domingo, 29 de dezembro de 2019

Quando o destino nos trai





Todos nós pensamos que, em um determinado momento da vida, já poderíamos ter vivido o suficiente e passado por coisas que nos deixariam espertos, fortes e conscientes de muitas arapucas que o destino pudesse vir a nos aprontar. Que num determinado momento de nossas vidas nada mais poderia nos abalar ou nos tirar o eixo de gravidade.

Mas não!

Então, em determinado momento da vida, já com uma suposta maturidade mental, um turbilhão de confusão na vida do cara surge do nada, de paraquedas.

Quer dizer, ... não é bem do nada.

Não é de hoje que meu casamento não ia muito bem. Finalmente, anos se passaram e as incompatibilidades começaram a se acentuar. A convivência foi se esfriando assim como a tolerância entre ambos. Até que num determinado momento tudo estoura e a mais triste e dura das decisões é tomada. E aí que o destino parece querer brincar com a nossa cara. Terminar um casamento nunca seria algo fácil. E não foi. Mas tive que fazer, mesmo que uma carga de incertezas viesse a cair sobre meus pensamentos.

Eu precisava fazer. Eu precisava saber o que queria, o que deveria fazer.

E assim eu fiz.

E no momento de maior fraqueza e vulnerabilidade que um homem poderia estar ela surgiu. Altiva, voz firme, atos e palavras fortes com uma determinação que me assustava. Por onde passava, não havia como não notar. Lá estava ela, equilibrando-se em seus saltões. Sempre eles, uma de suas várias marcas da sua imponente personalidade.

Era para ser apenas um beijo, uma cerveja, um carinho. Mas não! Foi pior. Muito pior. Desde suas mãos acariciando meu corpo, procurando por espinhas em minhas costas, até ávidos beijos que deixavam minha língua dolorida e meus lábios ardendo de prazer e tesão. Ou quando elas entravam por entre minhas calças procurando apertar maliciosamente minha bunda. Mesmo as patadas que me dava com sua língua afiada não me abalavam, ao contrário. Ela me xingava, dizia coisas que para outro homem o poria a correr ou a se enfurecer retrucando talvez com um tapa bem dado em sua cara. Lógico que isso estava fora de cogitação. Mas, para mim, o efeito foi contrário. A admiração e o desejo por aquela mulher só me fizeram aumentar. E, assim, a paixão foi tomando conta de mim. Era o destino mais uma vez agindo na minha vida colocando aquela mulher em meu caminho. Só não sabia se a favor ou contra mim. Algo que hoje iria descobrir.

Minha decisão, na verdade, não foi definitiva. Um casamento de anos não se acaba de uma hora para outra. Achei que mereceríamos mais uma chance, dentre muitas que já tínhamos nos dado. E assim decidi e para aquela mulher reportei minha decisão. No momento que assim o fiz, um sentimento enorme de perda me tomou, ainda titubeando se estava ou não realmente fazendo a coisa certa. Sim, estava confuso, estremecido, sem saber o que esperar do futuro. Na verdade, vi naquela mulher tudo o que desejava. Sonhei acordado por semanas imaginando como seria minha vida ao seu lado. Seus relatos, suas histórias, seus gostos, desejos e sonhos que me contara assim faziam eu pensar e imaginar. Eu estava embriagado por aquela mulher. Era tudo: seu corpo, sua voz, sua presença, suas palavras, seu cheiro, seu gosto, suas atitudes. Mesmo assim, decidi pela razão, pelo que julguei correto e devido, num esforço tremendo de tomar aquilo como o mais sensato a se fazer. Havia ainda amor por minha esposa, mas ainda nossas famílias, nossos projetos de vida e tudo aquilo que construímos ao nosso redor pesaram na minha decisão. Eu tinha que fazer uma escolha e aquele deveria ser o momento. E assim o fiz, mas confesso: não estava certo do que queria. Certo mesmo era que, naquelas altura do campeonato, já estava fazendo um baita estrago no coração de alguém, mesmo que apenas no momento de nossa despedida pudera perceber e sentir o gosto de suas abundantes lágrimas, assim como o forte som das batidas de seu coração colado em meu peito, atestando aquilo que eu mais temia: o de estar machucando alguém, de fazer doer. E isso me consumiu.

No dia em que decidi assumir minha decisão, amparado num enorme sentimento de pureza que a tempos havia caído no meu esquecimento, fui ao seu encontro. Tremendo e com o peito apertado tomei sua mão e nela depositei meu presente. Uma correntinha com um pequeno e delicado crucifixo, dizendo a ela para que toda vez que o usasse pudesse lembrar de mim, não como um sem-vergonha como me chamava e assim me tratava em certas ocasiões, mas como alguém especial que fez parte de sua vida. Mas disso ela declinou. Demonstrando mais uma vez sua forte personalidade, cerrou seus olhos já cheios d’água procurando os meus e assim me disse, com as duas mãos em meu rosto, que o iria guarda-lo com muito carinho mas não usá-lo como eu desejaria, pois a partir daquele dia eu seria parte de seu passado, sendo dessa forma que ela gostaria que eu passasse a ser e usar aquele presente faria ela lembrar de mim, coisa que ela não desejaria. Senti uma pontada em meu peito ao ouvir aquilo, mas eu bem entendi e nada mais me restou senão assentir. Percebi também o desdém pelo presente ao deixá-lo de lado na bancada da sala de sua casa onde nos encontrávamos. Naquele dia, nos abraçamos, nos beijamos, choramos por longos minutos. Então da porta de sua casa nos despedimos e assim nossa história acabou.

Página virada!

Hoje preciso espairecer.

Nada deu certo.

Tentamos. Tanto eu quanto ela, mas meu casamento fracassou de vez. Foi duro, difícil a separação. Pensei até que seria mais fácil vide ao que ocorreu meses atrás. Mas não foi. Foi decisão minha dessa vez e sem volta. Chega de me enganar e enganá-la. Agora cada um para o seu lado. Não houve uma troca, como em algum momento havia imaginado com aquela mulher. Dessa vez estou só. Logo que nos separamos imaginei que meus pensamentos iriam se voltar para aquela mulher, sabe, no intuito de procurá-la, de quem sabe, dizer a ela “eu tô aqui”. Mas não tinha como, ela já estava com alguém, além do fato de saber o quanto doeu tudo aquilo para ela e de suas firmes decisões. “Tu é um cara muito complicado”, ela me disse várias vezes. Tava na cara que ela não iria querer mais nada comigo. Como ela disse, agora eu fazia parte do seu passado. Além disso, já sabia que estava com outro, num namoro sério com um cara que tinha uma moto. Só podia ser, viajar de moto é o que ela gostava e sempre imaginou nos dois fazendo esse tipo de coisa.

Agora é hora de espairecer.

Preciso de uma cerveja.

Preciso conversar com pessoas, resgatar amizades, conhecer e fazer outras mais. A ideia de ser solteiro não me agrada muito, nunca quis. Não tenho mais saco para a futilidade da vida de solteiro e da noite. Não preciso e nunca precisei sair para caçar. Falta de mulher nunca foi um problema para mim. Só quero beber, rir, conversar. Então, um casal de amigos meus me convida para tomar uma cervejinha, me convidando para conhecer uma cervejaria legal que recém inaugurou e vou lá com eles. Um convite inesperado, um tanto malicioso e intrigante. Mas tá valendo. Recebo uma mensagem no celular dizendo que já estão indo para lá e que eu devia chegar antes para pegar uma mesa. “Tô indo”, escrevi...

Mais uma vez o tal destino brincando com a gente. Logo que entro no estacionamento da cervejaria, identifico a placa daquele hatch preto de placas ICX3509. Ah, como não reconhecer. E ainda a vaga livre bem no lado dele. Meu coração começa a bater ameaçando sair pela boca, minhas pernas começam a tremer e minha visão fica turva. “Devo entrar?” Como vou me portar ao ver ela? Não sei como vou agir lá dentro”. Na portaria peguei a comanda sem perceber de dar meu nome e tomá-la com a mão. Parecia que pisava em ovos. Entrei no bar e a sensação que tinha era de que todos me olhavam. Estava me sentindo mal, ofegante e com ansiedade. Já dentro do local não foi difícil de localizá-la. Lá estava aquela caipirinha. Era assim que a chamava pelo seu forte sotaque do interior e pelo péssimo gosto por música sertaneja. Eu tirava sarro dela, assim como ela comigo, pois sou roqueiro e a “bateção” das minhas músicas era insuportável para ela. Estava sentada num dos compridos bancos que guarneciam as mesas. Ela estava de frente para a entrada então não foi nada difícil identificá-la. Na verdade, entrei já instintivamente procurando ela com os olhos, sem pensar em mais nada, pois somente depois disso tentaria pensar em algo de como me portar. Pois ela estava ali, com as pernas entreabertas, montada sobre um dos compridos bancos e conversando com amigos do outro lado da mesa. Ela parecia estar sozinha, embora não pudesse reparar muito suas companhias pois tinha a missão de encontrar uma mesa.

Achei uma mesa a alguns bons metros de distância, o que ajudava na discrição para muitas coisas, seja para buscar algo na copa, ir ao banheiro ou mesmo observá-la de canto de olho, pois não queria bancar o imbecil e dar bandeira fazendo-a pensar que estaria tentando chamar sua atenção ou coisa do tipo. Sabe-se lá o que ela iria pensar e comentar com seus amigos. Percebi de imediato que ela não havia reparado minha entrada, o que de certa forma me agradou, ao mesmo tempo em que fiquei um poco frustrado, pois na verdade não gostaria de passar despercebido. No fundo eu queria chamar sua atenção: “Eu tô aqui”. Calmamente me sentei, larguei minhas coisas na mesa e passei a observá-la discretamente. Uma vontade enorme começou a me subir à cabeça em abordá-la, meu coração e respiração se aceleraram. Talvez se eu fosse buscar uma ceva, ao me levantar e caminhar, poderia fazer com que ela me visse e ao menos pudéssemos trocar um breve “oi”.

Mas aí, eis o belo banho de água fria.

E quando estava fazendo menção a me levantar para me dirigir ao balcão, um homem se aproxima de sua mesa. Era alto, forte, bem-apanhado, com uma jaqueta de um grupo de motociclistas e com dois copos de cerveja. Ele a beija ainda carregando os copos enquanto ela carinhosamente apanha seu rosto com suas mãos, para logo após sentar-se atrás dela montando no banco de forma que pudesse abraçá-la fazendo-a se escorar em seu peito. Era ele, seu namorado. Sabia já que ela tinha arranjado alguém, mas ninguém nunca a tinha visto acompanhada. Agora ela estava ali, com ele. Uma mistura de sentimentos e pensamentos tomou conta da minha cabeça de modo instantâneo. “Eu perdi”. O destino me traindo mais uma vez. Ela, que dentre as lágrimas lamentava a solidão e a má sorte no amor, finalmente estava com alguém que a confortasse, a desse carinho e atenção. Sim, mesmo os mais sutis e simples gestos de atenção e carinho para com uma mulher ela sempre valorizou. E lá estava ela com um homem, seu companheiro. A caipirinha linda, de atitudes fortes e com uma impetuosidade enorme finalmente estando deixar ver seu lado mais delicado, mais angelical, mais feminino. Era o que ela queria e sonhou um dia de mim. Sorri ao notar que seu namorado tinha se ausentado da mesa para ir até o balcão e trazer duas cervejas para eles, coisa que ela sempre valorizou: a gentileza, o cavalheirismo, a cortesia masculina. Algo que, para mim, era normal, mas que para ela não era tão fácil de encontrar, assim julgava. Eles se beijam, ela está bem. E eu estou aqui, sozinho numa mesa, com vontade de sumir.

“Que bom. Agora ela está bem!”, assim pensei de imediato.

Bom um cacete! Puta que pariu, que raiva! Vai se ferrar mulher cretina! Era comigo que ela deveria estar, não com aquele troglodita. Motoqueiro. Só podia! Claro, sempre vinha com a história de comprarmos uma moto para viajarmos, ideia, que até eu, tinha simpatia, mas não tanto quanto ela, era apaixonada por isso. E a barba! Porra, o cara é barbudo. Não, não.... tinha que ser um barbudo! Mas é óbvio, ela sempre deixou claro o tesão por homem barbudo. Que merda! Não posso mais olhar para esse cara, muito menos para eles juntos. Não sei o que faço. Mas tenho certeza de que se tivesse uma granada na mão já saberia para que direção jogar, embora, com a minha sorte, seria capaz de jogar o pino e ficar segurando a granada.

Tudo aquilo me entristecia, me deixava para baixo. Os pensamentos não paravam de vir na minha cabeça. Pensar que ela poderia estar comigo e que tudo poderia ser diferente na minha vida. O destino me traindo ou minhas decisões que são mal tomadas? Estava inquieto na mesa, não parava de olhar para o relógio ou para o celular. Essa gente que não vem, preciso quebrar o gelo. Agora sim, não quero que ela me veja desse jeito, como um cachorro perdido numa mesa de bar. Para me acalmar eu precisava ao menos estar bebendo alguma coisa, precisava ir até o balcão, mesmo que ao me levantar pudesse chamar sua atenção e nesse momento era isso que eu não queria. Mas fui, passei por sua mesa e ela de frente a mim, encostada no peito de seu namorado e conversando com amigos da mesa. Não me viu nem me olhou. Passei despercebido e rápido por sua mesa, mas com tempo o suficiente para notar sua blusa e seu decote nu. Ela não usava nada de adereço, muito menos meu presente. Algo esperado, mesmo que eu tivesse uma pontinha de esperança em vê-la usando, vai saber né? Apanho uma cerveja e volto para minha mesa, mas dessa vez não tive como ver se ela notou minha presença ou não.

Ah, que sensação horrível!

Foi sentar-se na mesa que meus amigos chegaram trazendo companhia.

Nossa, que alívio!

Além do casal, uma irmã e sobrinha, mãe e filha respectivamente, da mulher do meu amigo. A menina aparentava uns 20 anos e a mãe, uma mulher muito bonita, linda para falar a verdade, morena de olhos e cabelos negros lisos e escorridos, porém presos, ela aparentava ter em torno de 40 anos. Não consegui notá-la muito, pois procurei discrição ao guardá-la com os olhos, embora percebesse sua estatura média para uma mulher e seu corpo delineado entre seu jeans e blusa justa escura, bastante desejável, demonstrando curvas deliciosas, cintura não muito fina porém de generosas ancas e grossas pernas, deixando mostrar o que uma mulher madura tem de melhor. Nossa, que mulherão! Fomos apresentados devidamente pelo casal amigo e nos acomodamos na mesa, eu na ponta direita da mesa e ela ao meu lado, ambos à frente o casal amigo e na cabeceira da mesa sua filha (ou sobrinha de minha amiga, como queira). Esse arranjo fez com que, imediatamente um desconforto fizesse com que minha espinha se arrepiasse.

Por que isso?

Não estava fazendo nada de errado! Estava desimpedido e livre e mesmo assim um sentimento estranho me fazia não gostar em nada daquela situação. A presença daquelas duas mulheres na mesa foi uma surpresa enorme para mim. Não demorou para ver os sorrisos maliciosos do casal de amigos, assim como da menina, pois parecia algo que premeditado, uma agradável “emboscada’ para desencalhar um casal de solteiros. Procurei agir normalmente naquele grupo, demonstrando-me simpático e educado, algo relativamente natural e fácil para mim, ao mesmo tempo em que tentava novamente encontrá-la com os olhos, mas sem muito êxito, pois agora minha visão estava bloqueada por muitos que em pé ficavam no bar sem mesa.

Naquelas circunstâncias, procurei relaxar. Assim, procuro tornar o clima mais agradável me enturmando com aquelas pessoas até o momento em que me dou por conta que a conversa se tornou setorizada, a sobrinha conversando com o casal de amigos e eu com sua mãe. Ela, por sinal, demonstrando-se bastante à vontade comigo. Eu, nem tanto. Mas o papo fluiu, falamos sobre nossos trabalhos e vida profissional, filmes, cerveja, lugares para viajar, Grêmio (ela adorava futebol) e tatuagens.

Em determinado momento, minha companhia começou a fazer perguntas mais incisivas, coisa que não esperava. Aí fiquei mais inquieto, numa sinuca de bico. Eu não queria nada, não estava a fim de ficar com ninguém e para isso iria procurar não deixar brechas que dessem a entender algum interesse meu em algo mais com ela. Mesmo que, houvesse o outro lado da moeda: para um homem, ia ficar feio se quisesse pular fora, né?

- Então, tu és casado?

Ela sabia que eu já não era.

- Não, não. Me separei a pouco. E tu?

- Sou separada, faz um ano já. Fui casada por 21 anos.

Aí, tento quebrar o clima:

- Como é a vida de uma pessoa separada? Digo, ficar solteira depois de tanto tempo?

- Ah, a gente fica perdida. Eu tô perdida até hoje, mas aos poucos a gente percebe que não é o fim do mundo... minha filha é minha amiga também, saímos sempre juntas e conversamos muito. Isso amenizou muita coisa para mim.

À medida em que o tempo passava, íamos conversando mais e de modo bem natural, leve e descontraído, nos conhecendo cada vez mais. Começo então a perceber seu sorriso com mais frequência e suas risadas com mais intensidade, um típico sinal de interesse por mim, situação cada vez mais nítida quando solta o cabelo deixando cair longas mexas negras para o lado mexendo-as com a mão quase que involuntariamente. Seu sorriso é muito bonito, sua beleza é única e seu corpo dá vontade de apertá-lo pelas suas fartas ancas. Mas, mesmo com aquele mulherão na minha frente, não conseguia parar de pensar nela. Essa situação de estar na companhia de outras mulheres e com ela próximo trazia em minha memória situações inusitadas e até divertidas que passei em circunstâncias semelhantes. Certa vez, ela me viu na rua de longe conversando com duas amigas do tempo da faculdade que casualmente tinha encontrado, seu cenho mudou e seu rosto enrubesceu, afastando-se de mim sumindo de meus olhos. Em seguida, quase que imediatamente, recebo uma mensagem sua no celular: “não abusa da minha paciência”, numa demonstração de ciúmes que sempre negou, mesmo sabendo da minha condição de então um homem comprometido. Em outra oportunidade, eu disse a ela, brincando, que estava tão estressado que iria relaxar na zona. Minutos depois, a caminho de minha casa recebo outra mensagem sua: “não abusa de minha paciência e me manda a tua localização já!”. Eu não parava de rir, ao mesmo tempo que, mais uma vez me assustava com a possessividade que ela demonstrara, mesmo que negasse (sempre negava). Não tinha como não associar a cena de nossa mesa, caso ela me visse assim, com uma reação semelhante. Só que não. Meu celular não iria mais receber notificações de mensagens dela, eu não estaria mais abusando da paciência dela e ela, em suas palavras, já estaria cagando para mim.

Num determinado momento minha companhia toca meu braço fazendo menção às tatuagens que fiz, inicialmente elogiando-as e perguntando se elas tinham algum significado especial. Eu disse que sim e expliquei significado de cada uma daquelas que estavam a vista. Ela demonstrava não apenas interesse pelo que falava como não se satisfazia em ouvir, mas em tocá-las. Ela acariciava cada uma das tatuagens. Era nítido o clima entre nós, a ponto de esquecer brevemente que ela estava ali, a alguns metros de mim, embora muito bem acompanhada e bem resolvida. Meu rosto já estava muito próximo daquela mulher morena a medida em que falávamos sobre minhas tatuagens. O clima ficou estranho, eu já não sabia como agir. Talvez numa outra situação, sem ela por perto ou mesmo sem as demais companhias a paquera se consolidaria. Mas aquele não era o clima que eu desejava. Não sabia nem se poderia beijá-la, pois além de todo o turbilhão de coisas na minha cabeça em nossa frente estava sua filha, sua irmã e cunhado. O ideal seria deixar passar por hoje, mas o que ela iria pensar de mim? Meu Deus, que situação.

De repente ouço aquela voz, sempre alta e retumbante, dirigindo-se aos amigos em sua mesa já em movimento em direção a porta e consequentemente a nossa mesa: “Vou ali no carro e já volto”. Era a voz dela, não tinha como não reconhecer. Viro minha cabeça e vejo ela com o rosto baixo, cabelo para o lado, o molho de chaves numa mão e um guardanapo de papel noutra. Mais uma vez pude admirar suas pernas torneadas e valorizadas pelos saltões que nunca dispensava. Meu coração dispara, parecia que estava sendo pego em flagrante ou coisa parecida. Eu não estava com ninguém, eu não estava querendo ficar com ninguém, mas se ela me visse, com a proximidade que estava com aquela outra mulher, seria obvia a dedução. Porém, ao passar ela sequer levantou seus olhos, muito menos a cabeça. Ela não me olhou, embora aquela atitude pudesse demonstrar que em algum momento havia me visto e me reconhecido, talvez não desejasse um contato direto, nem mesmo um “oi”. Fiquei muito mal pensando nisso. Será que nem mesmo me cumprimentar ela vai querer?

Não me restou muita coisa a fazer senão continuar o papo e agir naturalmente, ao menos tentar fazer isso. Quando então percebo que minha companhia percebeu minha perturbação ao vê-la passar. “Tá tudo bem?”, ela me pergunta. Eu digo que sim com um sorriso um pouco forçado.

- Foi sua ex-mulher que passou?

- Não. Quer dizer... Ela não é a minha ex-mulher.

- Ah sim, entendi. Desculpa pela pergunta.

- Não, não. Está tudo bem. É só um caso mal resolvido. Da minha parte, claro. Mas não importa.

Quando acabo de respondê-la quando sinto um toque em meu ombro: “Oi!”. Era ela. Ao seguir o caminho de volta a sua mesa. Ela não parou, apenas me cumprimentou e seguiu caminhando, dando uma breve olhada para trás com um sorriso, assumindo uma postura do tipo “não quero importunar, só queria cumprimentá-lo”. Foi uma surpresa e um alívio de certa forma. Ela não seria mal-educada e não deixaria de me cumprimentar naquela noite, a não ser que não me visse realmente, mesmo que seja muito difícil disso acontecer dentro de um bar. Ao passar não pude deixar de reparar novamente em seus lindos e brilhantes cabelos, suas pernas e o lindo bumbum, tudo potencializado pelo jeans pelos saltões. E assim ela retorna para os braços do seu homem na mesa. Mas agora sentando-se de frente para mesa, ao invés de montada no longo banco junto com seu namorado. Agora estavam os dois, lado a lado de braços entrelaçados.


Agora, eu estando na ponta da mesa podia vê-la, de longe mais nitidamente. Ela, mesmo assim, não olhava para mim. A partir daquele momento ficaria difícil disfarçar meu inconsciente interesse visual nela, mesmo sabendo do necessário cuidado, pois ambos estávamos acompanhados e de forma alguma queria causar desconforto a quem quer que fosse. Mesmo assim, um detalhe me chamou muito a atenção. Mesmo com relativa distância, não consegui passar desapercebido o pequeno brilho em seu peito. Ela agora estava usando algo entorno de seu pescoço. Era uma correntinha com um crucifixo. Sim, o meu presente! Aquele que, ao presenteá-la me anunciou que nunca iria usá-lo. Juntei os pontos rapidamente: ela havia ido até seu carro e lá o vestiu. Meu Deus, o que aquele gesto significaria? Depois de ter compreendido o ocorrido, não escondi minha excitação, mesmo que aquilo tudo pouco poderia significar. Mesmo assim, era um fato, ela agiu daquela forma por minha causa de maneira discreta e singela de modo que os demais em sua mesa, inclusive seu namorado, nada percebessem, a não ser por alguém mais observador e cuidadoso, algo que sempre fui e ela sabia disso. Alguns minutos se passaram e por duas ou três vezes notei sua mão acariciando aquele pequeno objeto, mesmo que de modo algum notasse algum tipo de olhar seu para mim. Eu sabia que as mulheres são discretas para essas coisas, e, quem sabe, nesse caso ela usasse essa habilidade com bastante exímio.

Fiquei mais desconfortável do que já estava. Era nítido, a ponto de o casal de amigos anunciar que talvez fosse a hora de ir embora. Antes disso, porém, eu e aquela linda morena trocamos contatos de celular de forma nada discreta fazendo com que todos rissem na mesa. “Dane-se”, pensei. Agora teria um outro abacaxi para descascar: será que minha companhia iria querer algo mais para aquela noite? O que, e como, eu deveria fazer? Como iria convidar para darmos uma esticadinha estando sua filha, irmã e cunhado juntos? Sem falar que não estava com nem um pouco de cabeça para algo mais aquela noite. Dessa vez não tinha como rolar nada, minha cabeça girando, meus pensamentos ainda lá naquela mesa distante, além de correr o risco de decepcionar aquela linda mulher e ainda passar fiasco como homem. Nos dirigimos ao caixa para o acerto das contas e logo após ao estacionamento do bar. Ao chegarmos próximo dos carros minha bela companhia da noite se volta para mim e assim trocamos as últimas palavras. Ela então disse:

- Gostei muito da tua companhia.

- Eu também. Me desculpa se minha cabeça não estava muito legal hoje. Sabe, não consigo disfarçar muito.

- Eu percebi.

- É, eu percebi que tu percebeu.

- Rssssss.

- Mas gostaria muito de voltar a conversar contigo. Te conhecer melhor.

- Eu também. Mas hoje não poderei te acompanhar. Sabe, estou com minha irmã e minha filha. O que iriam pensar? Rssssss.

- Ah, sim. Claro.

Então nos despedimos.

Por alguns momentos, aquela sensação me deixou leve e confiante. Leve porque estava livre para fazer e estar com quem bem quisesse de forma despreocupada, pois aos poucos estava percebendo que não mais teria que dar satisfação a ninguém, me livrando de fazer coisas e hábitos adquiridos com o tempo. Confiante, porque me senti novamente um homem desejado e cortejado, ainda mais por uma bela mulher como aquela. Qual homem não se sentiria bem depois de estar com aquela agradável companhia? Tudo isso fez com que por aqueles instantes eu me esquecesse dela, me dando conforto e fazendo com que um belo sorriso surgisse em meu rosto. Talvez, pensei naquele momento, fosse a hora de realmente aceitar que o jogo continuaria e que deveria tocar a bola para frente. "Vida que segue", pensei.

Combinei de ainda naquela semana entrar em contato com ela. Me despedi dos demais a fim de me dirigir ao meu carro para ir embora, mas não antes de apreciar aquela mulher linda caminhar mexendo seus quadris ao firmar pé ante pé com seus saltos altos na medida em que meu grupo de amigos se distancia. Esperei todos desaparecerem na penumbra da saída do estacionamento para finalmente puxar meu maço de cigarros do bolso e acender um. Mais uma vez vejo aquele hatch preto ao seu lado do meu carro lembrando que ela ainda está lá dentro, quando me recosto na sua traseira para calmamente terminar de fumar meu cigarro. “Que noite”.

Quando abro a porta do carro para nele adentrar, percebo algo preso no seu para-brisa. É um guardanapo de papel cujo cuidado na sua colocação entre as varetas limpadoras para que não caísse ou voasse com o vento era nítido. Eu o retiro e percebo algo nele escrito, com uma letra feminina para lá de conhecida, a dela. Então, naquele momento juntei várias pecinhas daquela noite. Seria tudo imaginação, coisa da minha cabeça, de um cara que vive alternando entre a baixa estima e a ilusão de ter encantado uma mulher? Bem, minhas conclusões estavam mais para o factível do que para apenas coisas da minha cabeça, uma vez que estava com um pedaço de papel na minha mão com uma mensagem escrita com sua letra cujo conteúdo é inequivocamente direcionado para mim. Ao ler aquilo, todo o conforto e sensação de paz que havia conseguido junto aos meus amigos e àquela morena linda na última meia hora tinham ido para o beleléu.

Talvez, portanto, eu não tenha sido apenas mais um homem na vida dela, mas, quem sabe, alguém que tenha lhe marcado de modo especial ou mesmo que não conseguisse fazê-la esquecer por completo. Sei lá! Por todo o tempo juntos suas palavras comigo sempre foram fortes, impositivas e até mesmo intimidadoras. “Nunca seremos amigos se acabarmos”. Você vai ser só mais um e eu também”. Coisas do tipo... Quanto a isso, eu aceitei. Aceitei sua indiferença caso um dia fossemos um para cada lado, da mesma forma como ela previa que eu acabaria por agir da mesma forma com ela. Palavras duras, fortes e ásperas que mais pareciam um soco no estomago quando ela falava daquele jeito comigo.

Agora isso.

Esse guardanapo e essas palavras. A bem da verdade é que um grande sorriso se abriu em meu rosto. Dei uma pequena e gostosa risada sozinho ao mesmo tempo que meus olhos se enchiam d’água, numa mistura de emoções que só me fizeram ter mais vontade de viver. Aos que passavam pelo estacionamento, talvez vissem a cena com certo espanto, por isso me apressei a entrar no carro e ligá-lo, mas sem ainda o manobrar para ir embora, entrando numa letargia para apreciar aquele pedaço de papel e tentá-lo entender. A compreensão daquela mensagem era simples, pensando bem agora, mas a sutileza de suas ações me deixaram embasbacado. Ora, naquele momento em que ela anunciou que iria até seu carro em voz alta e clara para que todos ao entorno ouvissem, inclusive eu, a despeito de seu timbre de voz ser naturalmente alto, era tanto para pegar no carro a correntinha que lhe dei e vesti-la quanto para depositar essa mensagem em meu para-brisa. Sim, ela estava com um guardanapo na mão quando saiu. Claro! Isso também significa que, ela me viu desde quando cheguei no bar, ao contrário do que imaginara, e ficou espreitando com quem eu estava e o que estaria fazendo. Ela não me desdenhou, não mesmo, e sim utilizou uma habilidade feminina que sempre soube existir: a de observar, e acompanhar uma situação com total discrição, de forma que ninguém, nem mesmo quem as estiver acompanhando, fosse capaz de perceber.

Sim, foi isso que aconteceu. Ela me notou! Ela me notou!

Afinal de contas, o que me trouxe a esse bar essa noite? O que fez eu conhecer aquela mulher linda que sentou comigo, foi minha companhia por toda a noite e demonstrou todo aquele interesse em mim no mesmo lugar onde uma paixão tórrida, uma página virada, que já teria se dissipado vem a se manifestar de maneira tão singular? Isso é destino? Se for, ele só pode estar brincando com a minha cara.

E aquela mensagem? O que é aquela mensagem?

Seria só uma brincadeira para lembrar e cutucar sobre nossa deliciosa aventura ou seria algo bem mais sério que para ela não se acabou? Não sei. Talvez, ela queira que eu entre em contato e a faça essa pergunta. Mesmo que, no único contexto que poderia estar em nossa história, a frase “não abusa da minha paciência” viesse a ter apenas um significado.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Apenas uma forma de amar



O que fazer quando as palavras faltam ou simplesmente o pronunciar delas não é o suficiente para descrever aquilo que se sente?

Foram anos tentando entender tudo isso para que um dia, se tivesse a oportunidade, te dizer algo a respeito.

É verdade que nunca me esforcei muito para entender. Talvez porque, à medida que o tempo passava, tinha presente comigo que ele se encarregaria de tudo, quando a inocência em nossas vidas daria lugar às experiências maliciosas, dolorosas e cruéis que a maturidade iria apresentar.

Mas não, não se apagou.

Como uma centelha na lareira teimosa em não se apagar, sempre lá estava aquela lembrança: brilhando e ardendo, num cantinho secreto em nossos corações. Por mais fraca que pudesse estar ou que parecesse destinada a se apagar, bastaria um simples sopro para reavivá-la. E assim ela permaneceu por todos esses anos, e nunca se apagou

Foi uma grande paixão adolescente, não tenho dúvidas disso, daquelas de dar febre. Naqueles dias quase não dormia a noite me revolvendo na cama lembrando de teu sorriso, mesmo quando o coração parecia querer saltar do peito quando te via descendo as escadas abraçando os livros escolares ou sentada com as colegas nos bancos do pátio. Aquele “oi” de voz suave e levemente rouca nunca sairia da minha cabeça. Cada dia a espera ansiosa pela chegada do recreio para poder ouvi-lo. Me lembro que era um garoto envergonhado, encabulado até a raiz do cabelo, sem um mínimo de coragem para sequer segurar tua mão, quem diria um beijo.

Ah sim, o beijo. Hoje me tomo a rir sozinho quando me recordo desse delicioso momento: o dia em que me enchi de coragem e a ti lhe perguntei em voz tremula se podia lhe dar um beijo. E tu dissestes “sim”.

“E agora, o que faço?”

Meu Deus, eu não sabia como chegar perto de ti, muito menos como te abraçar. Por sorte tu fizestes isso por nós ao se aproximar e entrelaçar teus braços em meu pescoço. Então senti teu perfume e o calor de teu corpo. Sim, tu também estavas nervosa.

E assim nos beijamos. Um beijo breve, totalmente sem jeito, mas não menos apaixonado. Depois disso, um abraço, o mais longo abraço que poderíamos nos dar. Não vimos o tempo passar. Dez, quinze, vinte minutos... não sei. Só não queria que acabasse. Não queria que tu saísse de meus braços.

Não éramos donos de nossos narizes, pois ainda éramos crianças, eu com quatorze e tu com treze anos. Até hoje não perdoo meus pais por me trocarem de escola. “Lá estavam todos os meus amigos” eu dizia e eles, sempre escondendo o real motivo pela minha relutância na mudança. Até hoje lembro do quanto chorei escondido no pátio do colégio e fui flagrado pelo zelador da escola. Não foi difícil dissimular e dizer a ele que minhas lágrimas eram por causa da troca de escola, ao invés de falar a verdade sobre o que realmente estaria deixando para trás.

E assim o tempo foi passando. Já não conseguia te ver todos os dias, senão cruzando contigo de vez em quando pelas ruas, pois para piorar ainda éramos vizinhos de bairro. Estávamos em diferentes escolas e já não tínhamos mais amigos em comum. Aos poucos tua lembrança ia se enfraquecendo a medida em que raramente nos víamos. Parecia que o tempo de fato faria seu trabalho e aquele amor adolescente se dissiparia.

Aos poucos percebia o quanto estávamos ficando cada vez mais diferentes e por consequência mais distantes. Virei roqueiro, guitarrista de banda, cabeludo e tatuado, um rebelde sem causa ainda sem gostar muito de estudar. Ao contrário de ti, bailarina, educada e amante dos livros, a menina doce e de refinada educação, como sempre. Minha juventude, regada a bebida, rock’n roll e festas na qual minhas atitudes enlouqueciam meus pais contrastava com a tua, com apresentações de ballet, aulas de piano, viagens europeias, intercâmbios estudantis e bolsas de estudo mundo afora. Já tínhamos estilos diferentes de ver o mundo, o que me deixava claro o quão distante nos tornamos. Me imaginava como seriamos se um dia nos tornássemos de fato namorados, noivos ou até mesmo marido e mulher. Não tinha como, não encaixávamos. Mesmo assim, de alguma forma tua lembrança sempre esteve viva e em meus pensamentos.

Seguimos adiante, cada um com a sua vida: nos formamos, nos casamos, constituímos famílias, criamos diferentes círculos de amigos, deixei minha rebeldia de lado e amadureci. Vibrei com tua entrada na faculdade, com teus sucessos pessoais, mesmo que não tivesse certeza que tu pudesses sentir o mesmo comigo. Virei gente, homem responsável e pai de família, e assim tornamo-nos realizados e felizes. Era nítido o amor gerado por ti junto a teu marido e teus filhos, assim como ocorreu comigo. Minha esposa aliás, sempre soube de tua existência, pois desde o começo expus todos os momentos especiais em minha vida e a ela apresentei teu nome. Tu nunca foste, no entanto, motivo de ciúmes ou de qualquer incerteza junto a ela, assim como tenho certeza do mesmo de tua parte para com teu esposo, pois éramos apenas uma doce lembrança adolescente para ambos.

Dessa forma, nossas vidas tornaram-se paralelas e destinadas a assim seguirem, sem haver um vislumbre para que ambas novamente se encontrassem. Na verdade, sempre tive receio disso, pois não queria de forma alguma acabar com toda essa magia do mais puro e inocente sentimento que nutri em minha vida.

Aí veio a internet. Oh, tecnologia maravilhosa! A cada foto, cada postagem minha um “like” seu. E vice-versa. Uma sensação gostosa. Nada de mais, claro, senão a demonstração de um enorme carinho e atenção que tu nunca deixaste de demonstrar. Ao menos agora poderíamos saber um pouco mais e assim compartilhar e admirar os acontecimentos na vida de cada um de nós. Foi muito legal quando publiquei uma foto de meu certificado de conclusão do meu curso de mestrado quando tu fostes a primeira a curtir, da mesma forma como te felicitei junto as fotos publicadas por ti do nascimento de teu filhinho e de tua formatura. Muito bacana, mesmo a distância e na forma paralela como nossas vidas se desenvolveram, podíamos nos ver.

E o teu aniversário? Nunca esqueci do dia vinte e quatro de novembro, mesmo nunca podendo te dar os parabéns. Ao menos até agora. Toda o cuidado tinha que ser tomado. Os melindres não poderiam surgir, dúvidas não podiam ser geradas, mas eu tinha que fazer. Até que nesse dia, há dois anos, tomei coragem e te mandei uma mensagem de parabéns. Algo simples, discreto, privado e sem malícia alguma, tal qual sempre foi nossos breves olhares e trocas de palavras. Minha alegria quando tu respondeste, não com relativa secura a qual não estranharia se assim fizesse, mas com alegria e atenção que me surpreenderam. Sinceramente, nunca gerei expectativa alguma em sentimentos teus para comigo aos dias de hoje, mesmo que alguma manifestação tua pudesse me dar abertura para tal. E assim nos víamos, e assim nos tínhamos: a distância, zelosos com as palavras, mas não menos atenciosos entre nós.

Mesmo assim, apesar de todo esse tempo, apesar de toda a pureza que sempre permeou a relação de nossas almas, sempre quis te perguntar. Sempre quis saber, afinal de contas, o que tu sentias por mim. Eu precisava saber, mesmo que isso não fosse mudar nada em nossas vidas.

E tu, será que, se tivéssemos essa oportunidade, farias essa pergunta mim? Se a fizesse, fico pensativo no que te responderia. “Não sei”, seria a primeira resposta a vir em minha boca. Aliás, já respondi isso para alguém que um dia me perguntou, uma amiga em comum. Disse a ela que não saberia descrever, pois é algo difícil de encontrar palavras para tal. Minha própria esposa já me fez essa pergunta e a ela disse “nada demais”. De certa forma, não menti, pois nunca mais a desejei como uma paixão, nunca mais desejei seu corpo ou seu coração só para mim. Não, a ela eu não menti, e acho que entendeu. Até mesmo porque não trocaria tudo que até então construí por mais uma aventura, pois isso não deixaria de ser. Preferiria, portanto, manter tudo como está, da forma como temos hoje: algo distante, uma lembrança, um carinho.

Eu sei, eu me penitencio. Todas as coisas na vida as quais me arrependi não foram aquelas que fiz, mas as que deixei ou levei muito tempo para fazê-las. E agora não podia ser diferente. Poderia ter tomado essa atitude a muito tempo atrás e com isso poria um fim a essas dúvidas, que volta e meia teimavam em surgir em minha memória. Ou talvez, seria meu intrínseco e inconsciente desejo de sempre cultivar essas constantes dúvidas? Quem sabe. Se nem eu mesmo consigo responder isso, quem mais poderia?

É verdade que, eventualmente trocávamos mensagens nas redes sociais, mas, como já disse, todas superficiais, leves e até mesmo um tanto formais, o suficiente para nutrir alguma ligação, algum contato, mesmo que apenas a vista dos atuais meios digitais. Então, de uma forma astuciosa de minha parte, me cerquei de certezas para que não ouvisse – ou lesse – um “não” de tua parte, e a ti sugeri que nos encontrássemos para finalmente olhar em teus olhos e dizer e perguntar tudo aquilo que a quase trinta anos consumia um cantinho do meu coração. Tua expressão afirmativa para tal me encheu de euforia ao mesmo tempo que me tomei da ciência de manter-me austero, calmo e até mesmo cético com o que poderia ocorrer. E como faríamos isso, me perguntava, pois somos conhecidos em todo os cantos que possamos nos apresentar? A visita profissional que te faria em teu local de trabalho seria um bom pretexto.

Mas não foi dessa forma que aconteceu, não é mesmo? Tu fostes embora e na tua despedida eu não tive como participar. Apenas aqueles do teu círculo de convívio puderam lá estar e eu não tinha como. Então tu partiste, e não conseguimos nos ver a tempo. Percebi então que minhas perguntas a teu respeito não mais poderiam ser respondidas. Tudo, enfim, se tornaria uma forte, doce e apaixonante lembrança e nada mudaria isso.

Mesmo assim, eu não poderia deixar de tentar. Eu precisava conversar contigo. Eu precisava te dizer, eu precisava te perguntar. Seja qual fosse a forma, eu precisava fazer. E agora aqui estou, diante de ti, de teu túmulo, na última forma que me resta de em paz poder ir ao teu encontro, mesmo tendo teu silêncio como resposta.

Aqui estou agora, em pé diante de ti. No momento em que teria todo o tempo do mundo e ninguém para me importunar minhas palavras somem, meus pensamentos se acomodam, meu coração sossega. O sol mágico do fim da tarde está iluminando a tua foto onde consigo ver o mesmo sorriso de quando tu tinhas treze anos. Sem nenhuma palavra dita ou ouvida na companhia do vento norte sobre as árvores, tu, de uma forma que nunca irei entender, responde, como num estalo de dedos, todas aquelas perguntas que um dia eu teria a te fazer. Nesse momento, tu conseguiste fazer-me lembrar de todas essas e ao mesmo tempo respondê-las. Tu me fizeste agora ver que sempre tive as respostas comigo.

Tudo o que construímos, muitas vezes sem sabermos que estávamos fazendo. Tudo o que vivemos e sentimos juntos e ao mesmo tempo distantes um do outro. Todos os sonhos compartilhados entre nós, mesmo que não soubéssemos. Uma forma diferente de querer alguém mesmo à distância, por entre as diferenças que a vida nos impôs, de forma silenciosa, pura e sincera.

Sim Cecilia, agora eu sei. Tudo isso nada mais foi do que apenas uma forma de amar.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Anjos da Noite




Odeio 12 de junho.

Odeio!

Ai, que ódio! Quando vou poder me sentir normal? 19 anos e sem namorado.

Droga, mais um dia dos namorados sozinha. Deveria ter me acostumado já, mas aí me pergunto: acostumada com o quê, se eu nunca tive um namorado? Não tô nem falando de beijinho, amasso, ou mesmo de transar, até porque nem sei o que é isso ainda. Só queria um namorado, uma companhia, um colinho, alguém que segurasse a bacia de pipoca. Não tem como não pensar que o problema é eu mesma. Aí me olho no espelho, será que é por isso: meu cabelo azul, batom roxo, meia arrastão, saia rondada, coturno, piercing no supercílio...?

Ah que se dane. A mãe já disse que é esse meu visual que afugenta os guris, que sou muito louca, barulhenta. Só não sabe que nenhum daqueles grupinhos de nojentinhas do colégio me aceitou até hoje e que sempre tive pouquíssimos amigos. Eu era a estranha de aparelho, com a cara cheia de espinhas, óculos e gorda. Em algum buraco eu tinha que me esconder.
Se bem que, isso foi há 4 ou 5 anos. Tá certo, muita coisa mudou. Até que estou aceitando meu corpo agora, ao menos me gosto do que vejo no espelho, meu bumbum aé que fica bonitinho com numa calcinha fio-dental. Já o aparelho e as espinhas são lembranças horrorosas do meu recente passado.

Acho que realmente mudei um pouquinho, e para melhor. Ao menos é que o espelho e os likes nas redes sociais dizem... Ao menos.

Mas então, por que diabos estou sozinha? Não posso ser tão assustadora assim, não sou de outro planeta.
Ai, como eu queria ter o Stefano para mim. Não tem como não sonhar com aquele garoto. É fácil reconhecer ele chegando no clube, sempre dou um jeito de sair uns minutos antes da academia para ver aquele estilo desportista, sempre de agasalho e mochila, entrando em direção ao vestiário da piscina. Ele é lindo! Usa óculos. Adoro garoto que usa óculos. Mas quando os tira e vejo ele só de sunga quando vai nadar, nossa. Só me resta morder os lábios e sonhar.

Como eu queria aquele moleque pra mim. Mas...

O jeito é fazer essa noite dos infernos passar logo. Eu Odeio o Dia dos Namorados!

- Boa noite mãe, durma bem. Sim, não vou esquecer de deixar a luz do corredor acesa. Vou ficar um pouco acordada lá no quarto, estou sem sono. Vou ver se acho alguma coisa para fazer. Beijo.

Vou ligar essa porcaria de notebook. Ouvi dizer que aquelas salas de chat das antigas que a mãe acessava ainda são um pouco divertidas. Quem sabe eu dê umas risadas e faça essa porcaria de noite passar logo. Vamos ver aqui: Chat...Salas...Sei lá... Solteiros... Ah, vai ser essa. Meu nickname vai ser, deixa ver: “Freyja”. Pronto, foi... vamos ver o que eu encontro aqui.

Imediatamente alguém virtualmente me aborda. Então, inicio a frenética digitação das conversas de forma mnemônica desrespeitando toda e qualquer regra gramatical.

Prisco: “Boa noite, quer tc”?

Freyja: “oi, boa noite. Claro pq não?”

Prisco: “Muito bem, de onde você é?”

Freyja: “Porto Alegre, RS, e vc?”

Prisco: “De vários lugares, nesse momento estou em Lisboa”

Freyja:”ah então vc é português?”

Prisco: “Não não. Apenas por um tempo aqui”

Freyja:”hum, idade?”

Prisco: “Pareço com um homem de uns 30 anos”

Freyja: “como assim, parece?”

Prisco: “Sou mais velho do que aparento”

Freyja:”ah sei. Casado?”

Prisco: “Já fui, muitas vezes.”

Freyja: “nossa. como assim? Não deu certo com nenhuma?”

Prisco: “Rssss, mais ou menos. Eu penso que sim, deu certo muitas vezes. Ao mesmo tempo que não. E vc? Solteira?”

Freyja: “sim, encalhada rssss. to nessa sala por causa disso. Em pleno 12 de junho sem ninguém. que ódio. que raiva. todas minhas amigas com namorado menos eu. Ai...desculpa, to chateada. desculpa o desabafo.”

Prisco: “Está tudo bem. Imaginei que algo do tipo tivesse passando com você. Uma menina em pleno 12 de junho numa sala de bate-papo”

Freyja: “como sabe que ainda sou menina?”

Prisco: “Desculpe, apenas supus. Mas vou tentar adivinhar. Você deve ter uns 20 anos.”

Freyja: “sim, 19. Vc tá fazendo o que aqui? “

Prisco: “Meus hábitos são noturnos. Optei por viver a noite de forma plena.”

Freyja: “uau, então estou falando com um vampiro? Rssss”

Prisco:” E se eu fosse? Me responda uma coisa: por que Freyja?”

Freyja: “deusa da magia”

Prisco: “Ah sim, o panteão nórdico”

Freyja: “Simmmmm. Acho que já sacou minha vibe, ne?”

Prisco: “Sim, é moda hoje ser viking. Aqui ne Europa também é uma febre entre os jovens.”

Freyja: “e vc? o que significa seu nickname?”

Prisco: “Meu o quê?”

Freyja: “seu apelido. o q significa Prisco?”

Prisco: “Sim. Na verdade não é apelido. É meu nome mesmo. Acredito que tão diferenciado, não haveria problema em usá-lo. Até mesmo porque não há o que esconder.”

Freyja: “então é seu nome?”

Prisco: “Sim, meu nome é Prisco. Muito prazer.”

Freyja: “igualmente, mas não vou dizer meu nome rsssss. ta diz aí, como assim viver a noite?”

Prisco: “Me sinto mais confortável a noite para trabalhar, ler, conversar”

Freyja: ”trabalha com o que:”

Prisco: ”Minha família tem muitos negócios. Temos muitos imóveis aqui pela Europa. É de onde vem meu sustento”

Freyja: “Humm, tá mas não entendi algumas coisas. perguntei que idade tinha e vc não falou. agora esse papo de negócios da europa. olha, se quer tirar onde, to caindo fora. o jeito como escreve ta parecendo um guri de poa mesmo.”

Prisco: “Sim, entendi você. Não estou zombando. Vou tentar explicar. Morei em muitos lugares, inclusive no Brasil por muitos anos. Nasci na Alemanha, mas tenho muitas nacionalidades. E minha idade, se eu lhe contasse acho que não iria acreditar.”

Freyja: “pq não? mas se não quer falar, td bem. então me diz: como você é?”

Prisco: “Fisicamente?”

Freyja: “Sim”

Prisco: “Depende”

Freyja: “como assim?”

Prisco: “Depende da pessoa e do que sinto por ela. Se gosto dela chego a parecer um anjo. Caso o contrário, minha aparência pode chocar.”

Depois de mais de hora de conversa, por algum motivo súbito, o tom das palavras daquele cara cujo pseudônimo – ou nome real - era “Prisco” mudaram de uma forma leve e agradável para uma sombria e apavorante. Parei uns minutos com os olhos vidrados no monitor lendo e relendo aquela última mensagem. Aquilo mexeu comigo. Não sei se esse cara estava tirando onda, mas sei que atiçou minha curiosidade e agora, gostaria de ir mais longe e descobrir o máximo dele.

Freyja: “nossa, me assustou. se descreva vai. fiquei curiosa”

Prisco: “Se eu me apresentasse a você, veria um homem alto de pele clara. Tenho m torno de 1,85m e meu porte é atlético. As mulheres que me conheceram me consideravam muito atraente”

Freyja: “xiii, pelo visto tem gente que se acha. qual a cor de seus olhos, castanhos, azuis, verdes”

Prisco: “Nenhuma dessas cores”

Freyja: “ah não inventa. Vai me dizer que são vermelhos que nem um vampiro agora?”

Prisco: “Não não, rsssss. São cor de âmbar.”

Abro uma página em paralelo no browser do notebook para pesquisar e ver o que são olhos cor de âmbar. Nossa! Que lindos!

Freyja: “uau! Que lindo. Pesquisei aqui.”

Prisco: “Obrigado, é herança genética. A aldeia onde nasci predomina essa característica”

Freyja: “qual sua idade?”

Prisco: “Que tal falar um pouco de você agora? Mora sozinha?”

Freyja: “não, moro com minha mãe.”

Prisco: “Você não tem pai, não é?”

Freyja: “como sabe?”

Prisco: “Apenas um palpite, a considerar que você disse morar com sua mãe. Logo deduzi a ausência do pai.”

Freyja: “sim, mas morar com a mãe não significaria que não teria um pai, eles poderiam ser separados”.

Prisco: “Como disse, foi um palpite”

Freyja: “tudo bem”

Prisco: “Pode falar sobre isso? Sobre não ter um pai?”

Freyja: “ah pra mim é tranquilo. não sinto tanto pq nunca tive. não conheci meu pai. minha mãe também não fala sobre ele, eu pergunto mas ela nunca responde então não forço. pq esse interesse todo?”

Prisco: “Nada demais, não se assuste. Eu gosto de ouvir a história das pessoas, apenas isso. Fale mais de você. Descreva sua personalidade”

Freyja: “tá bem. sou uma nerd.um tanto anti-social pq nem tenho muitos amigos, gosto de ler, de assistir filmes, curto um som pesado.”

Prisco: “Heavy Metal”

Freyja: “yes. Gosto de um som pesado e denso, melancólico. Tipo Lacuna Coil, Tristania, Within Temptation e Nightwish”

Prisco: “Desculpa, estou bastante desatualizado. Nunca parei para apreciar esse estilo, tampouco sou familiarizado com os artistas desse meio.”

Freyja: “são estilos de música gótica. Sabe anjos da noite, trevas, frio, lua cheia, vampiros, etc...”

Prisco: “Ah, sim a escola ultrarromântica. Como os contos de Edgar Allan Poe”.

Freyja: “vc tb curte Alla Poe?”

Prisco: “Já li alguns textos dele”

Freyja: “show”

Prisco: “Então aprecia a subcultura gótica?”

Freyja; “gosto da estética. me visto um pouco assim. se me visse no dia-a-dia pensaria que eu saí de uma capa de um cd dessas bandas. Kkkkkk. mas não se preocupe, só me visto como uma vampira, não mordo.”

Prisco: “Tenho certeza disso. O que sabe sobre eles?”

Freyja: “quem”

Prisco: “Vampiros, você disse que adora se vestir como um”

Freyja; “ah sim,ao menos como a gente ve em livros e cinema. é como eu disse antes, gosto da estética apenas. Pq? Vai me dizer que eles existem agora”

Por uns instantes, fiquei com um pouquinho de medo. Não tinha como não fantasiar certas coisas depois daquela pergunta que ele me fez. “O que sabe sobre eles?”. Então um cara de longe e desconhecido que recém conheci numa sala de chat me pergunta uma coisa dessas no início de uma madrugada. Só podia me dar um arrepio na espinha. Mas, ao mesmo tempo em que me assustei, uma certa excitação me tomou conta, como se quisesse saber um pouco mais sobre aquele homem e iniciar uma pequena aventura entre as palavras. Era um papo gostoso, porém era nítida a diferença entre nós. Dava para ver o quão mais velho ele era em relação a mim e como ele estava um tanto desconexo com os assuntos da atualidade. Parecia alguém que se trancou anos numa biblioteca, mesmo que sua forma de se comunicar pelo chat não deixasse tanto a desejar, como se já tivesse uma certa tarimba daquele ambiente.

Prisco: “Os vampiros de certa forma existem sim. Mas não como aqueles descritos na literatura. Eles não viram morcego e nem bebem sangue. Mas se alimentam de outras coisas”

Freyja: “interessante, mas como assim?”

Prisco: “É que na verdade, o conceito de vampiro é o de um ser que se alimenta das essências vitais de outros seres, não necessariamente sangue. Nesse caso, existem muitos vampiros emocionais e psíquicos. Eles podem roubar de você muitas coisas, inclusive a vontade de viver das pessoas”

Freyja: “credo, eu hein. como sabe de tudo isso. vc curte vampiros também, pelo visto.”

Prisco: “Não “curto” essas pessoas, pelo contrário. Afinal, elas foram más, e pela maldade elas mantém-se vivas”

Freyja: “acredito.”

Prisco: “Talvez não acredite, mas sou um vampiro”

Freyja: “hein? tá bem. fez bobagem então”

É claro: havia entendido a analogia do vampiro como uma pessoa má e, de certa forma, já havia lido algo de que ser um vampiro poderia significas coisas bem diferentes, como pessoas sem escrúpulos, que não dão um mínimo de importância para com as outras pessoas. Mesmo assim, já estava um pouco arrepiada com o rumo da conversa com aquele indivíduo que aos poucos ia se demonstrando mais misterioso e soturno.

Aí ele me escreve aquilo.

Prisco: “Sim. Já fiz muita coisa de ruim para as pessoas. Estou cansado disso.”

Freyja: “ta me assustando mas tb fiquei curiosa. pode contar mais?”

Prisco: “Posso sim, é importante para mim compartilhar essa dor. Fiz muitas coisas ruins, garota. Magoei pessoas, enganei pessoas, entre outros pecados maiores que não vou ousar relatar-te. Eu nunca me arrependi de nenhum deles”

Freyja: “será que estou falando com um criminoso?”

Prisco: “Crimes são aqueles atos errôneos aos olhos dos homens. Eu tenho pecados. Enquanto não me arrepender deles, estarei com minha alma ardendo em brasa e àqueles que atingi.”

Agora sim, fiquei com medo. Meu coração disparou. Depois de uns instantes me acalmei, olhei para os lados e percebi que nada poderia acontecer comigo e que eu poderia estar apenas conversando com um espertalhão se passando por um vampiro com crise existencial. Então resolvi continuar aquela conversa me propondo a não demonstrar minha tensão. Agora sim, queria ir mais a fundo e ver onde aquele papo iria chegar.

Freyja: “nossa, como vc é dramático rsssss”

Prisco: “Não teria como me expressar diferente. Mas estou disposto a resolver e aparar essas arestas hoje mesmo, nessa noite. Foram muitos os pecados que cometi durante muitos e muitos anos. Já está na hora de me arrepender deles, menos de um.”

Freyja: “qual?”

Prisco: “Gosta de flores?”

Freyja: “ah não sou lá uma grande apreciadora, mas me agradam”

Prisco: “Que tal rosas brancas?”

Freyja: “rosas brancas?”

Prisco: “Sim, significa beleza e pureza. Nada muito passional, porém não menos delicado”?

Freyja: “que legal, nunca tinha parado para apreciar elas”

Prisco: “Combina com você”

Freyja: “será?”

Prisco: “Tenho certeza disso”.

Freyja: “qual pecado?”

Prisco: “Digamos que foi um roubo”

Freyja: “roubo?”

Prisco: “Está na hora de devolver certas coisas a alguém. Estou farto do meu próprio egoísmo. Vivemos em mundos opostos. Não tenho como sequer toca-la.”

Freyja: “só podia ser mulher. que excitante. deixa eu adivinhar, vc ama ela mas ela não”

Prisco: “Não, ambos nos amamos. Mas minha possessividade doentia praticamente a amaldiçoou. Eu sou um ser das trevas garota, não percebeu ainda?”

Freyja: “nossa, amaldiçoou!!!! pelo visto sua autoestima está mais baixa do que a minha”

Prisco: “Não se trata de autoestima. Se trata de reconhecer os erros e admitir o inevitável. Quanto a ti, posso garantir que tua autoestima não será mais problema em breve”.

Freyja: “rsssss amém parceiro”

Prisco: “Acho que está bastante tarde. Você precisa descansar”

Freyja: “nem tanto. podemos continuar o papo. gostei de você. é bastante misterioso. além do mais, nunca conversei com um vampiro antes, rsssss.”

Prisco: “Acredito. Preciso lhe dizer algo, já que estamos nos despedindo”

Freyja: “ah já vai? pelo visto não é bem eu que estou cansada. Mas pode falar”

Prisco: “Pode parecer que nada tu possas fazer, mas ao menos saber sobre meus arrependimentos para mim é o suficiente: a todos que mal eu causei peço o perdão. Me arrependo de cada um deles, menos de você”.

Freyja: “tá bem. Não entendi o que quer dizer, mas tudo bem. Viu, gostaria de conversar mais vezes contigo.”

Prisco: “Se assim desejar, poderemos sim Não sabe o prazer que terei. E Serei muito grato a ti por isso”.

Freyja: “Mas mata minha curiosidade”

Prisco: “Pergunte”

Freyja: "quem foi esse seu grande amor?"

Prisco: “Era uma moça linda que errou. Sem saber ela cultuava o mal. Digamos que ela era uma bruxa. Uma bruxa que não soube enxergar a linha tênue entre o bem e o mal da magia que ela começou a praticar percorre. Eu apareci na vida dela por causa disso. Elas me chamam e para elas eu apareço, como em inúmeras outras vezes. Roubei seu coração e sua alma e hoje ela sofre. Eu não podia ter feito isso com ela. É só isso que posso dizer, o resto creio que você não irá compreender.”

Freyja: “ultima pergunta Prisco, sua idade?”

Prisco: “318”

Freyja: “??????????”

Silêncio. Não sei o que dizer. Já não sei se estou diante de um esquizofrênico, de um fanfarrão ou de um apaixonado cheio de metáforas e retóricas.

O despertador do celular toca acusando já 6:30 da manhã e o fato de tê-lo esquecido ativado, mesmo que hoje viesse a ser domingo e, portanto, sem compromisso matinal algum. Me vejo só de calcinha e debaixo de meus edredões, algo normal, a considerar que durmo desse jeito todos os dias. Começo a me despertar preguiçosamente aos poucos me lembrando de um bate-papo estranho e misterioso. Imediatamente procuro com os olhos meu notebook que repousa desligado sobre minha escrivaninha. Aos poucos vou me lembrando de detalhes, de palavras, de reações, ...

Mas era apenas um sonho.

Não há sinal algum. Nenhum rastro digital, nada. A sala de chat sequer existe. Nenhum...Como era mesmo? “Priscos”. Sim, esse era o seu nome.

- Bom dia dorminhoca.

- Bom dia mãe. Como você está diferente?

- Como assim filha?

- Mãe, nunca te vi com esse sorriso. Nossa mãe, como você está bonita, está brilhante.

Era uma manhã de domingo. Um domingo muito diferente. Minha mãe estava de fato com um semblante lindo e brilhante como eu nunca tinha visto antes. Aquele sonho maluco não saia da minha cabeça e ver minha mãe daquele jeito só atordoou mais meus pensamentos.

Também pudera. Via minha mãe desde sempre melancólica e deprimida. Diagnósticos de ansiedade e Síndrome do Pânico segundo psiquiatras. Desde criança a vejo entre idas e vindas a consultórios médicos e psicólogos e muita medicação. Hoje penso inclusive que, se minhas atitudes ou posturas venham a ser um pouco rebeldes ou fora do esquadro social, talvez reflitam tudo o que passei durante toda a minha vida junto a minha mãe.

Ah, mãe, que exemplo, minha rainha. Professora de mão cheia, batalhadora e de um caráter sem igual. Todas as virtudes que procuro numa mulher, senão sua constante e aparentemente eterna tristeza. Por que ela não abre o jogo pra mim? Por que não conta suas mais profundas aflições? Eu bem que já tentei, mas em vão. Mas hoje nada disso mais importa, ali em minha frente posso jurar que estava vendo uma nova mulher, minha nova mãe, aquela que nem nas mais profundas orações ao Anjo da Guarda – a única oração que ela me ensinou – eu poderia ousar em pedir. Ali estava ela, como se acordasse de um grande e profundo pesadelo.

Resolvi apenas observar. Então ela se dirige novamente a mim.

- Filha, eu estava pensando: acho que podemos nos aproximar mais. A gente pode começar a conversar mais ne?

- Por que diz isso mãe, que estranho você pedir isso...

- Nada demais. Parei para pensar e acho que perdemos muito tempo afastadas. Acho que eu mesma perdi muito tempo. A tristeza me cansou. Além do mais, penso que podemos e devemos ser amigas. Você já é uma mulher, e eu não vi você crescer.

Sim, isso era verdade. Não nos falávamos, apesar de sermos apenas nós duas a vida inteira dentro daquele apartamento. Minha mãe se afundava em seu trabalho, com muitas pesquisas e muitas orientações a alunos e bolsistas dando pouca ou apenas a necessária atenção para que eu me mantivesse nos eixos. Eu percebia que ela sempre desejava me dar mais carinho, mas alguma coisa a impedia. O trabalho era apenas uma fuga para ela de algo que nunca compreendi, mas que a assombrava por todo o sempre. A referência masculina para mim nunca existiu em meu lar. Nunca conheci meu pai, minha mãe nunca falava dele e se recusava a isso, além de nunca ter demonstrado para mim interesse em algum outro homem. Talvez nunca a tinha questionado de forma mais severa por ser criança e toda e qualquer resposta bastaria. Mas agora eu tinha 18 anos e não engoliria qualquer bobagem.

No entanto, a partir daquele momento minha mãe passou a demonstrar um interesse e um carinho por mim como nunca. Eu estava assustada e sem entender absolutamente nada. Todavia, devo admitir que o que estava acontecendo em nossa casa era tudo o que eu mais desejava.

As surpresas daquele dia não acabaram por aí. Eram entorno das 20 horas quando minha mãe vem até mim e com um beijo em minha testa me deseja boa noite, e se recolhe a seu quarto. Bem, em primeiro lugar, ela nunca dormia antes da 01 hora da madrugada. Em segundo, ela nunca deixaria a luz do corredor apagada, tampouco a porta de seu quarto fechada. Porém, assim estava. A sensação era de que encontrara uma paz antes perdida, até mesmo para sua noite de sono.

O amanhecer de segunda-feira é como o anterior: estranho. Porém, não menos prazeroso. Nunca tive a companhia da minha mãe no café da manhã, mas dessa vez lá estava ela. Cabelo amarrado com um rabo de cavalo e um semblante sereno e altivo. Nossa, como minha mãe é linda!

- Bom dia mãe. Tô indo. Beijo!

Já eram 13 horas e 15 minutos. Indo para a aula de inglês com meus inseparáveis fones de ouvido vejo passar aquele garoto maravilho!

Ai, como eu queria aquele nerd, de óculos e tudo. Como pode um garoto tão lindo ficar mais lindo de óculos? Ah, como eu queria ele para mim. Mas, como sempre, ele passará por mim e sequer notará minha vã existência. Definitivamente não é para ser meu. Talvez “eu” não seja para esse mundo.

Mas hoje não!

Stefano não passou por mim, mas veio diretamente até mim. Pensei por um momento que seria por algum motivo bobo, talvez pedir uma informação ou um simples favor, mas não. Eu já havia ouvido sua voz, mas daquela forma, me deixou completamente surpresa, para não dizer embasbacada:

- Oi!

E eu respondi:

- O...Oi!

- Ah, desculpa,... É que.... Bom, não sou muito bom nisso sabe, mas...

- Tá tudo bem Stefano?

- Tá sim, é que... Bom... Fazia tempo que queria conversar contigo e...

Agora sim. A cereja do bolo. Não me faltava mais nada. Nunca na minha vida imaginaria isso acontecer. Quando iria eu imaginar o quanto ele poderia ser introvertido e encabulado? Então percebi que deveria agir de forma que ele ficasse o menos possível sem jeito.

Ai, fala duma vez guri...

- Sim, pode falar...

- Ah,... seguinte: quer ir no cinema comigo amanhã?!

- Eu? Eu?

- É.., sim. Por favor, não dá risada. Nossa, eu tô todo errado!

- Calma, não! Quer dizer, sim. Claro que sim. Gostaria muito!

- Posso passar na tua casa? Eu te busco as 16 horas.

- Voce sabe onde moro?

- Sim, sei.

- Como você sabe?

- Não vai pensar bobagem. Mas eu já te segui.

Não! Isso não podia estar acontecendo comigo. Eu só posso estar sonhando. Aliás, o que está acontecendo afinal?

O dia amanhece e mais uma vez tenho a agradável companhia da mãe no café da manhã.

- Bom dia filha!

- Bom dia mãe!

- Viu, eu tava pensando: poderíamos ir ao cinema hoje. Acho que nunca fizemos nada disso e faz anos que não vou a um cinema...

- Ai mãe, puxa eu quero muito, mas pode ser outro dia? Hoje não vai dar, já marquei um cinema com o Stefano.

- Quem?

- Stefano, meu colega de cursinho.

Do nada minha mãe começa a encher os olhos d’água sobrepondo sua mão em seu peito fazendo-se emocionar.

- Ai filha!

Bate as 16 horas e toca a campainha. Vou na sacada e lá está ele abanando suavemente para mim. Ao atendê-lo sou presenteada com um “oi” seguido daquele sorriso lindo. Mas uma surpresa maior me traria: Stefano estava sem óculos e somente agora pude reparar em seus olhos. Não eram azuis, nem verdes ou castanhos: eram cor de âmbar.

Tentei disfarçar a surpresa ao mesmo tempo em que flashes de um sonho maluco são relembrados aos poucos.

- Vamos?

- Sim, vamos! Peraí, deixa eu pegar minha bolsa e retocar o batom. Não te importa com batom roxo né?

- Não, não (risos). Aliás, é seu charme, sabia? Mas antes, posso te dar um presente?

- Sim, claro.

Não havia reparado, mas Stefano estava com sua mão esquerda para trás desde que chegou. Então a estende:

- Para você!

- Nossa!

Eram duas rosas brancas.

Fiquei sem ação, e não menos encantada. O garoto dos meus sonhos me presenteando com flores. Gente, acho que vou desmaiar! Meu coração vai sair pela garganta.

- Nossa Stefano, são lindas! Mas por que brancas?

- Não gostou?

- Não, não. Adorei! Amei, amei, amei. É diferente. Todo o mundo dá rosas vermelhas.

- Sempre gostei de rosas brancas. Não sei por quê. Bem,...vamos?

- Sim, vamos. Peraí que vou guardar as flores.

Ele sequer me tocou, sequer conversamos mais do que uma dezena de palavras, e eu já estava em êxtase. Subi aquelas escadas como se fosse uma criança de sete anos correndo atrás da mãe. Queria mostrar para ela aquele presente e pegar uma dica de como mantê-las.

- Mãe, mãe, olha o que ganhei!...

Então vejo minha mãe na sacada soluçando de tanto chorar. Mas não era um choro de tristeza e sim de felicidade, de satisfação. Sim, era pura emoção e não havia como ela pudesse disfarçar. E notoriamente foi por minha causa. Minha mãe, a bela Izabel, de cabelos cor de fogo e cacheados que um dia penderam até a cintura estava emotiva ao ver sua filha finalmente cortejada, e agraciada com o mais singelo e emblemático presente.

Nesse momento comecei a entender as coisas.

- Mãe, o Stefano está lá embaixo me esperando. Pode guardá-las para mim?

- Sim filha, colocarei num vazo com água. Elas são lindas!

- Elas te lembram alguma coisa?

- Sim filha. Como sabe?

- Mãe, você nunca me disse isso antes. Agora preciso saber. Qual era o nome do meu pai?

- Por que essa pergunta agora Priscilla?