso. Eu desço a escada na medida em que a luz se enfraquece e um som de música eletrônica se intensifica a medida em que a desço. É uma longa escada. Ao seu fim, ainda devo percorrer um longo e largo corredor. Vejo raios de luzes advindos deste corredor ao me aproximar do seu fim. Estou agora numa espécie de bar ou boate com muitas criaturas dançando e entrelaçando seus corpos ao ritmo frenético daquela música. Vejo as criaturas se beijando e logo cessando suas trocas de afagos para que olhem eu passar. Elas me encaram por breves momentos e imediatamente retomam à ardência de seus recíprocos toques. As andrógenas criaturas a minha frente abrem caminho enquanto a passos firmes e constantes por entre elas avanço com a mão em meu peito. Algumas delas ficam imóveis e me encaram, direcionam seus corpos contra o meu em sinal de desafio, abandonando tal postura ao reconhecerem quem sou. Ao fim da pista e ao lado de um balcão de bar atendido por uma linda criatura de cabelos longos lisos e platinados vejo uma porta enorme de ferro. E nela eu bato três vezes quando nela uma portinhola se abre e olhos cor de âmbar me flertam por longos segundos. Sem haver a troca de uma só palavra ela se fecha e imediatamente a grande porta é aberta. E por ela eu passo.

Então me deparo com um grande salão cuja orgia de corpos domina o lugar. Enormes lamparinas com fogo bruxuleantes dispostas nos diversos cantos iluminam aquele ambiente de sensualidade e prazeres proibidos. Um forte cheiro de sangue toma conta de meu olfato na medida em que avanço. Uma mesa está desocupada e nela tomo o assento. Aos meus flancos as demais mesas são ocupadas por demônios de todas as espécies, os quais muitos deles ignoram minha presença e continuam a saborear suas bebidas sanguinolentas em cálices de metal. Na mesa onde estou surge uma serpente em seu tampo que se ergue e se esguia sob meu fronte ressonando seu maléfico silvo. Eu não me movo assim como não demonstro medo. Ela então desliza sobre o tampo e sobre meus braços postos nele, descendo para o chão se distanciando. Mais a frente há um palco onde uma sensual criatura faz sua performance ao som de músicas entoadas por vozes que não identifico suas origens. Aquela criatura feminina, de pele clara e estatura média, veste um vestido sensual branco, onde suas atraentes pernas estão a mostra assim como seus seios por seu formoso decote e pela transparência de suas vestes. Seus longos cabelos cacheados e castanhos emolduram um rosto lindo cujos olhos grandes e vermelhos desnudam sua natureza. Ela se insinua, rebola suas generosas ancas, acaricia seu corpo com suas próprias mãos. Então, ela olha diretamente para meus olhos e deixa sua longa língua bifurcada escorregar até a altura de seu umbigo recolhendo-a imediatamente sob um sedutor e tenebroso sorriso. Um copo de água me é servido pelo garçom, uma criatura demoníaca de pele azulada e pequenos chifres vermelhos com um afável sorriso, demonstrando ser dentre tantas almas amaldiçoadas naquele lugar uma que não ofereceria repulsa, muito menos perigo.

Contemplo aquele ambiente onde pares demoníacos se entregam a prazeres carnais sobre as mesas ou pelos cantos daquele salão. Risadas em tom alto são ouvidas ao mesmo tempo em que gritos de lamúria e desespero também os são advindos de salas sem portas acessadas ao fundo. São almas sendo dragadas por aqueles malditos e arrastadas para aquelas galerias diante da fragilidade de seus espíritos, logo deduzi. Eu termino de beber a água daquele cálice sem medo algum e me dirijo para a saída onde novamente tenho meu caminho aberto com a mão em meu peito por entre desejáveis corpos nus de aspecto feminino deitados pelo chão devido ao constante torpor sexual.

De volta ao meu carro sigo adiante por aquelas ruas cada vez mais escuras e amedrontadoras. Paro num dos semáforos ainda ativos e na esquina contemplo duas formas femininas atraentes, acavaladas sobre um corpo estendido ao chão que parece ser de um homem. Ao perceberem minha presença, ambas olham diretamente para mim mostrando suas bocas babadas de sangue assim como seus salientes e amedrontadores dentes caninos. Uma delas pula por sobre o corpo estendido e vem ao meu encontro batendo fortemente seu rosto contra o para-brisa de meu carro, agora sobre o capô dele. Ela sorri malevolamente para mim acariciando com suas longas unhas o vidro a sua frente num sinal claro de intimidação. Com a mão no meu peito a afasto. Percebo então que, de fato, aquele corpo estendido assediado por aquelas corruptoras criaturas era de um homem, mas que não estaria desfalecido senão a desfrutar de um inexplicável prazer carnal com elas. Os três corpos então retomam à felação e  aos beijos recíprocos.

Sigo em frente quando noto o som trepidante da sirene e a luz vermelha oscilante cada vez mais próxima de um giroflex. É um carro da polícia que me aborda. Dessa viatura policial desce uma criatura aparentando ser um homem negro, alto e caracterizado pela farda policial. Sem trocar uma única palavra ele me encara com seu cenho fechado batendo levemente com o cassetete na janela do carro. Noto seus olhos de cor azul bem claro e uma leve luz fluorescente que o envolve. Ele imediatamente me reconhece, me acena com apenas os dedos médio e indicador abrindo um largo sorriso, retornando imediatamente à viatura que parte em alta velocidade, sem trocarmos sequer uma palavra. Eis mais uma peça do eterno e inacabável jogo de xadrez responsável pelo equilíbrio das coisas no Universo. Sim, nem todas as criaturas da noite são maléficas. Alguns as chamam simplesmente de anjos.

Após mais algumas quadras abaixo, identifico a entrada de um beco. Diminuo a velocidade do carro e vejo ao seu fundo vários vultos sobre a penumbra onde a luz dos postes não consegue chegar. Paro o carro na esquina e adentro a pé naquele lugar. Vejo um pelotão inteiro de criaturas em forma, totalmente alinhados em postura militar de costas para o acesso à rua principal. Diante deles um demônio, quieto e silencioso, também em posição de sentido demonstrando ser o superior daquela horda amaldiçoada. Ao passar lateralmente por eles vejo que não se importam ou simplesmente não percebem minha presença. Observo atentamente a todos eles, todos são iguais: usam uniforme militar, com botas negras de cavalaria e jaquetas de cor cinza de botões fechados até o colarinho. Seus rostos são brancos, porém totalmente enrugados de forma que até mesmo seus narizes e queixos venham a serem imperceptíveis. Não consigo visualizar seus olhos senão apenas por traços em seus rostos que identificariam o local de suas orbitas. São almas enfeitiçadas e iludidas nas quais em certo momento deixaram de lado sua empatia e altruísmo, crendo cegamente nas ordens de seus superiores. Definitivamente escolheram uma suposta virtude equivocada para abraçarem, vendendo de forma barata suas essências de vida e espírito.

Em determinado momento, seu comandante ergue o braço esquerdo com o punho cerrado sendo correspondido com o mesmo gesto por todo aquele pelotão de demônios. Ao baixar o braço, imediatamente as criaturas volvem-se em seus calcanhares iniciando uma marcha silenciosa pelo beco até sua saída acompanhado por seu líder logo atrás. Eles somem pela bruma noturna dobrando à esquerda da via principal. Eu os acompanho na saída do beco a uns 5 ou 6 metros atrás. Ao chegar na saída do beco não mais os vejo. Assim, retorno ao meu carro.

Sinto-me cada vez mais gelado. A hora mais fria da noite se aproxima, 5h da manhã. Arranco com meu carro em direção ao subúrbio da cidade. Na periferia, já longe da estonteante urbanização do centro da cidade, me deparo agora com construções mais simples e iluminação mais deficiente. São casas e prédios baixos em sua maioria, quando espaçadas por terrenos baldios. Num desses, visualizo um grupo de entidades envoltas em túnicas brancas ajoelhadas em circulo de frente para uma imensa fogueira ao centro. Eu paro meu carro eu vou ao encontro delas a passos calmos e lentos. Ao me aproximar delas, de forma sincronizada como num movimento perfeitamente ensaiado, todas se viram para mim demonstrando estarem com máscaras também brancas que cobrem toda a face, todas iguais. Coloco minha mão ao peito e todas igualmente voltam à posição original iniciando um movimento de balanço de seus corpos de modo pendular. Ao me aproximar de uma delas, ela estende sua mão me oferecendo uma caneca de bebida. Noto que sua mão é esquelética, deduzindo que aqueles corpos eram meros esqueletos envoltos em suas mortalhas. São almas perdidas em seus inúmeros arrependimentos tardios, que por algum motivo não mais possuem a capacidade de sentir frio, dor, sabor ou qualquer outra sensação carnal. Recuso a bebida sem precisar trocar palavras e a caneca é passada para a criatura a sua direita que repassa para a outra a sua direita também. Ninguém bebe daquele objeto. Ao fazer toda a volta, o objeto é tomado pela última das criaturas postas naquele círculo que despeja seu conteúdo na fogueira do centro fazendo com que as labaredas dobrem de tamanho em fração de segundos. Logo após, essa mesma entidade joga-se na fogueira sendo seguidas por todas as demais, num gesto claro de desespero para a contenção de suas atormentadoras dores. Em vão. As criaturas retornam da fogueira com suas vestes em chamas e aos gritos, não de dor, mas de aflição, pois nem mesmo o fogo é capaz de acalentar seus tormentos. Elas somem ao longo da rua, dispersando-se  ainda em chamas na escuridão de várias de suas vielas.

Retorno ao meu carro em direção a um dos cemitérios da cidade, a poucas quadras dali, quase nos limites da cidade. Diante do seu portão, paro o carro e nele adentro. Imediatamente identifico várias criaturas, todas elas empoleiradas e acocadas sobre túmulos novos. Suas aparências são de gárgulas, desfiguradas com forma animalesca e selvagem. Ao me verem, algumas param o que estão fazendo e outras não. Estavam à procura de novas almas a disposição, àquelas que ainda não descansam e sequer chegaram ao purgatório, cujos corpos recém foram postos à disposição dos vermes da terra. Ao longe vejo algumas criaturas arrancarem almas das sepulturas envoltas em luzes fosforescentes sob seus protestos na forma de gritos de súplicas. São almas ruins, pessoas más que recentemente morreram. Esses demônios se alimentam dessas que morreram sem arrependimento algum. Uma delas, numa postura de ataque canino e de cima de um jazigo, demonstra querer me atacar. Ao saltar em minha direção, coloco minha mão sobre meu peito. Aquela criatura, assim como todas as demais próximas, corre para o interior soturno do cemitério como um cão ao ouvir um estampido de arma de fogo.

É hora de ir embora. Volto ao meu carro e dou rumo ao meu lar. Basta por essa noite, pois creio já ter visto o suficiente.

- Bom dia Dona Sandra.

- Bom dia Padre Heleno. Mais uma noite de insônia?

- Sim, mais uma noite sem dormir direito.

- Não está sendo fácil parar de fumar, não é?

- É verdade. Minha ansiedade fica incontrolável.

- Mas é tão difícil assim padre? É necessário o Sr. sair nessas madrugadas frias assim?

- Creio que sim Dona Sandra. Ao menos por enquanto.

- Bem, se isso lhe acalma... Mas, não é apenas a ansiedade, não é padre? Tem alguma coisa que lhe chama a atenção na noite. Algo que o Sr. vê, não é mesmo?

- Sim, muitas. Mas acredite, só eu consigo vê-las.

- Como assim, padre?

- Desígnios de Senhor Dona Sandra. Vejo coisas que somente eu consigo ver.

- Mas, por que o Sr. sempre veste sua estola para sair à noite?

- Digamos que, eu me sinto mais seguro.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Meu amiguinho Teddy


Nunca na minha vida eu poderia imaginar que iria estar na situação que estou hoje: “descornado”.

Apesar de tentar falar para mim mesmo de forma insistente essa frase “não dava mais” como um mantra, não consigo esquecer essa desgraçada. Agora que três meses já se passaram, me pego sozinho nessa porcaria de apartamento tentando não pensar nela, em vão. É a quinta garrafa de whisky que derrubo de dois meses para cá. Toda noite um porrezinho, meia carteira de cigarro, lágrimas de saudade e a imagem dela que não sai da minha cabeça.

Alice, que cagada fui fazer! Achei que poderia ficar sem você ou mesmo que você era de fato o problema. Mas não. Agora sinto a tua falta, e pelos cantos durante a madrugada fico chorando com o copo na mão feito um imbecil lamentando minhas burradas. O pior de tudo é que agora é tarde, pois já achou outro cara, outro “boy” como as mulheres adoram dizer, ou como ela mesma disse para suas amigas.

“Boy”, puta que pariu!.

Minha única ligação com a Alice agora é você Teddy, capetinha Yorkshire. Quando que iria imaginar que tua companhia seria meu alento nessas longas noites? Mesmo após ter detonado uns quantos pares de tênis meus, sem falar do último controle remoto da TV que você comeu inteirinho. Agora somos nós dois, cachorrinho. E, nem meu, eu posso dizer que você é, pois ainda tenho que dividir a sua guarda com Alice. Bem, ao menos foi esse o subterfúgio que usei para poder continuar a vê-la, mesmo que por uns minutos quando ela vem te pegar ou te devolver. E quantas vezes já propus a ela para que eu o levasse a sua casa, mas acho que ela não quer que a veja com seu novo... boy. Puta que pariu!

- Que situação hein, Teddy? Agora aqui, deitado na cama, e conversando com um cachorro sob meu abdômen, pois é o que me resta. Olha para mim e me diz Teddy, o que eu faço com essa minha porcaria de vida?

- Bom, para começar tem que parar de chorar feito uma menininha.

De onde veio essa voz?

- Teddy, chega pra lá. Deixa eu... Quem tá falando?

- Sou eu o vacilão!

- Teddy?

- Não, o travesseiro. Claro que sou eu o imbecil.

Ai meu Deus. Acho que tô a um passo do alcoolismo.

- Viu só Teddy, já estou ouvindo você falar, ah ah ah.

- Por que você trocou o Jack Daniel’s por Natu Nobilis. A grana tá tão curta assim?

- Não é que fui ao mercado e só achei.... Teddy?! É você mesmo?

- Não o mané, já disse que é o travesseiro. E aí, vamos conversar ou não?

- Ma..mas, como isso é possível?

- Assim, um fala e outro escuta. Que tal?

- Teddy?!....

- Sou eu porra! Só porque sou um Yorkshire acha que eu só serviria para cagar, mijar e empatar a foda de vocês?

- “Empatar foda”?

- É, não era do que você me chamava quando estavam transando e eu pulava na cama e lambia a cara de vocês? “Empata foda”, Ah ah ah,! Cara, como era divertido ver você ficar puto comigo. Mais divertido ainda quando você ia tentar me pegar e eu ia para baixo da cama. Ah ah ah.

- Meu Deus, não tô acreditando. Não sabia que essa porcaria de bebida dava alucinações. Agora estou eu falando com meu Yorkshire.

- Seu não, de vocês dois. E Natu Nobilis não dá alucinação, dá dor de cabeça. É ruim mesmo.

- Tá bem. Vou fazer de conta que isso tá acontecendo. Talvez eu possa ouvir uns conselhos seus então...

- Isso, vai sendo sarcástico. Mas lembra de que é você que está na fossa, não eu! Seguinte, vamos ter que agir.

- Ã..., er...Bem. Tá certo.

- Tá a fim de ouvir o que tenho a dizer ou não?

- Ca...claro.

- Beleza. Seguinte, bateu fome, traz um rango pra mim. Pode ser aquele petisco sabor salmão.

- Ta..tá bem. Vou pegar.

- OLHA, NÃO COMPRA MAIS SABOR DE FRANGO. JÁ ENJOEI.

- NÃO GRITA CACHORRO INFELIZ. ALGUÉM PODE OUVIR.

- NINGUÉM VAI ENTENDER. FICA FRIO.

- Toma aqui!

- Valeu. Glop glop... isso é que é comida! Depois lembra de trocar a água do meu pote. Faz mais de semana que você só bota água e não troca. Tá com gosto da minha baba.

- Tá bem!

- Bom, vamos aos fatos. O lance é o seguinte, você foi o maior mané, vacilão e trouxa. Poderia estar numa boa mesmo sem a Alice, mas prefere ficar nessa bad aí. Cara, até a gostosona da Larissa deu bola e você nem as horas...

- Que Larissa?

- A mina do Pet Shop. Aquela bunduda. Ô meu, que filé!

-Teddy! Como você sabe disso?

- Ela só falava de você durante o banho. Aliás, isso é uma coisa que daqui a pouco vamos negociar. Essas porcarias de banho.

- Ah cara, você sabe. Não consigo tirar da cabeça a Alice, então nem olho direito para outras...

- Eu sei, eu sei. Por isso resolvi ter um tête-à-tête contigo. Vamos bolar um plano para consertar tudo isso.

- Como assim?

- Negócio é o seguinte: o cara que tá com ela é o maior babaca, um idiota de marca maior. Ô meu, você não tem noção. Acredita que ele implica com a Alice porque ela bate a colher na borda da panela quando cozinha?

- Sério isso? Mas ela nem gosta de cozinhar...

- É, as coisas mudam. Ou talvez você de tão trouxa não percebia isso.

- Será?

-Aham. Dentre outras coisas. A principal e mais importante de todas é que ele não topa com a minha cara e nem eu com a dele. Já tomei uns três chutes dele que quase me machucaram seriamente. A Alice não viu nada disso e estou de saco cheio desse cara.

- Ele te chutou? Aquele filho da p...

- Calma! Você não tem o que fazer. Até porque ela não iria acreditar que o Yorkshire de vocês fala. Se liga né meu.... Depois, em segundo lugar é o fato de que ela não te esqueceu.

- Como sabe disso?

- Molezinha. Volta e meia ela me pega no colo e me leva pra cama. Aí pega o celular e fica fuçando no teu Facebook. Claro que não vai encontrar nada de novo porque você é um mané, bonitão e sarado, mas que fica choramingando e não é capaz de pegar ninguém e....

- Dá um tempo o cachorro de merda!

- Foi mal, foi mal... Bom, mas aí um desses dias eu a vi revirando teu Facebook e quando vi ela começou a me apertar e a chorar. Então, a dedução é simples.

- Sério isso?

- Pode crê magrão! Então, achei que tava na hora de eu entrar em campo. Sabe, o inverno vai chegar e dormir no meio de vocês é tudo de bom.

- Vira-lata interesseiro.Ah ah ah.

- Yorkshire, por favor!

- Muito bem. Qual é o plano?

- Seguinte: eu bolei quatro etapas. A primeira depende só de você. Tem a segunda que é por minha conta, a terceira e a quarta... são com você também. Portanto, a primeira vai consistir em você mudar alguns hábitos e algumas posturas. Não adianta fazer nada se você não estiver preparado para segurar a onda. Não pode ser como antes.

- Como assim?

- Cara, eu sei que você gosta de ler e tal, mas não pode ficar seu tempo todo livre mergulhado em livros. Olha, eu curto os seus livros, tipo aqueles do Conan Doyle e do Alla Poe, mas você tem que dar mais atenção para ela. Tem que fazer coisas que ela gosta também, como um barzinho de vez em quando, um motelzinho.... Isso se der certo o plano e vocês voltarem, claro

- É, já notei isso. Nem sempre o que me agrada agradava a ela. Então, realmente, acho que eu deveria... Espera aí? Como pode um cachorrinho que nem você saber  o que ela gosta ou o que leio?

- Bom, primeiro porque ela vive falando essas coisas para as amigas dela, aí sou forçado a ouvir sempre a mesma historinha. Segundo, porque manjo de leitura labial. Você não sabe ler sem mexer os lábios. Li junto contigo seus livros só olhando para os seus beiços enquanto os lia. Puxa, me lembrei quando leu aquele último do Umberto Eco. Putz, que livro chato...

- Teddy?!

- Ainda bem que parou de ler Schopenhauer. Tava me dando um nó na cabeça e não entendia porra nenhuma. Cara, odeio filosofia!

- Teddy?!

- Viu, deixa eu te sugerir uma coisa. Que tal começar a ler em voz alta comigo? Cansa ficar olhando para a tua boca toda a hora.

- Teddy?!

- Vai só ficar falando “Teddy, Teddy, Teddy”? Que coisa chata....

- Tá bom, tá bom... É que é uma novidade pra mim você estar assim...

- ...falando.

- É! Meu Deus, tô ficando louco...

- Tá não meu velho. Relaxa. Deixa eu te contar outra daquele carinha: é o maior porcão. Esses dias chegou lá em casa numa paulada de bêbado e numa chubasa do caralho.

- “Chubasa”?

- O combo “chulé, bafo e asa”. Cara, a Alice botou ele pra correr, não dava pra aguentar a caatinga. Foi assim que eu vi a primeira decepção dela com ele. Ela nem quis dar pra ele naquele dia.

- Vai tomar no cu, seu merdinha!

- Ah, cai na real! Olha só, aí comecei a investigar mais. Teve um dia que eles estavam transando e...

- Teddy, dá um tempo!

- Quer ouvir ou não?

- Tá, fala!

- Aí eles estavam transando e fui fuçar nas roupas dele e peguei sua cueca que tava jogada no chão. Foi aí que plantei a primeira sementinha do mal. Eh eh eh.

- Como assim?

- Tinha uma baita freada de bicicleta na cueca dele. Levei a cueca pra cama e larguei na cara dela. Ela viu aquilo e ficou toda sem jeito. O cara queria me matar na hora.

- Ah ah ah. Sério?

- Tô te falando brother! E tem mais: ele é fake!

- Fake?

- Sim! Precisa de azulzinho pra funcionar, senão o pinto dele fica meia bomba. No bolso da calça dele sempre tinha uma cartela. Contei quantos comprimidos tinha antes e depois do sexo deles.

- Não tô acreditando...

- Sério. Nada contra, pois sei que as vezes você também usava com ela.

- Teddy?!

- Para com isso. Sem stress, as vezes tem que usar mesmo pra não dar fiasco. Não lembra da vez que você encontrou um azulzinho dos seus no chão? Fui eu quem tirei da cartela. Dei umas lambidas e fiquei doidão.

- Foi aquela vez que você não recolhia mais seu pinto?

- Sim. Isso é outra coisa a negociar depois.

- Eh, eh, eh. Teddy, você é sensacional!

- Eu sei, meu querido. Ah, tem outra. O cara é o maior sem-vergonha!

- Como sabe disso?

- Durante uma transa deles peguei o celular dele. Acessei o Whatsapp dele e estava cheio de galinhagem com umas biscates.

- Como você fez isso?

- Peguei a manha. Eu o fiz ver que estava com o celular dele na boca, lambi o sensor de digital para deixar todo melecado, então ele só conseguia acessar digitando a senha. Foi quando a roubei. Depois eles estavam deitados e eu acessei. Foi barbada.

- Teddy, você é incrível!

- Eu sei meu querido, não precisa me bajular. Bom, a parada é a seguinte: ela já está de saco cheio dele, então só falta um empurrãozinho. Vou fazer isso na próxima transa deles. Deixa pra mim! Depois você entra com a terceira e a quarta fase do plano. A terceira você vai ter que causar ciumes nela.

- De que jeito?

- Usa a imaginação. Bota essa cachola pra funcionar. Você sabe que ela é ciumenta. Além do mais, quando ela sentir ciúmes de você novamente, já era: peixe fisgado!

- Tá bem. Vou pensar em alguma coisa. E a quarta?

- É levá-la para sair. Tenho certeza de que ela vai topar.

- Mas ela tá com o cara!

- Depois que eu entrar em campo, tudo vai mudar meu velho, fica gelo. Mas antes de tudo...

- Antes de tudo o que?

- Vamos negociar.

- Negociar? Tá bem, quais a condições?

- Em primeiro lugar: banho só com a gostosa da Larissa e no verão. Nada de banho no inverno. Cara, vocês nem me deixam ir direito pra rua, pô! Eu nem fico sujo.

- Combinado!

- A segunda é a seguinte: nada de castração. Esse papo de que eu vou viver mais e que não vou ter doenças e tal não cola. Já faz um tempo que vocês diziam que iam me ferrar e não tô a fim de perder minhas bolas.

- Tá bem!

- A terceira: quero sempre uns pedacinhos de carne dos churras que você faz. Enche o saco só ração. Já melhorou com aqueles petiscos de salmão, mas nem se compara com carne né. E quero entrecot!

- Teddy?!... tá bem.

- E por último: sabe a Tifany? Aquela cadelinha Yorkshire do 302? Quero dar uns pegas nela.

- Mas como eu vou fazer isso? Ela até castrada é!

- Não sei. Te vira! Ela é castrada, mas tem pepeca. Lembra quando dei umas lambidas nela no jardim da frente do prédio a um tempo atrás? Fiquei locão e ela também.

- Tá combinado. Mas como vai fazer pra dar o tal empurrãozinho?

- Na próxima transa deles. Quando estiverem trepando, vou morder a bunda dele. Vai doer, tanto pra ele quanto pra mim, porque vou levar um pau. Mas aí vai ser a gota d’água para ela. Você sabe o quanto ela me ama e, como já disse, ele me detesta. Já deixou bem claro para ela isso várias vezes, e ela não gostou nadinha.

- Tá bem Teddy!

- Agora vamos dormir. Não aguento esse teu bafo de whisky vagabundo e você tem que trabalhar. Vai, deixa eu dormir de conchinha aí....

No outro dia...

Meu Deus. Que sonho mais louco! Então, passei a noite inteira conversando com meu Yorkshire. Só eu mesmo!

- Bom dia Cassiano.

- Oi, bom dia Alice.

- Desculpa a demora, mas o trânsito tava horrível e...

- Não, não! Sem problemas. Aproveitei o tempo de sua espera para ler um pouco com o Teddy aqui no colo. Tá um dia bonito e resolvi trazer um pouco ele aqui fora no parquinho.

- Sim, tá um dia lindo. Que coisa engraçada, é impressão minha ou você estava lendo para o Teddy?

- Na...não! É que eu vi na internet que, lendo em voz alta a gente assimila mais rápido o conteúdo. Então estou praticando.

- Ah, entendi. Muito bem, vamos então Teddy? Vamos caminhando com a guia, para você se exercitar um pouco.

- FICA FRIO O VACILÃO, VAI DAR TUDO CERTO!

- Alice, você ouviu isso?

- Sim! Não sei por que motivo, mas o Teddy passou a dar uns latidos diferentes de uns tempos pra cá.

Ou eu ainda estou bêbado ou esse cachorro fala mesmo? Bem, mais um final de semana sozinho, sem ninguém, nem mesmo meu amiguinho Teddy. Se aquilo tudo foi um sonho ou não, só sei que passei a gostar mais daquele fedorentinho.

Dois dias depois...

- Alô! Como vai Alice?

- Oi Cassiano. Pode falar?

- Sim, claro!

- Então, Cassiano, preciso te contar uma coisa. É sobre o Teddy.

- Aconteceu alguma coisa?

- Sim. O Anderson se irritou com ele e... chutou ele pra valer. O pobrezinho voou contra a parede.

- Não acredito nisso! Mas que filho da...

- Sim, é um filho da puta. Mandei ele a merda, não quero mais ver ele na minha frente. Mas não se preocupe, ele está na clínica do Pet Shop, foi examinado, mandei fazer raio-x e ultrassom, não tem nenhuma lesão grave, só está um pouco amoladinho. Ele vai ficar lá em observação. Ai Cassiano, me perdoa. Se eu soubesse que isso iria acontecer...

- Calma Alice, tá tudo bem. Se você disse que ele está bem...

- Sim, nosso fofinho está bem. As meninas do Pet Shop  inclusive se propuseram a ficar com ele hoje e amanhã para observação na casa delas. Só não sei se deixo aos cuidados da Sofia ou da Larissa.

Quem sabe agora? Hora de fazer um "ciumezinho".

- Olha, eu acho a Larissa muito legal e atenciosa, seria uma boa deixa-lo com ela. E, se quiser, posso busca-lo amanhã.

- Ah, bem,... pode ser. Por falar nessa Larissa, eu sei que não é hora, mas... Posso te perguntar uma coisa?

- Sim, claro?

- Você andou pegando ela?

Bingo!

- Quem? A Larissa? Por que essa pergunta agora?

- Porque ela não parava de perguntar de você quando levei o Teddy. Primeiro, veio com o papo perguntando se a gente realmente tinha se separado. Depois, quando eu disse que sim, nem disfarçou mais.

- Desculpa Alice, mas agora quero saber do Teddy. E acho que não teria problema algum se tivesse algo com ela, não é?

- Tá bem, desculpe. Fiquei muito nervosa e confusa com o que aconteceu.

- Se quiser, podemos conversar melhor. Tem compromisso hoje? Não quer comer alguma coisa comigo?

- Ah, pode ser. Acho que vai ser uma boa a gente conversar um pouco. Você andou mudando de habitos? Nunca gostou de sair.

- Talvez.

- Com a Larissa?

- Nossa! Que isso?

- Desculpe, não tenho esse direito. Me pega em casa?

- Sim, te pego as oito da noite.

- Tá, te espero.

Cinco dias depois...

- Boa tarde Dona Francisca!

- Boa tarde Cassiano!

- Dona Francisca, eu soube que a Sra. vai fazer uma excursão com o grupo de idosos do bairro por uma semana, mas não tem com quem deixar a Tifany.

- Sim é verdade.

- Bem. Se a Sra. quiser, ela pode ficar lá em casa...


domingo, 15 de março de 2020

Mudança de planos



Eram 8 horas da manhã de uma quarta-feira quando eu e Eliézer tomamos rumo à capital. Confesso que estava nervoso, meu compromisso junto à matriz da empresa prometia muitas mudanças em minha carreira profissional. Eliézer, embora me acompanhando, tinha outras agendas profissionais, todas elas de cunho técnico e operacional. Eu, no entanto, Gerente de Projetos, partira sob a expectativa do anuncio de mudanças em nossa empresa, daquelas onde tudo se podia esperar.

- Tá nervoso cara?

- O que tu acha Eliézer?

- Mas, afinal de contas, o que vai rolar nessa reunião?

- Sinceramente eu não sei. O que sei é que será apresentada a todos os gerentes a nova diretora. Dizem que ela é boca-braba. Não é brasileira, veio a peso de ouro e o que se promete é mudanças pesadas na estrutura da empresa. Acho que cabeças vão rolar.

- Como assim?

- Não sei direito cara. A ideia pelo que sei é um choque de gestão. E esse pessoal quando vêm, não quer saber se quem está é bom ou ruim. Eles montam o time de trabalho deles e ponto final.

- Quer dizer que pode sobrar pra ti?

- Sim! Para todos os gerentes que estão no quadro hoje. Ninguém sabe quais são as ideias ou a filosofia de trabalho dessa mulher.

- Então é uma mulher que vai assumir a bronca toda?

- Sim, é o que andam dizendo.

- Me disseram também que é um mulherão. Que é bonita e gostosa.

- É o que dizem. Mas parece que, com ela, o furo é mais embaixo. A fama dela é de durona.

Eliézer, de fato, não tinha entendido de forma aprofundada minha preocupação. Eu estava aflito. Por esse motivo que, por todo o trajeto de mais de 4 horas, eu ficara quieto e pensativo. Durante toda a viagem, Eliézer sempre tentava puxar conversa abordando assuntos amenos como música ou mesmo sobre as colegas gostosas da empresa. Eu não conseguia prestar atenção direito, afinal, na tarde daquele dia, pelas 16 horas, teria uma reunião onde todo um esforço de mais de 4 anos de atividade na empresa poderia ir por água abaixo.

Estava sendo uma viagem tenebrosa. As fofocas sobre a fama da tal nova diretora já haviam sido pulverizadas pelas mais de vinte filiais da empresa. A nossa filial, antes a matriz, concentrava boa parte dos setores corporativos, inclusive o qual eu respondia. Muitas críticas haviam sido feitas sobre a condução de vários setores, inclusive o meu. Não era à toa que eu estava apreensivo sobre o que e a quem seriamos apresentados.

Chegando à matriz situada na capital por volta do meio dia, fomos cumprimentando colegas e gestores locais e de outras filiais, todos eles convocados para a fatídica reunião das 16 horas. O clima estava tenso. Todos queriam saber quem era a nova diretoria e saber mais sobre sua fama, tanto no caráter profissional quanto no pessoal.

Ah sim. Os machões linguarudos de plantão não dispensaram a oportunidade para especular sobre a mulher que iriamos encarar. “É uma bela coroa... um mulherão... ela é linda... muita areia para o nosso caminhãozinho... é outro nível... não é para qualquer um... no mínimo é mal amada pra ser durona desse jeito que falam...”. Enfim, o que realmente sabíamos é que o nome dela é Nadya e que não é brasileira, mas russa. Morava no país há mais de 4 anos e que fora contratada através de agência headhunter, uma profissional de peso e com valor no mercado, pois foi prospectada com rigorosos critérios de seleção aplicados.

Nadya Nemerov. Esse é o seu nome, tão peculiar quanto misterioso. E não menos sombrio, conforme eu iria descobrir em breve. Na primeira vez que a vi, já estando na matriz e logo após o almoço, deduzira ser ela de longe no corredor principal, cercada dos membros do conselho, gerentes corporativos e outros puxa-sacos de plantão. Aparentemente uma mulher discreta, de postura sóbria e recatada, porém não menos bonita, ao contrário, via-se uma beleza contida em seu visual. Estava vestindo um jeans colado que desenhava suas curvas e grossas pernas torneadas valorizadas por sapatos de salto alto e já com a camisete e jaqueta de empresa, demonstrando já fazer um pequeno esforço de ambientação junto ao novo ambiente empresarial. Embora num cargo executivo, a apresentação aos membros com altos cargos ainda denotava a necessidade de ser relativamente despojada. Tinha cabelos escuros e aparentemente longos, porém amarrados num coque sobre a cabeça além de uma franja bem aparada que se deitava quase na linha dos olhos. Estes eram negros, contrastando com a alvidez de sua pele e suas maçãs do rosto levemente rosadas, demonstrando os claros traços eslavos de sua procedência, senão apenas por seu rosto com lábios finos e queixo bem delicado, ao contrário do estereótipo das mulheres do leste europeu de rosto levemente arredondado e traços rústicos. Não pude vê-la de outro ângulo, sem conseguir admirar como seria o desenho de sua bunda, um desejo normal dentre os homens. Ela era, acima de tudo, enigmática. Não demonstrava arrogância ou empáfia, mesmo que em momento algum tivesse a oportunidade de ver seus dentes através de algum suave sorriso. Em momento algum demonstrou tentar uma forçosa ação de simpatia para com seus novos comandados ao mesmo tempo em que mantinha uma postura de proximidade com todos a sua volta. Sim, sua imagem de mulher exótica me chamara a atenção, mas não a ponto de se tornar uma obsessão sobre sua pessoa, pois sabia que em breve a conheceria um pouco melhor, mesmo que sua presença expressasse relativa intimidação.

Já pelas 16 horas não estava mais na companhia de Eliézer estando esse já comprometido com sua agenda operacional, enquanto eu e os demais gestores éramos convidados a nos deslocar para o auditório da empresa a fim de sermos apresentados à nova diretora: a primeira CEO da empresa. Estavam naquele espaço os membros do conselho juntamente com os demais principais gerentes. Um dos conselheiros inicia a reunião apresentado Nadya como sendo uma profissional prospectada no mercado com atuação profissional em diversas empresas internacionais e nacionais descrevendo brevemente seu currículo para todos os presentes. Em momento algum Nadya se pronuncia, tampouco demonstra empatia quanto às saudações ou demais exclamações a seu respeito. Um traço da personalidade fria das pessoas do leste europeu, deduzi eu. Aos poucos também ia fazendo minha leitura a respeito daquela mulher. De fato, era uma beleza exótica, definitivamente advinda de terras longínquas às que as nossas, como se viesse de um livro ou filme europeu. No entanto, sua obscuridade só aumentava aos meus olhos, pois ainda sequer ouvira sua voz, o que me deixava mais inquieto quanto suas intenções como nova diretora. Não conseguia vê-la como uma mulher comum, nem mesmo nas vãs tentativas imaginativas de cortejá-la, pois demonstrava uma superioridade de personalidade que assustava. Sim, definitivamente era uma mulher que assustava os homens que dela se quisessem se aproximar.

Durante a reunião, Nadya se pronuncia tentando de certa forma acalmar a todos os presentes dizendo que, embora mudanças radicais e enérgicas sejam necessárias, a maioria dessas será gradual e com transições bem definidas. Ou seja, não seria o fim do mundo, embora muitas coisas devessem mudar.

Ao se encerrar aquela breve reunião de apresentação de Nadya, fomos informados que teríamos no dia seguinte outra reunião, agora de trabalho realmente, mais longa e com o objetivo de realizar definições. A todos os convocados foi enfatizada a necessidade imperativa de participação, sobre o risco de...” ficarem para trás”. Não seria uma boa hora, realmente, pisar na bola e faltar uma reunião como daquele tipo.

Saindo da sala de reuniões, procuro por Eliézer e, ao encontrá-lo o questiono sobre o andamento de sua agenda: tudo feito. Desse modo, nos deslocamos ao hotel conveniado da empresa onde todos os demais colegas estariam hospedados devido ao evento de apresentação da nova diretoria. Dividimos o mesmo quarto, nos instalamos devidamente com as bagagens e relaxamos um pouco em nossas camas após um banho cada um, para depois descermos ao bar do hotel para uma cervejinha, algo tradicional em nossas viagens de trabalho. Vestimos roupas confortáveis e casuais. Vesti uma camisa branca com as mangas remangadas, uma bermuda jeans e sapatos mocassins.

Já no bar do hotel, Eliézer me pergunta:

- E aí meu, como é a mulher?

- Cara, se eu te contar que sei menos dela do que antes da reunião...

- Como assim?

- Ela é estranha. Misteriosa. Vou te dizer: ela me deu medo.

- Sério?

- Sério.

- Tá, eu vi ela passando no corredor. Mas é um mulherão né?

- Ah sim, isso sim! De encher os olhos. Mas, vou ser sincero: muita areia para o nosso caminhãozinho.

- Acredito. É bom nem se aproximar. A legítima chave-de-cadeia.

- Exato!

E caímos na gargalhada.

Voltei a comentar sobre Nadya, mesmo sem de fato ter muito o que falar dela. Ainda sobre o balcão do bar, onde estávamos apenas eu e o Eliézer, começamos a falar sobre trabalho, nos detendo a avaliar as atividades de Eliézer nas quais sou o supervisor direto. Achei inclusive estranho o fato de estarmos apenas nós dois no bar, uma vez que vimos o hotel cheio e muitos colegas nossos da empresa estarem hospedados ali. No entanto, aparentemente apenas nós dois descemos de nossos quartos para relaxar no bar ou mesmo fazer uma refeição, a menos que todos os demais teriam ido jantar fora do hotel, algo improvável.

Já eram 21 horas. Entre uma cerveja e outra, eu e Eliézer conversávamos, alternando os assuntos entre trabalho e amenidades. Eliézer, como sempre, tentava suscitar o assunto sobre Nadya, pois adorava falar sobre mulheres, coisa que, infelizmente, não tinha muito o que contribuir, pois como já tinha dito a ele, Nadya passou a ser um belo mistério para mim, o que em determinado momento reconheci ser uma atrativa curiosidade.

De repente, a quantidade absurda de cerveja que tomáramos começa a fazer efeito a Eliézer, que anuncia dirigir-se ao banheiro para se aliviar. Ele então salta da banqueta do balcão em direção à porta do banheiro do bar onde desaparece.

Não havia se passando nem mesmo um minuto da ausência de Eliézer, ao longo no corredor do hotel avisto em direção ao bar um vulto diante do faixo de luz existente. Era apenas um vulto, uma delineação sombria que a fraca luz dos refinados abajures dispostos sobre aparadores desenhava ao longo daquele corredor com decoração clássica composto ainda com espelhos, quadros e vasos floridos. A imagem de uma sombra com contornos nitidamente femininos que, a medida em que se aproximava, deixava mais nítido o seu reconhecimento. A aproximação de uma mulher, não tão alta, de calçados baixos, uma calça legging cirre preta e um camisão branco despojado com os dois primeiros botões abertos exibindo um decote lindo ainda desenhado por pequenos detalhes de sua lingerie preta que contrastava com sua pele clara além de um colar cujo pingente era um pequeno disco dourado. Aos poucos vou reconhecendo aquela mulher que se aproximava, quando finalmente consigo ver nitidamente seu rosto, agora emoldurado por longos cabelos negros escorridos até a altura de seus seios e por sua já reconhecível franja bem aparada até a altura das sobrancelhas. Sua boca de lábios finos agora mais valorizada por um batom roxo não restavam mais dúvidas de quem seria. Nadya.

Claro, Nadya também estava hospedada no mesmo hotel do qual nossa empresa tem convênio. Não era motivo de surpresa em encontrá-la naquelas dependências. Logo imaginei que estivera ali apenas de passagem aguardando mais alguém do alto escalão da empresa a fim de conduzi-la para um jantar com o resto da patronagem num restaurante para executivos da capital. No entanto, exatamente naquele momento e naquele ambiente apenas três pessoas eram vistas: eu, o barman e Nadya. Eliézer fora no banheiro e ainda não voltara e logo passei a imaginar a surpresa que ele teria logo ao vê-la no bar ao mesmo tempo em que ficaria curioso de como ela iria trata-lo, pois poderia ter uma noção mais clara de sua personalidade junto aos demais funcionários da empresa de cargos menores.

- Boa noite. Tem alguém nesse lugar?

- Olhei para a banqueta ao lado na qual Eliézer ocupara e não identifiquei nada que dissesse estar sendo ocupada. Ele levara suas coisas nos bolsos e sua garrafa de cerveja, já vazia, havia sido recolhida pelo barman. Eu não tive opção quanto a resposta. Ela foi automática dita por minha voz trêmula.

- Não. Fique à vontade.

Meu Deus!

Fazia muito tempo que eu não tinha aquela sensação. Uma mulher que simplesmente me deixa sem ação, completamente constrangido, mesmo sem haver motivo aparente. Eu simplesmente não sabia como me comportar, não saberia o que falar, nem mesmo para que direção olhar. De fato, era uma mulher como muitos disseram: deixava os homens próximos incomodados, encabulados e com medo. Diante daquela situação. Eu não sabia direito o que fazer.

“Cadê o infeliz do Eliézer?”. Pensava eu.

Então Nadya senta-se na banqueta, debruça-se sobre o balcão empinando sua bunda. Ainda não tive a oportunidade de “avaliar’ aquele material e creio que não conseguiria pois o camisão impedia. Ela então toma meu copo na mão sem ainda olhar para mim diretamente e pergunta:

- O que está bebendo?

- Cerveja – respondi.

Então ainda com meu copo na mão apanhado com uma liberdade que já me chamou a atenção ela me encara. Nesse momento, finalmente consigo com mais clareza apreciar aquela beleza única que parecia ter saído de um filme de suspense. Seu nariz era lindo, fino e pequeno e seus olhos negros nos quais mal podia identificar suas pupilas. Para acentuar aquela beleza obscura ela ainda tivera o cuidado de usar um delineador entorno dos olhos. A pele de seu rosto era clarinha, não conseguia notar nenhuma imperfeição, nenhuma mancha ou sinal. Comecei a perceber a quão bonita era aquela mulher, agora não tão alta por não estar usando salto alto, como quando a vimos pela primeira vez na empresa, e por estar com aquelas calças legging cujas coxas demonstravam-se mais grossas que antes, ainda mais ao sentar-se na banqueta do bar.

- Ah, não gosto de cerveja, prefiro vinho. Me acompanha?

Após dizer isso, abre um breve sorriso mesmo que ainda sem mostrar seus dentes, porém não menos lindo. Seu rosto fazia covinhas ao sorrir e seus lábios finos com batom roxo ficavam simplesmente mais lindos. Fiquei mais ainda sem jeito quando me dei por conta que não parava de olhar para eles.

Fiquei surpreso, pois não esperava aquilo. Tinha quase certeza de que ela estaria ali apenas de passagem aguardando alguma companhia para um jantar, e não para simplesmente beber junto ao bar do hotel. Me surpreendi ainda mais com sua abordagem e seu sorriso. A partir daquele momento fiquei sem saber menos ainda como agir. Afinal, não era uma mulher comum, não poderia tratá-la como com as demais, mesmo que educação, cortesia e respeito sempre fossem virtudes minhas que uso frequentemente, e com competência obtendo bons resultados modéstia à parte, junto à mulherada. Aquela situação era “sui generis”.

Mas cadê o Eliézer?

- Sim sim, posso lhe acompanhar. Barman, por favor, a senhora gostaria de uma taça de vinho.

- Uma taça não, uma garrafa.

Uau! Percebi que aquela mulher não iria sair dali muito cedo.

- Está aguardando alguém? – perguntei.

- Não. Não quis sair para jantar hoje. Resolvi ficar no hotel e relaxar por aqui. Gosto desse tipo de ambiente, mais calmo e reservado.

Enquanto Nadya falava, percebia seu carregado sotaque de língua eslava. A cada letra R pronunciada notava-se sua língua no céu da boca emanando o som de uma catraca ou como se simulasse uma rajada de metralhadora. Notava-se sua dificuldade ainda em algumas palavras de português. Foi bom ter notado essas suas peculiaridades, pois já saberia por onde puxar assunto caso necessário.

Nadya pediu determinado vinho que não consegui compreender ao barman. Sorte dela o barman ter tanto compreendido quanto atendido seu pedido. Ele abre a garrafa e serve duas taças: uma para ela e outra para mim. Ao ver aquela garrafa de vinho, deduzi que custaria no mínimo uns 20,00 dólares, o que demonstrava o requinte daquela mulher. Fiquei mais constrangido ainda. Além disso, já havia tomado, somente eu, 6 cervejas long neck e não saberia como seria o desfecho da noite com mais aquele vinho na cabeça.

Ela toma sua taça com a mão esquerda. Percebo estar usando um anel cujo pingente é o mesmo disco que em seu colar. Era grande e bonito, dourado e ornamentado com inscrições cuja luz fraca impediam a identificação. Ela ergue levemente a taça e me oferece um brinde. Tomo minha taça e brindamos.

- Iremos brindar a que? Aos novos desafios?

- Não quero falar de trabalho essa noite – disse ela sem sorrir – Um brinde a essa noite.

- Está bem. À essa noite.

Finalmente ela novamente mostra brevemente aquele lindo perturbador sorriso. Após o primeiro gole, procuro quebrar o gelo:

- Nadya, tu és russa?

- Sim, pode-se dizer que sim, mas na verdade sou natural de Belarus. Aqui no brasil vocês chamam de Bielo-Rússia ou Rússia Branca. No entanto, é praticamente a mesma coisa.

- Sim, é verdade. Já li a respeito. É um país ao oeste da Russia, se não me engano faz fronteira coma Ucrânia também.

- Sim, exatamente.

- Mas, se me permite, seus traços não são típicos russos.

- Na verdade minha etnia não é russa, mas cigana.

- Cigana? Claro! Explica tuas características não serem como a de mulheres eslavas.

- Sim. Exatamente por isso. Nossa etnia é perseguida por lá, como bem sabe. Por isso decidi me afastar da minha família e tomar um rumo novo para minha vida. Enfim, ir para bem longe de lá.

- Entendo, eu li sobre isso também, sobre a perseguição aos ciganos. Tua história é muito interessante. Sabe, já li algo sobre o povo cigano. Existem muitas lendas entorno dele. Algumas fantasiosas demais, outras, eu devo admitir, intrigantes realmente. O que mais me chama a atenção nessas histórias é a dúvida sobre a origem de vocês, pois tem muita especulação a respeito.

- Sim! Verdade. Dizem muitas coisas. Mas posso lhe afirmar que há muita fantasia a respeito e invenções para apenas discriminar os ciganos. Muitos como eu já se distanciaram das famílias e tradições por conta disso. Eu, pessoalmente, não me considero mais uma cigana.

- Gostaria muito de ouvir sua história, se não lhe causar desconforto ao contar ou se estiver a fim. Sabe, gosto muito de história.

- Não me causa desconforto, mas acho que não precisamos nos deter em histórias longas. Sei que gosta de ler, mas não quero falar a respeito.

- Sim, desculpe-me. Mas, como sabe que gosto de ler?

- Eu li sua ficha. Já analisei a ficha de todos os gerentes da empresa.

Aquela negativa firme e impositiva de não falar de sua vida foi um balde de água fria me fazendo lembrar qual era meu devido lugar. Já estava pisando em ovos com ela. Depois, vem dizendo que “leu toda a minha ficha”. Como assim?...

Então, Nadya resolve quebrar o gelo:

- Como são os homens aqui?

- Hein?

- Os homens. Como vocês são aqui? Não sou daqui e sou mulher. Gosto de homens.

Não sabia exatamente qual era sua intenção com aquele papo. Mesmo assim, imediatamente em minha consciência adotei uma postura cautelar. Não iria me expor nem mesmo demonstrar interesse algum naquela mulher na condição de homem. Não era momento de dar bola fora, dar mancada. Então resolvi dar uma de sabonete e conduzir uma conversa amena sem provocações ou investidas de minha parte, procurando inclusive me esquivar de qualquer questão mais profunda ou quente. Afinal, não sabia qual sua intenção com aquilo. Estaria ela apenas me testando?

- Desculpe, por favor não me interprete mal. Mas por que essa pergunta?

- Ah sim. Acho que você deve lembrar que nossa empresa é majoritariamente masculina e eu sou uma mulher. Eu não sou daqui, não conheço os costumes de seu povo. Gosto de analisar as pessoas que me cercam, a começar pelo o que pensam. Por isso gostaria de saber como são os homens por essa região do país. Será mais fácil para mim encontrar a forma correta de lidar com todos vocês.

- Ah sim, entendo. Bem, acho que posso lhe ajudar quanto a isso.

Então começamos a conversar a respeito, dentre outros assuntos que iam e vinham. Nadya mais ouvia do que falava, mais perguntava do que respondia. Escorada com o cotovelo no balcão ao mesmo tempo em que pendia o cálice de vinho com a mão, emanava um charme fora do comum. Um charme que, no entanto, apenas eu poderia apreciar, pois até mesmo o barman havia inexplicavelmente sumido. E o Eliézer...

- Ah, me esqueci. Passei por seu funcionário no corredor. Acho que ele subiu para o quarto de vocês.

Como assim? Eu não o vi sair do banheiro nem mesmo passar por mim. Não me disse nada. E como ela o conhecia? Ele sequer tinha sido apresentado a ela!

- Bem. Obrigado pelo recado. Estava procurando-o com os olhos na verdade. Ele tinha ido ao banheiro e não voltou. Não vi ele passar por mim.

- Por nada. Creio que agora estamos relativamente a sós.

Aquele sorriso lindo, sexy e sombrio novamente surge em seu rosto. Senti o frio na espinha e um arrepio em meus braços. Entorno de uma hora se passara desde sua chegada ao bar, meia garrafa de vinho já tinha sido bebida por ambos. Percebi sua descontração devido à bebida assim como a minha, deixando-me mais confortável. Nossa conversa não apenas começava a ficar mais amena como estava aos poucos tomando um foro um tanto íntimo. Nadya insistia em conversar sobre as relações humanas, especificamente entre homens e mulheres. Deteve-se então em abordar sobre o que mais atrai os homens nas mulheres e vice-versa. Confesso e admito que passei a gostar do assunto, mesmo que em momento algum eu pudesse vislumbrar algum tipo de chance em pegar aquela mulher naquela noite. E nem queria. No entanto, o assunto estava muito gostoso fazendo-me pensar ser uma boa chance de demonstrar cavalheirismo, cortesia, educação e respeito ao se abordar com uma mulher daquelas um assunto relativamente delicado, no qual qualquer deslize poderia cair na vulgaridade. E, sabe-se lá, qual era o real objetivo dela.

Passado mais um tempo, o vinho já estava terminando, com apenas alguns goles em cada taça. Já era por volta das 22:30 quando Nadya apanha sua taça delicadamente com sua mão alva de unhas pintadas de preto e o bebe num só gole o resto do vinho. Ao repor a taça no balcão, ela olha diretamente nos meus olhos com aquele leve sorriso no rosto fazendo aparecer suas covinhas nas bochechas e me faz aquela pergunta que me congelou por completo:

- Você me acha uma mulher interessante?

Definitivamente travei. Travei e tremi na base. Não sabia o que dizer. Fiquei paralisado por alguns segundos, mas naquele momento pareciam uma eternidade. Então eu a respondi, da maneira mais dissimulada que podia encontrar:

- Desculpe Nadya, não entendi. Em que sentido? No sentido profissional?

- Não! – Me respondeu direta e secamente com um olhar penetrante e cenho sério, sem mais expressar sorriso algum.

- Bem. Sim, acho a Senhora muito interessante.

Tentei manter uma distância chamando-a de “senhora”. Não funcionou. Ela estaria me pressionando. Comecei a entender que, de fato, aquilo poderia ser um assédio de sua parte. Nesse momento já estava confuso e com medo. A tensão, apesar do vinho, voltara.

- Me considera uma mulher atraente?

- Sim Senhora. Acho a Senhora muito atraente.

- Dispensa o “senhora”. Você em momento algum dessa noite havia me chamado assim.

Então forcei um sorriso e disse:

- Desculpe Nadya, eu devo admitir que fiquei sem ação.

- Eu sei. Todos ficam.

Emudeci. Enquanto isso, ela apanha do balcão seu celular e a chave de seu quarto dando a entender que iria finalmente se retirar. Ela, com os objetos já na mão, novamente dirige-se a mim da maneira mais inesperada possível:

- Você é um homem muito interessante, talvez o mais interessante dentre todos da empresa. Meu quarto é o 507. Esteja lá em meia hora.

Nadya então desce da banqueta e vai de encontro a saída do bar dando-me imediatamente as costas sem me dar chance alguma de dizer algo a ela.

E agora Meu Deus, o que eu faço?

Comecei a me sentir estranho. Não conseguia mais raciocinar ou refletir direito sobre tudo aquilo. Eu não sei por qual motivo, mas imediatamente decidi acatar sua ordem, pois da forma como se dirigiu a mim, era como se fosse. Tomei o resto do vinho e me apurei para deixar o bar. Não me lembro de ter pagado a conta ou ter assinado alguma comanda, nem mesmo se o barman estava lá, pois não me lembro de ter visto ele ou mais alguém durante todo o tempo em que ficamos bebendo aquela garrafa de vinho.

Será que eu deveria realmente fazer aquilo? E se eu não fizesse, se fosse direto para o meu quarto e ignorar aquele convite? Na verdade, tinha certeza de que aquilo não foi um convite, mas uma ordem, uma convocação. Certamente que com muitos outros homens ela deveria ter feito isso pelas empresas que atuara. A única certeza é que eu realmente estava com medo. Aquela mulher me dava medo. Medo e tesão, pois não poderia mais negar isso para mim mesmo. Se sedução era o jogo daquela mulher, ela estava começando a ganhar. Não iria deixar passar aquela oportunidade. Era certo que ela queria transar comigo e eu também, mesmo que pudesse comprometer meu emprego, pois sabe-se lá o desdobramento que isso poderia causar.

Eu tinha ainda meia hora antes de encontrá-la. Ao sair do bar, vou para fora do hotel e acendo um cigarro na vã tentativa de me acalmar. Eu estava tremendo de ansiedade, medo e excitação. Terminando de fumar, volto para o interior do hotel e me dirijo ao meu quarto, pois dava tempo de “me preparar”. Então tomei um banho, renovei o desodorante e escovei os dentes. Coloquei a mesma roupa que estava, apanhei uma camisinha e um azulzinho, aqueles comprimidos que descobri para “garantir a festa”, colocando-os no bolso traseiro da bermuda, para finalmente me dirigir ao quarto 507, dois andares acima.

Durante o percurso, entre corredores e elevador, me deslocava com pensamentos confusos. Estava difícil de acreditar que tudo aquilo estava acontecendo comigo. Em muitos pequenos e breves momentos naquele trajeto até o seu quarto eu titubeei, chegando a pensar na possibilidade de declinar daquela aventura. “Eu estava prestes a pegar a Nadya”. Essa, se eu fosse contar, ninguém iria acreditar. Não mesmo.

Cheguei diante da porta do quarto 507. Dei três batidas. Agora não tinha mais como voltar atrás, e nem queria. Então ela abre a porta. Ao abrir vejo Nadya com a mesma calça cirre e o mesmo camisão branco, porém de uma forma deliciosa: totalmente aberta, expondo deliciosos e fartos seios amparados por aquela lingerie preta. Fico imóvel diante da porta contemplando aquela mulher espetacular de gracioso abdômen de pele clara, uma barriguinha levemente saliente que me enlouqueceu. Ela cruzara as pernas e escorara uma das mãos na porta. Ela não sorri e não me diz uma palavra sequer, me dando as costas e espaço para que eu entre em seu quarto. Assim o faço e quando menos percebo sinto a porta se fechar. Não a vi fechar a porta, pois ela estava diante mim, parecia que alguém teria assim feito diante da força da batida. Mesmo assim, embora um pouco impressionado, minha atenção se manteve em Nadya e em sua sensualidade deslumbrante.

Quando a porta se fechou, Nadya vira-se para mim e com força me joga contra a parede. Eu bato com as costas nela assim como com minha nuca. Doeu a batida, mas não tive muito tempo de senti-la pois Nadya segura meu rosto e me beija de maneira sem igual. Eu não tinha outra coisa a fazer senão deixar tudo aquilo rolar. Nadya procurava com sua boca minha língua tentando engoli-la sugando-a. Era uma delícia de beijo que se estendeu por 4 ou 5 longos minutos até deixar minha língua dormente e levemente dolorida. Eu estava sem ação. Na verdade, ela não me deixava tomar ação alguma, pois estava deixando bem claro quem iria comandar qualquer coisa que ali fosse acontecer. Então foi a vez das luzes misteriosamente se apagarem restando apenas a fraca luz do abajur da cabeceira da cama.

Após o longo beijo, Nadya me pega pela mão e me conduz em direção à cama, contorna meu corpo e violentamente me empurra contra ela fazendo com que nela eu caia deitado de frente para ela. Com uma agilidade enorme pula sobre mim e com as duas mãos abre de maneira também violenta minha camisa arregaçando-a e estourando de uma só vez todos os seus botões deixando meu torax totalmente exposto. Ali estando montada em mim, Nadya massageia meu peito arranhando-o com suas unhas negras e compridas de modo doloroso, porém excitante, desde minhas clavículas até meu umbigo. Então, finalmente sorri, porém de uma forma maligna e assustadora, mas não menos linda e sedutora. A ardência de seus arranhões é enorme, tomando conta de todo o meu tórax, embora eu gostando daquela sensação. Sinto-me imobilizado senão quando a pego pelos quadris com minhas mãos apertando-a com força até espremer um leve gemido de excitação de sua boca. Sinto a maciez e o frio de sua pele. Nunca tive uma mulher assim. Seu corpo por completo era frio e sua pele macia com um adocicado e entorpecedor cheiro.

Nadya tira seu camisão quando logo consigo curvar meu corpo indo de encontro ao dela abraçando-a e fazendo-a cair sobre meu corpo. Assim consigo tirar sua lingerie expondo de vez os lindos e formosos seios de mamilos escuros e levemente entumecidos. Quando menos percebo vejo Nadya aos pés da cama e totalmente nua. Como ela conseguiu tirar toda a sua roupa sem eu perceber não tenho a mínima ideia. Ela debruça-se sobre minha bermuda abrindo seu botão e zíper para finalmente me desvestir por completo, para então novamente pular sobre mim. Não tive tempo nem chance de apanhar camisinha ou mesmo azulzinho. Ali possuo ela, ou melhor, ela me possui. Sinto-me invadindo seu corpo de uma maneira nunca vista sentindo um calor intenso, contrastando com a frieza de sua pele.

Estou excitado por demais, porém totalmente imóvel. Alguma força misteriosa vinda daquela mulher fazia com que eu impedisse de mexer qualquer músculo que seja. Estava paralisado e totalmente a mercê de Nadya. Tudo que estava acontecendo naquele quarto era delicioso ao mesmo tempo que estranho e assustador. Passou a ser mais ainda quando Nadya arqueia-se para trás soltando um baixo e agudo gemido anunciando seu gozo. Nesse mesmo momento, a luz fraca do abajur, a única luz acesa, sinistramente se apaga restando como fonte de iluminação apenas os fracos fachos de luz advindos da iluminação das vias públicas que entravam pela janela levemente com as persianas abertas. Arregalei meus olhos e ensaiei alguma reação tentando me apoiar nos braços e erguer meu tórax. Em vão.

Nadya gozou. Nesse momento, ela ergue seus braços cruzando-os atrás de sua cabeça agarrando seus cabelos com as mãos. Assim, fez com que seus formosos seios ficassem mais evidentes aos meus olhos. Aquela fraca luz não impedia de vê-la por completo. Era uma sena sinistra, pois parecia que aquela fraca luz era direcionada apenas para Nadya, como se até isso ela estivesse preparado. Eu não conseguia me mexer, meus braços estavam para trás, sobre a cabeça e sem nada que os prendessem, mesmo assim não conseguia me mexer. Isso me assustava por demais ao mesmo tempo em que não deixava de ficar excitado. Meu tesão não se abalara com toda aquela atmosfera de submissão que me envolvia. Nadya poderia fazer o que quisesse comigo naquele momento, inclusive tirar minha vida se quisesse. Já não fazia a mínima ideia do que de fato estava acontecendo, pois estava começando a perceber que aquilo não era apenas uma transa.

Nadya ainda estava com o rosto erguido, com os olhos fechados, a boca entreaberta e seu cenho levemente contraído demonstrando degustar aquele momento sublime de orgasmo. Ela ainda arfava após gozar estufando levemente seu peito a cada respirada profunda que dava. Agora já com as mãos apoiadas no meu peito, tenho diante de meus olhos a cena mais fantasmagórica, soturna, maligna e ao mesmo tempo linda que já pudera ter visto. Nadya abre seus olhos e direciona seu rosto alinhando seu olhar com o meu. Seus olhos agora brilham, como diamantes iluminados emoldurados por um sorriso perverso e diabólico, com a boca ainda aberta, logo fechando-a e deixando à mostra, pela primeira vez desde que a vi, seus dentes. Ela não parava de se refestelar sobre meu corpo sem deixar de me olhar um segundo sequer.

Eu continuava totalmente paralisado, com medo, apavorado na verdade. Estava imóvel, com meus músculos totalmente contraídos e mesmo assim o tesão não me abandonava. Nadya mexia os quadris como que quisesse ainda me levar ao orgasmo. Estava conseguindo. A medida em que sentia meu gozo se aproximar, ficava com meu corpo mais dolorido de tantos músculos contraídos. Nem mesmo piscar meus olhos eu conseguia. Na medida em que os segundos se passavam os olhos de Nadya brilhavam ainda mais e de forma sobrenatural, fazendo com que nada mais naquele quarto eu conseguisse enxergar com nitidez, senão seu belo e magnífico sorriso.

Eu gozei. E mesmo assim, Nadya não parava de mexer seus quadris sobre meu corpo. Inexplicavelmente não desfaleci. Continuei excitado, entumecido e louco de tesão. Ela queria mais e eu também. Senti, no entanto, que minhas contrações musculares cederam, mas por um motivo óbvio: senti parte de minhas forças serem sugadas por alguma coisa. Ela não parava e eu, estranhamente recomposto, estava prestes a gozar novamente.

Eu gozei mais uma vez. Dessa vez, percebi que aquilo foi muito mais que um orgasmo. Senti nitidamente minhas forças serem drenadas por aquele corpo maravilhoso sobre mim. Mesmo assim, não desfaleci, estando ainda excitado de forma inexplicável. Ao sentir minha segunda gozada, Nadya fechou os olhos, agarrou seus seios com suas mãos e gemeu, como se também tivesse gozado mais uma vez. Mas não, na verdade parecia que ela se deleitava com minhas forças se esvaindo diretamente para seu corpo. Comecei a imaginar se ela era de fato apenas uma mulher ou alguma coisa que não seria desse mundo.

Nadya não parava de mexer seus quadris, ela queria mais. Eu já estava ficando tão exausto eu estava com dificuldade em respirar. Estava sentindo o suor frio escorrer pelo meu rosto assim como nas palmas de minhas mãos. Estava me sentindo fraco, como alguém que ficara muito tempo sem se alimentar direito ou submetido a um alto esforço físico, mesmo sem mexer um músculo que fosse. E mesmo assim eu não desfalecia, estava prestes a gozar mais uma vez. Passei a imaginar também que aquela minha permanente condição de excitação seria por causa de Nadya, por exercer algum poder sobrenatural sobre mim. Então, eu gozei pela terceira vez, mas já sem força alguma para sequer gemer. Já estava pensando em pedir a ela para parar ou mesmo ajuda a alguém de algum modo. Ao sentir eu gozar pela terceira vez, Nadya agarra meus músculos peitorais e deita-se sobre mim. Abocanha meu mamilo beijando-o para depois mordê-lo fortemente. Doía, parecia que ela iria arrancá-lo com os dentes. Eu não poderia fazer nada, estava ainda travado por aquela força desconhecida que contraía minha musculatura, além de não ter mais forças para mais nada, com imensas dificuldades em manter meus olhos ainda abertos. A mordida em meu peito não apenas doeu como ardeu, feito ácido derramado sobre a pele. A dor era intensa a ponto de com muita dificuldade lançar um fraco gemido. Passei a sentir algo quente escorrendo sobre meu peito. Era meu sangue. Nadya passou a lamber minha ferida e a todo o sangue que escorria sem deixar de me olhar com aqueles olhos de brilho fluorescente. Sentia minhas veias dos braços e pernas arderem, parecia que todo o meu sangue estava se esvaindo.

Eu já estava em pânico, mas nada podia fazer. E assim por vários minutos ela ficou se deliciando sobre meu peito com sua ávida boca. Extraíra meu sêmen e agora se deliciava com meu sangue. Sentia minhas forças irem embora. Em determinado momento, finalmente Nadya se ergue e com a ponta dos dedos limpa restos de sangue na borda de sua boca. Ela sai de cima de meu corpo e caminha pelo quarto ao lado da cama em direção ao banheiro dando-me as costas. Embora com a visão enuviada conseguia admirar a beleza escultural de seu corpo claro e totalmente nu, quando tive outra assustadora surpresa: ao recolher os longos cabelos sobre seu ombro esquerdo, Nadya desnuda totalmente suas costas e nela contemplo uma enorme tatuagem de um dragão que ia desde seu cóccix até sua nuca. Assustadoramente conseguia ver com nitidez sua tatuagem cujo vermelho era predominante, a despeito da penumbra daquele quarto e de meus olhos já cansados. Nadya volta do banheiro e se inclina sob meu rosto pronunciando as únicas palavras, de modo soturno, em todo o tempo que estivemos naquele quarto: “Amanhã teremos mudança de planos. Boa noite”. Após um carinhoso e leve beijo em meus lábios, não resisto a minha condição, fecho meus olhos e desfaleço.

Minha visão está muito turva, embora possa reconhecer que estou num ambiente bastante iluminado. Aos poucos vou identificando os elementos que compõem aquela cena: paredes brancas, lâmpadas fluorescentes... Percebo meu estado deplorável de fraqueza, quando meus olhos teimam em não se manterem abertos. Finalmente consigo acordar quando começo a tentar entender o que está acontecendo, onde estou e como fui parar ali. Estou numa cama, num leito hospitalar num lugar onde de fato devesse ser um hospital. À minha esquerda da cama está Eliézer me chamando como se tentando me acordar.

“O cara, tu tá bem? Fala comigo...”

Então ao seu lado e vejo um suporte com um bolsa de soro e ao lado dela outra de sangue. Olho para meu pulso esquerdo e vejo um butterfly enfiado nele escorrendo o que seria o soro fisiológico daquela bolsa. Direciono meus olhos para o pulso direito e vejo outro butterfly cravado e dele escorre sangue para minhas veias. Tento me mexer, mas não tenho a mínima força.

Meu Deus, o que aconteceu?

- Eliézer, o que tá acontecendo?

- Eu é que te pergunto meu.

- Como assim? O que houve?

- Se tu não sabe...

- Cara, como eu vim parar aqui?

- Tu sumiu ontem a noite. Só fiquei sabendo que tu estava aqui porque ligaram para o hotel. Acharam a chave do quarto no teu bolso e ligaram para lá. Depois me ligaram, eu estava na empresa. Vim assim que soube.

A confusão tomou conta de minhas ideias. Aos poucos lembranças de acontecimentos começam a surgir como flashes intermitentes, porém cada vez mais lúcidos e conexos. Seria tudo um sonho ou alucinação provenientes de uma bela bebedeira?

- Eu sumi? Como assim? Nós não fomos ao bar do hotel?

- Sim cara. Estávamos lá. Aí eu disse que iria ao banheiro. Quando voltei tu tinha sumido. Fiquei uma meia hora lá ainda esperando ver se tu voltava. Tu não voltou e eu resolvi subir para o quarto. Onde tu te meteu?

- Cara, sinceramente eu não sei o que houve. Tá tudo muito confuso.

- O médico disse que te acharam deitado na porta do pronto-socorro com a camisa empapada de sangue. Tu estava apagado com pulsação fraca. Logo viram que tu tinha perdido muito sangue e que estava a beira de um coma alcoólico. Tu tá com um corte estranho aí no teu peito. Disseram que foi muito fundo. Mas não viram mais nenhuma lesão. Disseram também que não poderia ser dali que tu perdeu sangue desse jeito porque esse tipo de corte não faria esse estrago. Ninguém entendeu como é que tu ficou nesse estado. Tiveram que te dar ampolas de glicose, soro para hidratar e tu tá na terceira bolsa de sangue porque tu tava com uma baita anemia. Até ampola de adrenalina te deram, não sabiam como que tu não teve parada cardíaca. Cara tu tá um bagaço...

Olhei para o meu peito e vi um enorme curativo. Imediatamente associei aquele curativo com alguma lembrança que tinha na minha mente da suposta noite que havia passado. Sim, suposta, pois já não sabia se tudo aquilo realmente tinha ocorrido. Eu estava com o corpo meio dormente. Aos poucos ia conseguindo mexer meus membros. Não sentia dor alguma, senão um cansaço como nunca havia sentido.

Eliézer não parava de falar, parecia uma metralhadora. Na medida em que ele falava, eu ficava cada vez mais confuso. As coisas não encaixavam, as lembranças da noite que passei não tinham sentido com a realidade que eu estava vivendo naquele momento. Eliézer então disse a coisa mais aterrorizante além de tudo aquilo que eu estava vivendo:

- Cara, eu me acordei hoje de manhã e não te vi no quarto. Fui para a empresa imaginando te encontrar lá. Tu não apareceu, aí me disseram que estavam te procurando para te avisar que tu vai ter uma reunião com todos os gestores corporativos e a Nadya hoje as cinco horas da tarde. Cara, disseram que não dá pra faltar, porque cabeças vão rolar. O meu, tu tem que estar nessa reunião.

De volta a realidade, percebi que deveria fazer alguma coisa. Já estava começando a aceitar o fato de ter feito alguma besteira a noite anterior e por esse motivo estava ali. Ninguém iria perdoar essa cagada e, naquele momento delicado da empresa onde as coisas estavam mudando, tive a certeza de que seria meu fim caso eu não participasse. Eu devia cair fora dali.

- Eliézer, cadê minhas roupas?

- Estão comigo.

- Pega elas. Vamos cair o fora daqui.

- Tá locão? Olha o teu estado.

- Que horas são?

- Uma e meia da tarde.

- Cara, me ajuda. Vamos embora.

- Tu é louco.

- Faz o que tô pedindo. Pega aquele esparadrapo ali. Vou tirar essas porcarias. Vamos vazar.

Sentei-me na cama me apoiando nos braços. Eu estava pior que uma gelatina de tanto que tremia. Arranquei os butterflys e logo passei esparadrapo nos pulsos para conter qualquer pequena hemorragia. Não senti dor alguma, até porque estava muito nervoso com tudo aquilo. Eliézer me ajudou a me vestir e tirar aquela camisola de hospital. Vesti minha bermuda e minha camisa empapada de sangue quando notei que não tinha um botão sequer. Eu olhava para ela sem entender nem mesmo acreditar naquilo que via. Estava seca e dura por causa do sangue. Senti um leve fisgão no peito devido ao ferimento quando me mexi mais bruscamente para me vestir. Eliézer me ajudou a calçar meus mocassins. Por sorte não havia ninguém naquela unidade, então ninguém intercedeu. Pura sorte, pois tinha também certeza da minha condição de fugitivo de um hospital, até mesmo porque nenhum médico descente iria me dar alta naquele estado.

- Me ajuda aqui Eliézer.

- Tá, se apoia em mim. Vambora!!!

Saímos rapidamente, na medida do possível com Eliézer me apoiando para caminhar enquanto tentava me equilibrar nas minhas trêmulas pernas. Inexplicavelmente não tinha ninguém naquele corredor de hospital, por conta disso que minha saída a francesa fora rápida, silenciosa e eficaz. Saímos por uma porta lateral que por sorte dava para o estacionamento. Eliézer me joga no banco do carona e saímos o mais rápido possível daquele lugar.

Que loucura!

Subitamente, na medida em que me movimentava, sentia estar recuperando minhas forças, senão pelo fato de começar a sentir uma fome desesperadora.

- Que horas são Eliézer?

- Duas e dez da tarde.

- Dá tempo para comer alguma coisa. Cara, pára na primeira lancheria que tu encontrar.

Paramos num xis. Pelo horário o movimento estava fraco, o que era ideal, pois muitos iriam estranhar aquela minha camisa toda aberta e empapada de sangue. Ali pedi para o Eliézer me pagar um xis, pois estava sem minha carteira.

- Comi um xis de uma forma que o Eliézer me olhava apavorado. Acho que dei apenas umas 5 ou 6 dentadas naquele lanche. Devorei em menos de 5 minutos.

- Cara, pede outro pra mim. Tô desesperado de fome.

- Tá. Vai uma coca-cola?

- Claro, pode chamar.

- Deixa pra mim.

O segundo xis foi um pouco mais demorado: em torno de 6 ou 7 minutos. Eliézer me olhava com os olhos arregalados de maneira apavorada. Acho que nunca na minha vida havia comido um (ou melhor, dois) xis de maneira tão saborosa. Acho que foi o melhor lanche da minha vida. Aquela coca-cola geladinha descia maravilhosamente pela minha garganta. E o mais interessante de tudo: não conseguia ficar com aquela sensação de estufamento pós-lanche, ainda mais depois de ter comido dois daqueles. Parecia que, a cada dentada, a cada deglutição, meu organismo simplesmente absorvia imediatamente tudo aquilo. Pão, carne, ovo e todas as porcarias que vinham junto notoriamente estavam recompondo minhas energias. Eu sentia isso. Depois de dois lanches me sentia mais acordado, mais firme, mais recomposto. De repente, uma pequena coceira surge sobre meu peito. Abro um dos botões da camisa e avalio aquele curativo vendo alguns dos pontos dados pelos médicos se abrindo e caindo. O ferimento estava fechado, demonstrando um processo de cicatrização fora do comum.

- Que horas são, Eliézer?

- São três e dez da tarde.

- Preciso me arrumar para a reunião. Vamos para o hotel.

- Beleza.

Durante o trajeto, Eliézer volta a me questionar sobre tudo o que ocorreu:

- Ô meu, diz aí: que merda tu fez ontem a noite?

- Cara, eu não faço a mínima ideia do que aconteceu.

- Tu sabe que não pode comentar nada lá na empresa né? Vão pensar em todo o tipo de merda que tu poderia ter feito. Ninguém sabe de nada, viu?

- Cara, nem me fala. Preciso tirar logo essa camisa e ir duma vez para a empresa. Por favor, não preciso nem te dizer que tu não pode abrir o bico sobre nada disso que aconteceu.

- Fica frio. Tô ligado.

-Mas Eliézer. Onde tu te meteu ontem?

- Cara, eu já disse. Eu fui no banheiro mijar. Não demorei 5 minutos e tu já não tava mais no balcão do bar.

- Como assim? Tu não voltou para o quarto?

- Ah, só depois de meia hora te esperando no balcão.

- Mas, tu não passou pela Nadya no corredor?

- Que Nadya meu, tá louco? Ela nem tá hospedada no nosso hotel. Ela tá hospedada no hotel de executivos junto com os membros do conselho e os novos investidores da empresa.

- Como assim?

- Sim, hoje pela manhã me comentaram isso. Disseram que saíram todos para jantar ontem a noite menos a Nadya. Parece que ela ficou no hotel.

Fiquei atônito. A imagem nítida dela vindo em minha direção no bar do hotel não saí da minha cabeça. Aquela história do Eliézer de ter ido no banheiro e voltado sem me encontrar também não encaixava nas minhas lembranças. Comecei a pensar que realmente tinha feito alguma merda bem grande. O problema é que nunca me droguei, nunca bebi demais a ponto de esquecer o que tinha feito, enfim... nunca havia saído da linha.

Chegando no hotel, tomamos imediatamente o elevador chegando o mais rápido possível no nosso quarto. A cama arrumada ainda, o que significa que sequer me deitei nela a noite passada. Então tiro minha roupa e me dirijo ao banheiro. Estava com medo até mesmo de me olhar para o espelho e ver um estado deplorável de homem. Mas não! Ao contrário do que Eliézer me dizia, eu não estava mais com olheiras e sim com aparência normal. Minhas pernas já não tremiam e sentia já forças em meus braços. “Eita xis bom”, logo pensei. Então, examino mais uma vez meu ferimento diante do espelho e percebo que todos os pontos já tinham caído e nem casca sobre ele havia. Porém, o que notei foi algo que me assuntou mais ainda: o ferimento tinha o formato de uma mordida entorno do mamilo esquerdo. Não tinha como não associar à mais uma das mórbidas e inexplicáveis lembranças que tinha em mente. Fiquei alguns minutos paralisado na frente do espelho.

Apesar de toda o meu apavoramento e confusão que aquela situação me trazia, tinha a consciência que me restava pouco tempo para me preparar para e fatídica reunião das 17 horas. Então rapidamente tomei um banho, vesti uma das mudas do uniforme e nos deslocamos até a matriz da empresa na capital, num percurso que duraria uns 40 minutos.

Durante o trajeto, Eliézer me pressionava a respeito dos acontecimentos me deixando irritado, não apenas por sua insistência, mas porque simplesmente não sabia o que dizer, não sabia explicar onde me meti e o que aconteceu comigo na noite passada. Por fim, acabei por prometer a ele de que quando eu tivesse todas as respostas ele seria o primeiro a saber, até mesmo porque já estava criando uma dívida com o cara. Afinal, estava virando meu cumplice sem mesmo saber o que acontecera comigo.

Chegando na matriz da empresa, imediatamente me dirijo para a sala de reuniões sendo um dos primeiros a chegar. Supreendentemente eu já estava bem, totalmente recomposto e recuperado do que seja lá o que passei. Exceto pelos pensamentos confusos, que volta e meia me deixavam olhando para o nada e divagando, de forma que um ou outro colega me cutucava para perguntar se estava tudo bem.

Todos já a postos na mesa da sala de reuniões quando de repente surge Nadya acompanhada de conselheiros e “novos investidores”, deduzira eu. Ela se apresentara novamente com um visual sóbrio e austero, porém não menos bonita. Dessa vez usava um cabelo trançado e o já conhecido suave batom em seus finos lábios, contrastando com seus negros olhos agora realçados pelo delineador mais forte que usara. Estava novamente de jeans, camisete branca e jaqueta da empresa. Imediatamente em seu peito, sem decote, identifico um colar e seu pingente circular. Um frio na espinha me surgiu.

Nadya senta-se na cabeceira da mesa já sem a jaqueta colocando-a na guarda da cadeira, ficando apenas com a camisete branca que por sinal era um tanto transparente, deixando definir sobre ela a lingerie preta por baixo. Ela começa a reunião dando boas-vindas a todos e de imediato apresenta os novos investidores da empresa. Após isso, mantendo a sobriedade com seu cenho e sem sorrir em momento algum, inicia os trabalhos com uma enorme pauta. Dentre várias, a supressão de setores e cargos, a demissão de alguns que ali mesmo estavam na mesa deixando todos perplexos com a objetividade e a forma seca como essas mudanças foram anunciadas por Nadya.

Eu apenas observava, não conseguia tirar os olhos daquela mulher, em especial sua boca e seu pingente. Em determinados momentos, me pegava olhando para o infinito tentando entender tudo o que estava acontecendo e se o que tinha como lembrança era alguma ponta de realidade ou foi apenas delírio de um trago fenomenal. Num desses momentos, Nadya, de forma firme se dirige para mim:

- O senhor na condição de Gerente de Projetos poderia participar mais da reunião. Afinal, estamos revisando toda a nossa estrutura administrativa e processos irão se modificar. Pelo que sei, muitos deles foram implantados pelo sr. Gostaria de maior efetividade sua nessa reunião.

- Sim, senhora. Estou apenas avaliando as novas situações para ser mais assertivo.

- Assim espero de sua pessoa!

Puta merda!

Era tudo o que eu não queria naquele momento: ser abordado por aquela mulher. Daquela forma então... Juro que gostaria de sumir. Olho para meu gestor imediato que só balança a cabeça de forma negativa mandando a nítida mensagem “te liga”.

A reunião vai se transcorrendo de forma tensa. As mudanças profundas e radicais na empresa chegaram junto com Nadya e agora ela as estava apresentando. Gestores se levantavam da mesa para não mais voltar pois estavam sumariamente sendo demitidos naquele momento enquanto outros eram remanejados ou mesmo rebaixados de função. Passei a dar minha opinião sobre os novos processos e reajustes dos existentes de forma a ser mais participativo. Nadya não demonstrava empatia nem mesmo contentamento com meus esforços. Aquilo era apenas minha obrigação, devia ela pensar.

Após mais três horas de reunião, a mesma é concluída por Nadya que dispensa a todos os presentes dando boa noite – já eram 20:30 da noite – desnudando um clima mais melancólico do que um velório coletivo. Então, quando estou recolhendo minhas coisas da mesa para enfim ir embora, Nadya se dirige a mim, me dando por conta de que estamos apenas nós dois na sala restando:

- Espere, por favor. Quero falar com o Sr.

- Pois não senhora.

- Preciso ainda comunicar ao Sr. as novas diretrizes que estou determinando para com sua função.

- Pois não...

- Como o Sr. ouviu na reunião, estou transferindo todo o quadro de gestores corporativos para a matriz, pois estamos na capital e muitas ações se viabilizarão por aqui além do fato de que me fixarei por aqui mesmo e quero todos os principais gestores próximos de mim. Seu setor, portanto, também será transferido para a matriz.

- Mas Sra. Nadya, embora eu seja gerente corporativo de projetos, ainda sou subordinado ao Gerente Administrativo e Financeiro e....

- Sim Sr, eu sei disso. Mas no seu caso é diferente. Meu planejamento envolve mudanças firmes em processos e na elaboração e execução de novos e grande projetos. Preciso que o sr. trabalhe de forma mais próxima da minha pessoa. Eu gostei muito do resultado dos projetos que o sr. conduziu nessa empresa e vou precisar dessa mesma eficiência.

- Mas Sra. Nadya, eu...

- Meu caro gerente, a decisão já está tomada. Sua transferência já foi encaminhada ao setor de Recursos Humanos. Na semana que vem o sr. ficará temporariamente hospedado no nosso hotel conveniado por tempo indeterminado. Outra decisão que tomei, inclusive, é que, independentemente de cargo, todos os membros dessa empresa ficarão hospedados no mesmo hotel, pois poderemos inclusive usar as dependências dele para realizarmos reuniões de trabalho.

Um arrepio toma conta do meu corpo.

- Sra. Nadya, se me permite...

- Sim, pode falar.

- Na reunião de ontem onde a Sra. se apresentou, disse que não haveria mudanças tão drásticas quanto essas, especificamente no remanejamento de pessoal, como transferências ou coisa parecida, e, no entanto,...

- Sim. O Sr. tem razão. Porém, ontem a noite li sua ficha e seu histórico. Eu gostei do que li.

- Como assim Sra.?

- Digamos que tenho um profundo interesse no Sr.

Nadya já estava em pé, e mesmo ainda conversando comigo, dá as costas para continuar a guardar o restante de suas coisas e vestir sua jaqueta. A leve transparência de sua camisete deixa exibir aquela sensual e apavorante imagem em suas costas: uma tatuagem em tom avermelhado que se estendida desde sua cintura até sua nuca. Arregalei os olhos, não conseguindo disfarçar a reação de incredulidade e espanto. Nadya vira-se novamente para mim, porém ainda com a cabeça baixa, como estivera o tempo todo. Ensaiei um breve e trêmulo sorriso ao dizer:

- Sra. Nadya, o que está querendo dizer?

- Não é nada demais Sr. Juliano. Isso acontece. É apenas uma mudança de planos. O Sr. é um homem muito interessante. Já deve ter ouvido isso.

Nesse momento, ela levanta o rosto e olha direto nos meus olhos. Um breve e já conhecido sorriso lindo e sombrio surge em seu rosto. Seus olhos brilham como diamantes.