terça-feira, 28 de junho de 2016

O poço e as botas

Puxa...
Não tinha percebido que já era noite. Acho que tá na hora de dormir. Lavei minhas botinas de couro e as deixei para secar sob o para-peito do poço no fundo de casa, onde pega sol por mais tempo durante o dia. Acho que já devem estar secas.
Interessante! Acabo de ver que realmente escureceu. Como escureceu rápido! Céu limpo, crivado de estrelas. Uma bela noite, quente de verão. Lá no oposto do céu a lua cheia imponente a ponto de iluminar o velho pátio de casa.
A, esta casa: da minha família a mais de 60 anos. Existe à 80. Foi a casa paroquial antes. Volta e meia descobrimos segredos nelas, principalmente quando o reboco de alguma parede cai ou quando alguma parte da tinta se descasca, sem falar nas antigas moedas encontradas quando trocamos o assoalho. Alguns dizem que no porão da casa uma senhora morreu, quando estava sendo tratada pelo vigário da paroquia, escondida do resto das pessoas por estar sofrendo de tuberculose. Bobagem! nunca via nada, mas os arcos que sustentam as paredes, os antigos tijolos franceses maciços e o chão batido daquele porão dão mesmo um aspecto sombrio.
Enfim, adoro esse lugar e nunca vi nada que me assustasse de verdade, a não ser um gambá espertalhão que entrou para roubar algumas batatas do saco que o vô tinha comprado.
Ai, minhas botas.
Sabe duma coisa? Nunca tinha reparado direito nesse poço. O vô sempre pega água dali, todos os dias. E não tem jeito de convencer ele de instalar uma bomba. Não! Me lembro quando criança que ele não deixava de jeito nenhum que algum de nós se aproximasse dele. Ele dizia que era perigoso alguém cair e morrer afogado. Então eu e meus irmãos e primos sempre respeitamos. Talvez por isso esse poço tenha ficado esquecido, embora sua visão tenha se tornado a mais rotineira e comum, dentre tantos outros locais e formas que aquela casa tinha.
Então de longe começo a reparar naquele poço. Que interessante! Nunca reparei naquela mureta em torno do muro Agora, olhando bem, parece com aqueles poços de filmes: uma mureta de pedra, meia baixa, bem rústica. Na verdade, bem charmosa, daria para fazer boas fotos em torno daquele poço, bastaria ajeitar um pouco o cenário com algumas flores ou mais algum madeirame antigo com alguns baldes de latão velho, sei lá... Mas como não tinha reparado nisso antes?
Então, quando chego perto do poço, estando a dois passos dele, a escuridão da noite, mesmo que amenizada pela beleza daquela lua, me aplica uma peça e me faz tropeçar numa raiz de árvore saliente. Poutz, seria um baita tombo se não houvesse... o muro. foi nele que consegui me apoiar projetando meus braços e conseguindo me apoiar para não cair.
Beleza! Acidente evitado, se não fosse pelo esbarrão ter lançado meu par de botas pra dentro do poço.
Ah não!
Só que um detalhe me chamou a atenção: não ouvi barulho das botas caindo n'água. O que ouvi forma elas batendo em um chão seco. Que estranho! Hoje pela tarde o vô veio aqui pegar água e não falou nada que o poço poderia estar seco ou coisa parecida. E ainda entrou em casa com um balde cheio d'água do poço.
Bem, não sou mais guri. Acho que não preciso mais ter medo de me afogar. Claro, tá noite, e qualquer vacilada poderia sim causar um acidente nada leve por ali. Mas me chamou a atenção o fato de não haver barulho d'água, ou melhor, do poço estar seco.
Volto para a casa correndo e pego uma lanterna para dar uma olhada naquele poço. Ligo-a e projeto o foco de luz sobre o poço.
Nossa!
Que legal!
Foram minhas primeiras expressões. Então ali, a luz de um lanterna de pilhas, pela primeira vez nesses meus 39 anos de idade, olho para dentro daquele poço e me deparo quase que como um cenario de filme: um túnel de mais ou menos 5 metros de profundidade, todo ele revestido de pedras regulares, dispostas como um muro cônico de contenção. Nada de água, só consigo ver seu fundo, bem nítido por sinal, totalmente calçado com as mesmas pedras regulares das paredes daquele poço. Interessante é que, ao fundo, as laterais do poço apresentavam uma escuridão, com ose houvessem saliencias, ou como acusasse uma continuidade daquele poço na horizontal, como um túnel, um corredor, sei lá. E as botas, adivinha? Sumiram!
Embora eu realmente precisasse daquelas botas para trabalhar amanhã, não era isso que estava me intrigando nesse momento. O que está me deixando inquieto é esse bendito poço. E alguma coisa que, de alguma forma que não sei como explicar, me faz ignorar uma atitude obvia: chamar o vô e contar o que aconteceu e pedir algum tipo de explicação. Mas não.
 O poço não é muito largo, é bem estreito e as pedras que foram usadas nas paredes dele, embora regulares, ficavam bastante salientes, Dava para usa-las de forma bem segura como degraus. Sabe, um pé aqui, outro com a perna atravessando o poço. Não tinha como cair, não mesmo. E, apesar das 22 horas da noite, de não ter avisado ninguém, todo e qualquer medo ou simples receio de se machucar sumiu. Vou descer e ver o que tem lá.
A medida em que vou descendo, começo a ver mais claramente. Mais claramente? De noite, na escuridão, adentando um poço? Como assim? Não sei explicar. Em primeiro lugar, parecia que o poço estava se alongando, ou seja, não tinha apenas 5 metros. Mas estava ficando mais claro, mais nítido. Depois, faltando alguns metros para chegar ao solo percebo que não trouxe minha  lanterna mas consigo ver a minha esquerda que realmente havia uma saliencia na parede, bem grande. Era uma passagem e dela vinha um pequeno faixo de luz, amarelada como de vela ou fogo. Não foi preciso botar os pés no chão para já perceber que era uma passagem sim, e dava para algo tipo um corredor, um túnel, sei lá. A passagem era iluminada fracamente pela luz que imediatamente
identificava como de velas. Ela adentrava a esquerda daquele poço por uns 3 ou 4 metros, quebrando o acesso para a direita. De onde vinha a iluminação um pouco mais forte e que se projetada naquelas paredes de pedra regular. Parecia um daqueles corredores de castelos medievais.


O estranho é que o raciocínio da razão havia me deixado. Eu não estava questionando, ponderando nem medindo nenhum aspecto daquelas circunstancias. Alguma coisa fazia eu apenas avançar.
Então começo a percorrer aquele lugar. Andava, de uma forma instintiva, para frente. Faço a curva daquele corredor e percebo que ele se estende por unas bons metros. haviam umas 5 ou seis tochas pregadas na parede e acesas iluminando o caminho no qual já se percebia alguns acessos em suas laterais parecendo serem portas.
Em alguns momentos lampejos de razão me visitavam. Aquele corredor? Debaixo do quintal de casa? Será o que o vô sabe disso? Quem fez isso? Quem acendeu essas tochas? Então tem alguém aqui... Mas alguma coisa me dizia que aquelas coisas, aquelas tochas, simplesmente estavam ali. Assim, simplesmente, sem resposta para quem as acendeu, ou quem as colocou ali, ou mesmo quem construiu tudo aquilo. Mas alguém construiu aquele túnel.
Então começo a andar, a iluminação é fraquíssima. E logo a direita vejo uma porta enorme, pesada. Na verdade tudo aquilo parecia um galeria de celas, uma masmorra. Essa primeira porta que vislumbro está encostada, então eu entro. Me deparo com uma sala com uma mesa rústica e pesada com um castiçal de três velas acesas sobre ela e um livro grande, com encadernamento de couro. Não há ninguém na sala. Só aquela cena. Atrás da mesa, outra porta.
Me aproximo da mesa e foleio o livro. São palavras desconhecidas, todas elas. O livro não é impresso mas manuscrito. Instintivamente fecho o livro e olho em volta. Não há mais nada naquela sala. A porta por onde passei está fechada. Não me lembro de te-la fechada.
Então sigo, passo pela mesa e continuo abrindo aquela outra porta que havia avistado. Há mais um corredor, dessa vez sem iluminação alguma, senão a do candelabro que ainda repousa na mesa. Ando alguns passos e vejo outra porta a direita. Avisto uma mesa pequenina, como se fossem feitas para anões ou crianças e nela estão sentados dois gatos, um pardo e outro preto. Eles estão disputando queda-de braço sobre a mesa. Eu me aproximo deles mas minha presença não faz diferença alguma a eles. Sou totalmente ignorado.
Então saio daquela sala por onde vim e sigo mais a frente. Há outra porta, dessa vez a esquerda. Ao entrar vejo um senhor, um velhinho sentado em numa mesa onde aprecia de maneira concentrada um tabuleiro de xadrez com as peças já desarrumadas como se uma partida estivesse em andamento. O velhinho, de aspecto caricato, com um longo nariz, calvo mas com longos cabelos ao redor de sua calvície, usando um par de óculos arredondado de grossas lentes, veste uma túnica preta se dá ao trabalho de erguer a cabeça e me olhar muito brevemente demonstrando um constante sorriso. Olha para mim e logo baixa a cabeça voltando à sua concentração. Não vejo suas mãos. E não me importo muito com isso. Revolvo-me nos calcanhares para sair de mais aquele aposento. Quando estou passando pela porta ouço ele dizer em voz tremula "xeque-mate".
Retorno ao corredor e nesse momento não me lembro mais por onde vim, e nem mesmo reconheço aquele corredor por onde recém havia entrado. Mas dou mais alguns passos a frente e vejo outra porta, agora a minha esquerda. Então eu entro e vejo outra mesa com mais um castiçal de três velas acesas iluminando o ambiente sobre ela e um cálice de vinho de  cobre. Era vinho, eu sabia desde o começo que nele havia vinho. Então o apanho e bebo todo o vinho. Por que eu fiz isso, eu não sei.
ao baixar o cálice na mesa, vejo ao fundo daquela sala, na penumbra, uma armadura de cavaleiro medieval ao lado de outra porta.
Então vou para lá e ao me aproximar a armadura se move e com seu braço abre esta porta destrancando uma antiquada fechadura. Eu não me assusto, tampouco sinto medo. A próxima sala é a sala do Rei. E ali está ele sentado em seu trono com o dedo em riste aos berros chamando e dando ordens para um lacaio que não aparece. O Rei não se incomoda com a minha presença, nem mesmo a acusa. Parecia ser um rei sem reino.
Eu dou meia volta e, ao lado da porta que passei, outra está aberta e projetando uma fraca luz de velas. Passo então por esta porta e percebo que estou pisando em moedas. Não sei se valem alguma coisa ou não, mas dá pra perceber que são moedas. Ao levantar minha cabeça depois de contempla-las percebo estar em outro grande corredor onde no meio dele, exatamente no meio, há um aparador com um espelho e sobre esse aparador outro castiçal com tres velas acesas. Chego próximo ao espelho e vejo meu reflexo. Nada de anormal. Sigo por este corredor até seu fim onde há outra porta.
Então abro esta porta e vejo alguém sentado em uma mesa. Uma pessoa sentada em uma mesa com um baralho na mão Essa pessoa veste uma especie de habito com capuz. Não vejo seu rosto. Me sento a sua frente e recebo as cartas. Estou jogando um jogo que não conheço as regras, nem sabia que conhecia algum tipo de jogo de cartas. Mas estou jogando.
O jogo termina. Sem saber quem ganho ou perdeu, assim como nenhuma palavra entre eu e aquela pessoa é trocada.
Ao sair pela porta de onde vim percebo que exatamente a esta existe um acesso que não havia percebido antes. É um acesso para uma escada. E é por lá que eu vou. Então começo a subir uma escada circular. A escada parece não ter fim. Parecia estar em uma torre ou algo assim onde lá em cima dá pra avistar uma janela de onde incide a luz da lua. Mas estou muito cansado, sento nos degraus para descansar.
Que houve?
Acordo com alguns raios de sol que passam pela janela mal fechada do meu quarto. Então foi um sonho! Apenas isso. Mas que sonho mais louco. Se eu ainda bebesse ou usasse algum tipo de entorpecente, mas nem um tapinha num baseado eu dou. que coisa estranha. Então salto da cama e pela janela vejo aquele poço e sua mureta. Fico parado em pé na janela por alguns minutos, meio que me acordando ainda daquele sonho louco que tive. O interessante é que lembro de cada detalhe. Nossa, muito estranho. E por uns 5 ou 6 minutos fico ali, entre as lembranças daquele sonho e a visão do poço, onde supostamente seria o cenário daquela aventura surreal. Até o momento que percebo o gosto estranho na minha boca: vinho.
Logo em seguida, meu vô bate na minha porta e me entrega minhas botas. "Ve se deixa elas caírem no poço de novo..", . Estavam encharcadas d'água. Quando pego uma delas de mau jeito, o cano da bota se projeta para o chão deixando cair algo que estava dentro dela: o cavalo, uma das peças de um tabuleiro de xadrez.
Então olho para minha cama e percebo algo debaixo do travesseiro. duas cartas de um baralho. O coringa e o Rei de Copas. A fisionomia do coringa não me era estranha: o velhinho xadrezista.
Olho para a minha porta e vejo meu vô que se dirige a mim: "Escuta rapaz, tu sabe o que minha lanterna estava fazendo lá fora no chão, do lado do poço?"
Ele me dá uma piscadela e volta pra cozinha.