segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Aprendizado



"Os mortos não louvam o Senhor, tampouco nenhum dos que descem ao silêncio."
Salmos 115:17

Pessoalmente adoro rezar a missa às terças-feiras. São poucos o que comparecem as 7 horas da noite, porém me trazem a confortável sensação de despretensão, como se ali estivessem para relaxar, descansar suas pesadas cabeças com algumas palavras de conforto. Por isso não pego pesado no meu sermão, pois uma missa que não passa de 30 minutos não tem muito tempo para tagarelice. Algumas velhas beatas, como sempre, ali sentadas nos bancos à esquerda do altar segurando seus Rosários com os olhos fixados no crucifixo enquanto disserto sobre alguma coisa do cotidiano fazendo alusão a passagens do evangelho que mais gosto. Elas, por sinal, claramente dão ao entendimento que não estão nem aí para o que falo e por essas e outras que acabo me dirigindo às poucas pessoas sentadas de forma pulverizada pelos bancos da enorme nave paroquial. O interessante é que as missas das terças-feiras, talvez por serem curtas propositalmente, sempre trazem um publico diferente toda a vez. Sempre vejo rostos novos, muitos deles jovens, atentos às minhas palavras já reconhecidas por muitos como atrativas aos mais jovens. Essas missas possuem liturgia simples, sem ministros de eucaristia ou mesmo puxadores de cantos, seja no ofertório ou no momento da comunhão. É tudo comigo mesmo, sem muita frescura e de forma bem direta.
Sim, adoro as terças-feiras. Por conta da missa das 19 horas, mas principalmente pelo que vem depois dela. É que é o meu "Dia do Xis", pois sagradamente após a celebração da missa vou até a lancheria que fica a duas quadras da Casa Paroquial para saborear um bom Xis Salada acompanhado de uma (ou duas, três...) cervejinhas. Afinal, sou padre, mas sou filho de Deus. Tá certo que minha bebida preferida é o vinho, mas no calor santamariense de janeiro isso não é muito convidativo. A lancheria em si já é ponto tradicional do bairro e ali, os fregueses também já são tradicionais. Certamente que sou um deles.
Findando a missa, me dirigindo aos presentes com o protocolar "vão em paz e que Deus o acompanhe" vejo aquelas poucas pessoas sumirem por aquelas altas portas até me restar fecha-las e recolher os paramentos à sacristia. Ao me desfazer da batina e da estola passo a mão em meu smartphone como de costume afim de checar mensagens recebidas. Dentre algumas enviadas por colegas padres e dirigentes paroquianos, vejo uma mensagem da Solange, dona da lancheria: "Heleno, tu vens hoje ne? Queria conversar contigo". Eu respondo: "Claro que sim. Chego aí em 30 ou 40 minutos. Aí conversamos melhor. Coloca uma pra gelar lá no fundo do freezer".
Até mesmo o percurso da Casa Paroquial à lancheria é agradável, pois posso andar despojadamente ao longo da avenida fumando um cigarrinho e a sós com meus pensamentos, sem ninguém para encher o saco. Sou padre, mas sou homem e como tal, as vezes gosto de ficar plenamente só com meus pensamentos. Ao chegar na lancheria, meu banquinho da ponta do balcão já estava me esperando com a taça de cerveja a minha disposição. Eu me acomodo sendo recebido com o habitual sorriso respeitoso de Solange. 
- Boa noite Heleno.
- Boa noite noite Solange. Pode mandar fazer um xis salada.
- Já tirei teu pedido. Daqui a pouquinho já te sirvo. Posso te acompanhar nuns goles? A primeira cerveja é por minha conta.
- Claro que sim. Então, quais as novidades?
Iniciamos uma agradável conversa que se estendeu por alguns bons minutos. Solange algumas vezes é enfadonha, com assuntos beirando à fofoca dedicada à vida alheia dos nossos conhecidos vizinhos de bairro mas na maioria das vezes tece assuntos interessantes sobre os acontecimentos na cidade e do seu cotidiano em si, o que faz atualizar-me das coisas e do que se passa ao nosso redor.
Após engolir sucessivos goles de cerveja, percebo Solange enrubescer formando um senho em seu rosto impossível de não se perceber. Nunca tinha visto sua aparência daquele jeito, pois parecia um pouco nervosa, impossível de qualquer dissimulação.
- Que houve Solange?
- Ai Heleno, vamos lá. Eu tenho certeza que tu és a pessoa mais certa para esse tipo de coisa. Estava ansiosa pela tua chegada porque eu queria te contar algumas coisas.
- Sim tu me mandastes mensagem. Estou aqui, pode falar.
- É minha irmã Rosane. Está com problemas com minha sobrinha Fernanda...
Solange então começa a a explanar toda uma situação contada por sua irmã. Contou que achou muito estranho Rosane não dar notícias por semanas, afinal, sempre foram muito próximas e conviviam se falavam quase que diariamente. No entanto, depois de um tempo, e de uma maneira muito estranha e inesperada, a recebeu em sua casa. Ela estava muito nervosa, trêmula e chorosa procurando algum tipo de ajuda para sua filha, sobrinha de Solange. Disse que já fazia um bom tempo que estranhava o comportamento de Fernanda, pois não dormia mais com a luz apagada e por inúmeras vezes a ouvia na madrugada gritando para alguém pedindo que "a deixasse em paz". Logo de início ela imaginou ser sonhos provocados por algum ocorrido que começara a lhe preocupar  mesmo sem ter a mínima noção do que poderia ter ocorrido. A situação ficou mais preocupante a assustadora quando certa noite, Rosane ouve Fernanda gritando de seu quarto indo até seu encontro e, para sua surpresa, não a vê ainda deitada em sua cama, mas vestida como se recém tivesse chegado em casa, acuada no quanto de seu quarto de cócoras aos prantos gritando "vai embora, não te quero mais aqui, vai embora, tu precisa ir, vai, vai por favor". Ainda segundo sua irmã, Solange relata que, a partir de então, sua sobrinha não queria mais para a escola, muito menos sair de casa. Logo ela, uma menina linda de quatorze anos que adorava jogar vôlei e passear com as amigas. Isso fez com que Rosane começasse por conta própria sua própria investigação sobre o que teria provocado aquela situação pedindo ajuda ao seu esposo Renato que aparentemente não estava tão abalado quanto ela mas já começara a demonstrar preocupação com o estado da filha. Ela contou então que Renato ao vasculhar o smartphone da filha havia encontrado conversas com amigas por aplicativo combinando pousarem juntas para jogarem o jogo novo que havia comprado num marketplace da internet "mas que nossos pais não podem saber que jogo é". De fato, segundo sua irmã, as meninas haviam pousado juntas num sábado quando Solange e Renato haviam saído para um jantar com casais amigos e que justamente após essa noite começou a notar sinais de ansiedade e pânico por parte da filha o que os levou a entrar em contato com os pais das demais meninas fazendo com que estes questionassem suas filhas sobre o que poderia ter acontecido. Uma delas acabou confessando que tinham jogado um tal jogo de tabuleiro para "conversar com espíritos". O tal tabuleiro foi encontrado por Rosane no roupeiro de Fernanda tirando uma e enviando para Solange que acabou por me mostrar em seu celular.
- Hummm. É um tabuleiro Ouija, um jogo que a gurizada brinca para "tentar falar com os mortos", já ou ouviu falar?
- Ai Senhor. Já tinha ouvido falar disso. Meu Deus! Mas da onde essa guria conseguiu isso?
- Calma calma. É só um jogo bobo, fácil de encontrar a venda na internet.
- O que me diz Heleno. Esse negócio preocupante ou não?
- Sim e não Solange. Envolve muitas coisas.
-Ai Heleno, tem haver com possessão?
Com um breve sorriso, então digo.
- Calma. Calma. Para se concluir que estamos diante de uma "possessão", tem que se eliminar um monte de coisas já descritas pelas ciência, e para isso temos a psicologia, a psiquiatria, a neurologia, e por aí vai. Tu bem sabe, sou um padre e a fé que confesso dá pouco espaço para essas coisas, além de ser profissional da área da psicologia e psicanálise. Faz uns bons anos que resolvi  me dedicar a essas disciplinas para justamente entender as pessoas que caem na tentação das crendices e das respostas fáceis para os seus problemas quando eles complicam pra valer esquecendo o que a ciência diz e até mesmo sua própria fé. Se tornou um desafio para mim entender o quanto as ações inconscientes de um indivíduo podem enganá-lo a si mesmo. Eu te garanto que há muito mais coisa vinda da própria terra do que do além nessa história. Nós já conversamos muito sobre isso, lembra?
- Sim Heleno, eu sei. Mas sabe como é,  quando essas coisas batem na nossa porta... assustam. Mas, enfim... Tu pode nos ajudar?
- Posso sim. Claro que sim! Até mesmo porque, pelo que já percebi, me parece que já tem muitas pessoas envolvidas, desde a menina, seus pais, tu e as famílias das outras amiguinhas da tua sobrinha. Antes que isso vire uma tempestade desnecessária e prejudique mais ainda a menina e a família, eu acho que podemos fazer alguma coisa sim. Até mesmo porque esse é um caso bastante familiar para mim, vindo de encontro com meus trabalhos acadêmicos. 
- Tu achas que isso pode ser...
- Possessão? Ah, não é bem assim dessas coisas acontecerem. Por conta de uma brincadeira de adolescentes? Não acredito. Mas...
- Mas...?
- O mal existe Solange e isso é um fato. Talvez ele não se manifeste da forma literária como se imagina, mas ele existe, só que de muitas formas a ponto de te decepcionar pela simplicidade delas. Então, vamos com calma. O catolicismo tem um conhecimento milenar sobre esse assunto e a ciência é uma ferramenta que nós utilizamos. Muita coisa que no passado era atribuída a possessão acabaram por ser resolvidas com respostas simples ou então complexas, mas à luz da ciência. No entanto, existem sim casos em que a ciência tem dificuldade em responder, mas para isso existem religiosos dedicados e devidamente esclarecidos para tratar disso.
Dirigi uma piscadela para Solange empunhando irreverentemente a taça de cerveja buscando confortá-la de que sabia o que estava dizendo. Procurando demonstrar interesse no caso (porque de fato já estava) a indago:
- Me diz uma coisa,  a tua irmã não disse nada sobre as outras amiguinhas? Como por exemplo, se só tua sobrinha está com esse tipo de comportamento ou as demais também...
- Sim, ela me falou algumas coisas. Disse que as demais meninas estão normais, mas com muito medo e dificuldade para dormir.
- Imagino, elas devem se sentir parte de toda essa situação, e de fato são. Bom Solange, como já te disse, sou um padre antes de mais nada e por vocação. Preciso e gosto de ajudar as pessoas. Vamos ver o que podemos fazer a respeito. Mas, te acalma e leva uma palavra de tranquilidade à tua irmã. Combina para que ela e o seu esposo levem tua sobrinha lá na casa paroquial no sábado a tarde, após a missa das 16h. Peça também para que levem o tal tabuleiro. Por enquanto quero ver apenas a... como é mesmo o nome da menina?
- Fernanda.
- Isso, Fernanda. Vou me concentrar nela primeiro. Depois da missa vamos primeiro conversar com ela e ver o que podemos fazer. Pode ser que, ajudando ela as outras meninas terão um reflexo positivo sobre isso.
- Não entendi! Então a coisa pode ser mais séria do que entendi, é isso?
- Solange, relaxa! Só providencia esse encontro do sábado.
- Certo. Já vou mandar uma mensagem para ela. Obrigada Heleno.
- De nada. Traz outra bem geladinha, por favor. E me conta, por onde anda o Sr...
Para descontrair e mudar o foco do assunto, resolvi retomar com Solange sobre os assuntos amenos da vizinhança. Mais uma cerveja após o lanche foi o suficiente para concluir meu tradicional programa "pós-missa de terça-feira". Despeço-me de Solange tomando o caminho de volta até a casa paroquial pensativo sobre o caso que iria tratar no final de semana. Eu estava pensativo e em voz alta disse:
"É meu amigo. Mais um abacaxi para descascar".
Logo após meu sermão durante a tradicional "missa de sábado das 4" e iniciando o rito do ofertório, identifico entre os presentes Solange acompanhada de uma família que deduzi ser de sua irmã Rosane. A aflição em seus rostos era latente, como se todos aqueles ali estivessem procurando algum tipo de ajuda com um certo desespero não tendo mais para onde e para quem recorrer. A cena era tão inquietante que chamou a atenção dos demais presentes, geralmente os mesmos daquele horário: idosos da vizinhança do bairro desacostumados a rostos mais jovens e estranhos junto aos conhecidos de décadas. Eu não tinha dado como premissa a participação dos familiares, tampouco da menina, naquela celebração. Todavia, o fato de ter vindo foi relativamente bom, pois a partir dali já podia iniciar meu processo de avaliação da situação.
Ao findar a missa, me dirijo àquelas pessoas inicialmente cumprimentando Rosane e depois sendo por ela apresentado à sua irmã Rosane, o esposo dela Renato e por fim a sua filha Fernanda. Naquele momento comecei a perceber o certo grau de seriedade do caso ao notar a palidez, olheiras e o nítido visual de abatimento fraqueza física de Fernanda. Algo de fato a estava importunando e desestabilizando sua psiquê de forma contundente. Seus pais também pareciam abatidos e demonstrando certa ansiedade na expectativa de minhas abordagens a respeito. Procurei, no entanto, tranquilizá-los com um afável sorriso demonstrando também calma, ponderação e prudência nos atos e palavras.
- Por favor, aguardem eu liberar de minha indumentária. Irei até a sacristia e já volto. Aguardem aqui, por favor, está muito quente lá fora e aqui dentro da igreja está bastante agradável. - Disse a todos eles.
Ao dar as costas em direção à sacristia, ouço um baixo murmúrio de Fernanda: "Mãe, como é calmo aqui dentro". Não contive o breve sorriso já processando mais aquela pista do que poderia estar acontecendo. A psicossomatização, afinal de contas, é causada por um gatilho, um choque muito forte no consciente da pessoa que reflete em seu inconsciente a ponto de faze-la adoecer. A reversão disso pode ocorrer da mesma forma, só que contrária e a presença de Fernanda no interior da igreja poderia já ser sinal dessa reação. 
Ou, talvez não.
Retornando da sacristia junto àquele grupo, solicito a eles que deixassem a igreja e se dirigissem até a casa paroquial que fica ao lado, pois ali em meu escritório iria atendê-los de maneira adequada. Perguntei aos pais se trouxeram o tal tabuleiro do jogo sendo respondido por eles de modo afirmativo, mas que estava no carro, pois não queriam carregar aquele objeto durante a missa. Assenti a intenção deles mas solicitei que o pai da menina fosse até o carro buscar o jogo para que ele pudesse ser utilizado e avaliado durante nossa conversa, o que foi feito por ele.
- Bom pessoal, sejam bem-vindos. Esse é meu gabinete, por favor sentem-se todos. 
Meu gabinete era um pequeno cômodo da casa paroquial que transformara em escritório. Além de minha escrivaninha guarnecida por uma estante com minha biblioteca particular, haviam alguns quadros com imagens religiosas e algumas fotos. Meu quadro preferido era de uma foto que havia feito na companhia do Papa Francisco em Roma ano passado após a conclusão de algumas formações em psicologia e parapsicologia promovidas pela Ordem dos Jesuítas num dos históricos prédios anexos à cidade do Vaticano. Sem dúvida uma honra estar na sua presença e ter beijado sua mão. Não foi a toa que a mesma chamou a atenção daquela família, mesmo sem saber do real e profundo motivo de, o momento daquela foto, o próprio Papa ter ido ao encontro da nossa turma de estudiosos, especialmente por ser ele mesmo um jesuíta de formação. À frente da escrivaninha, duas cadeiras e logo atrás, duas poltronas e um sofá de três lugares formando um espaço para conversas menos formais para um grupo de pessoas. Foi nesse espaço que solicitei à família que se acomodassem. Peguei uma das cadeiras de guarnição da escrivaninha e a virei de forma que eu pudesse nela me acomodar de frente aos demais. 
- Por favor, fiquem bem a vontade. Me desculpem o calor, mas como podem ver as janelas estão escancaradas porque meu ar-condicionado estragou, justo hoje, num calor terrível de 33ºC. Nossa sorte é que esse ventinho faz o ar circular e deixa essa sala mais suportável. Pois bem, vamos lá...
Iniciei nossa conversa me dirigindo à menina.
- Então, tu és a Fernanda, certo?
- Certo.
Fernanda cai no choro de maneira desesperadora. Deixe-a dar vazão à sua angústia através de suas lágrimas num choro que deve ter durado longos cinco minutos a ponto de provocar soluços na menina.
- Vamos Fernanda, me conta o que está acontecendo.
A menina inicia, então seu relato de como tudo ocorreu. Contou que estava curiosa sobre o jogo do tabuleiro Ouija visto em alguns filmes do gênero de terror junto com suas amigas e que era usado para se comunicar com os mortos. Essa curiosidade, segundo Fernanda, fez com que começasse a pesquisar sobre o assunto de modo desenfreado através da Internet. Por conta disso, consumira muito conteúdo a respeito, textos e vídeos dos mais variados formatos a respeito. Essa pesquisas fizeram com que ela tivesse acesso à supostos rituais que invocassem os mortos para dar início ao jogo, da mesma forma que pesquisara sobre o jogo em si e seu funcionamento. Durante seu relato, questionei-a de como ela obtivera aquele tabuleiro sendo respondido que o comprara através de um site de marketplace da Internet. De fato, o tal tabuleiro é muito fácil de ser encontrado a venda.
Fernanda aprofunda o seu relato cada vez mais ao descrever que insistiu muito para que ela e as amigas jogassem o tal jogo fazendo pequenas chantagens às amigas do tipo "não vou mais querer tua amizade" ou "nem fala mais comigo", tamanho estava o seu interesse sobre o assunto. Fiquei intrigado com relação à determinação da menina em promover uma sessão daquele jogo. Mais ainda quando sua mãe Rosane interrompe o relato dizendo:
- Fernanda, a Carina disse para a mãe dela que tu chegou a chorar pedindo que ela e Patrícia jogassem contigo isso.
Fernanda volta a chorar, mas dessa vez percebo algo de diferente, como  um sinal de repressão que a fizesse fica acuada. Aquele detalhe eu guardei para mim.
Após se acalmar um pouco, mesmo que não interrompendo seu choro, Fernanda volta ao seu relato. Convencera suas duas amigas mais próximas Carina e Patrícia a fazerem uma sessão do jogo, mas que para isso, ninguém poderia saber, muitos menos os pais das meninas. Escolheram, portanto, uma noite de quarta-feira à uns três meses atrás na qual seus pais não estariam em casa e suas amigas lá iriam pousar, algo muito comum entre elas uma vez que as famílias são conhecidas. Estando então sozinhas, poderiam jogar. Disse ter encontrado instruções na Internet de como conduzir o jogo. Após descrever mais alguns detalhes dos preparativos, como preparar pipoca e servirem-se de Coca-Cola, Fernanda conta que um "espírito" havia se manifestado, movendo o ponteiro do jogo para palavras pré-fixadas, como "Hi" e "Yes". Disse que conversaram com o tal espírito com perguntas frugais respondidas imediatamente por ele através do ponteiro. O espírito, segundo Fernanda, era um homem que estava com saudades de todos que havia conhecido e que não quis dizer o seu nome.  Após algumas tentativas de extrair mais informações da entidade, sem sucesso,  pediram para encerrar dando uma ordem firme ao espírito para que ele fosse embora, conforme as instruções encontradas na Internet. Porém, após essa ordem, o tal espírito havia respondido "Não" e isso as havia assustado fazendo com que todas as meninas tirassem as mãos do ponteiro e de forma impulsiva fechassem o tabuleiro. Percebendo a precipitação da ação, retomaram o jogo reabrindo o tabuleiro posicionando o ponteiro ao centro deste com as mãos postas sobre este voltando a perguntar se o espírito ainda estava presente, o que foi novamente respondido como "Sim". Então assustadas, resolveram encerrar de vez o jogo fechando o tabuleiro e o guardando, passando a agir como se isso bastasse. Disse também que suas amigas se assustaram muito a ponto de pedirem a seus pais que as buscassem para leva-las de volta a suas casas ficando ela sozinha por toda aquela noite apavorada com a suposta experiência que tivera. Por fim, conseguiu pegar no sono acordando no outro dia pela manhã retomando normalmente sua rotina. No entanto, e a partir daí, por todas as noites passou a sentir a presença masculina do espírito a acompanhando por onde ela ia, a ponto desta presença se tornar cada vez mais forte com o passar do tempo chegando a enxergar vultos, tanto nos cantos de sua casa quanto junto aos familiares, como durante uma refeição conjunta. Ela conclui seus relatos dizendo que, além da presença do espírito ao qual havia se comunicado sentia também o desejo do espírito por ela, como se quisesse tê-la como posse.
Ao encerrar seu relato, passei a indagá-la.
- Suas amigas. Conversou com elas a respeito disso depois daquela noite?
- Sim.
- Elas também têm essa sensação de perseguição por essa entidade?
- Não. Elas disseram que está tudo normal para elas. Eu acho que é porque eu me propus a ser o médium.
Demonstrando espanto pela declaração da filha, seu pai Renato interpela:
- Como assim Fernanda?
Então, intervi explicando:
- É que uma das premissas desse jogo é de que um dos participantes deve ser o médium. Ou seja, aquele que irá conduzir o jogo fazendo as perguntas ao espírito que irá se comunicar. Agora, me responde Fernanda, por que tu quisestes ser o médium?
- Estava curiosa.
Percebi uma certa dose de titubeação na resposta de Fernanda.
- Certo. Me mostra agora o tabuleiro.
Fernanda toma nas mãos o tabuleiro junto com uma caixinha de sapatos que acompanhara. Dentro da caixa estava o ponteiro de madeira e alguns papéis impressos de textos da Internet que eram as instruções de como jogar. Tomei os papéis na mão e os avaliei. No primeiro, estavam descritas as instruções básicas do jogo, tais como: concentrar-se inicialmente limpando as mentes livrando-as de qualquer pensamento antes do jogo, posicionar uma das mãos de cada participante junto ao ponteiro e definir o participante que seria o médium. Noutra folha, algumas orientações mais contundentes e assustadoras, porém sem embasamento algum e com relativa dose sensacionalista: evitar de tirar a mão do ponteiro durante a conversação, evitar mover o ponteiro acidentalmente para fora dos limites do tabuleiro e, descrito de forma expressa, nunca fechar o tabuleiro antes de concluir a sessão. Ainda segundo as orientações descritas na folha, a sessão seria concluída quando médium desse uma ordem firme e direta ao espírito para que ele "fosse embora".
Enquanto avaliava todos aqueles objetos, inclusive o tabuleiro e seu ponteiro, o pai de Fernanda faz a pergunta central de toda a situação:
- Pe. Heleno, afinal de contas o que é tudo isso?
- Bem Sr. Renato, me parece que sua filha e as amiguinhas brincaram de maneira inocente e um pouco perigosa com esse tabuleiro que é chamado de Ouija, um jogo que usam para se comunicar com os mortos. Ele funciona assim: pode ver que o tabuleiro possui palavras já impressas para agilizar a suposta comunicação e letras. Com o ponteiro colocado no centro do tabuleiro e os participantes pousando uma das mãos nele, no momento em que o espírito "baixa" ele começa a responder perguntas feitas com a suposta movimentação da peça por ele até as palavras já impressas ou formando elas apontando para as letras impressas. Para começar o jogo é necessário fazer uma espécie de ritual. Por falar nisso Fernanda, vocês fizeram algum tipo de ritual para iniciar o jogo?
- Sim Padre. Rezamos uma oração. Está aqui na caixa também.
Fernanda me alcança um pequeno pedaço de papel escrito por ela a punho livre com os seguintes dizeres.
- Todas vocês rezaram essa oração?
- Não, apenas eu. E por oito vezes seguidas, bem como encontrei na Internet.
- Isso está escrito em latim. Sabe o que significa?
- Não.
- Não tem medo de fazer uma oração que tu não sabe o que significa?
Imediatamente abri um sorriso para aliviar a situação já tensa, tanto da parte da menina quanto dos familiares presentes. Mesmo assim, ela emudeceu.
- Pois bem, Fernanda, que tal se repetíssemos a experiência que tu teve com tuas amigas? Mas antes, vamos fazer o seguinte: vá ali na igreja e faça essa oração:
Tomei um bloco de notas que estava sobre minha escrivaninha e como um médico receitando uma medicação, escrevi um pequeno texto destacando a folha e entregando a Fernanda.

"A Cruz Sagrada seja a minha luz, não seja o dragão o meu guia. Retira-te, satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mau o que tu me ofereces. Bebe tu mesmo os teus venenos! Rogai por nós abençoado São Bento, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."

- O que é isso Padre?
- A Oração de São Bento. Vai e reza. Enquanto isso, vamos ficar aqui conversando. Preciso trocar umas palavras com teus pais e tua tia.
Com o breve afastamento de Fernanda, resolvo me dirigir a seus familiares a respeito explicando as minhas intenções sobre o que faríamos e como deveríamos proceder. Obviamente que a minha sugestão de reproduzir a experiência das meninas daqui a alguns minutos pegou a todos de surpresa gerando um sentimento de medo e angústia que tomou conta do ambiente, nítido nos olhares apreensivos, na paralisia e no ensurdecedor silêncio de todos. E essa era a minha intenção.
- Bom pessoal. Eu entendo a surpresa de todos vocês sobre a minha sugestão. Mas para que se prossiga isso é obvio que preciso da autorização dos pais da menina para isso. Meu objetivo é encurtar um pouco o caminho, reproduzindo de certa modo o que aconteceu naquela noite procurando identificar os elementos que formaram a situação e causaram esse transtorno. Não precisamos fazer isso se não desejarem, e, nesse caso, posso indicar profissionais especializados da psicologia e psiquiatria que poderiam traçar um diagnóstico da Fernanda. Porém, posso lhes afirmar que um estrago mental na menina já foi feito e por algum motivo bastante forte, mas esse processo de diagnóstico poderia demorar muito tempo. Se fizermos esse trabalho hoje, eu não apenas na condição de sacerdote, mas na condição de estudioso da psicologia, poderia já lhes entregar alguns apontamentos a respeito que podem ajudar em agilizar num futuro tratamento psicoterápico para Fernanda. Aliás, o que vamos fazer não irá dispensar um futuro acompanhamento profissional da menina. E então? Topam?
- Padre, o que o Sr. espera encontrar na seção? Não precisamos dizer que estamos assustados com tudo isso. Tem alguma coisa sobrenatural? - Interpelou a mão Rosane.
- Vou ser sincero para vocês. Sei muito pouco senão pelo o que vocês me contaram ou pelo que acabamos de ouvir. Mas pelo que percebo, tanto eu quanto vocês, pais e tia, sabem muito pouco sobre o que se passou com a Fernanda. Eu prefiro não responder nada a respeito. Mas fiquem tranquilos, eu sei o que estou fazendo.
Enquanto ausente, continuamos a conversar a respeito de Fernanda. Procurei interrogar os pais e a tia Solange a respeito da menina buscando entender um pouco mais sobre sua personalidade buscando, assim, algum gatilho que pudesse ter sido acionado para algum tipo de distúrbio nela. Segundo seus familiares, Fernanda sempre foi uma menina socializável, sendo considerada popular por todos os seus amigos, tanto da escola quanto nos demais círculos de convivência, como primos, seu time de vôlei e entre os filhos dos amigos da família. Aliás, eram as meninas, Patrícia e Carina, filhas de amigos dos pais, as mais próximas. Contaram também que, talvez devido a sua popularidade especialmente pela beleza (ela era considerada a mais bonita dentre as meninas da escola e dos outros meios de convivência), Fernanda também era conhecida por seu ar de superioridade e arrogância, desdenhando algumas amizades e refutando o flerte de vários meninos. A respeito de namoros, seus pais foram categóricos em afirmar que Fernanda nunca tivera nenhum tipo de relacionamento tampouco namorado, o que de imediato estranhei, pois a descrição de sua personalidade contrastava com o de uma menina que pudesse ter algum impeditivo psicológico para isso como uma exacerbada timidez. Na verdade, Fernanda era uma "patricinha", popular entre as meninas mais bonitas, detestadas pelas meninas de beleza mais modesta e desejada pelos meninos. No entanto, mediante a afirmação firme dos pais sobre o desinteresse de Fernanda sobre paqueras, foi nítida a linguagem verbal da tia Solange, que baixara a cabeça durante a fala dos pais para logo após direcionar o olhar para o lado discretamente, como que, não apenas discordasse da afirmação, mas que sabia de mais algo antagônico àquela informação sobre a sobrinha. Coletei aquelas informações e as guardei sem alarde, pois tinha quase certeza que as usaria posteriormente e revelar minhas impressões sobre a vida cotidiana de Fernanda não seria uma boa ideia podendo causar mal estar entre seus pais e talvez algum tipo de atrito entre nós.
Passaram-se entorno de trinta minutos até o retorno de Fernanda. Ela tinha uma aparência mais tranquila esboçando um pequeno mas ainda tímido sorriso. Tanto, que teve ânimo para passar na sorveteira próxima e comprar um sorvete para amenizar o calor e saciar sua vontade de doce. Estando todos novamente reunidos, os indaguei novamente se todos estavam de acordo em realizar aquela experiência, recebendo mais uma vez uma resposta afirmativa.
- Bom pessoal. Vamos fazer o seguinte: são quase 18h. Vou dispensá-los para que fiquem mais a vontade se quiserem retornar à suas casas. Eu também gostaria de me refrescar um pouco com um banho e fazer um lanche. Marcamos para daqui a pouco e as 20h aguardo vocês. Ah, Solange, tu precisa estar junto.
Solange arregala os olhos, correspondendo a minha convocação, mesmo que com a voz levemente embargada e com uma carga de titubeação.
- Si... Sim. Eu estava disposta a acompanhar sim. Mas não sabia que eu seria tão importante!
- Sim, tu és. Até mesmo pelo teu relacionamento com a Fernanda.
Nesse momento, Rosane vira-se para a irmã com um certo ar de surpresa, e em tom de indagação fala:
- Como assim? Solange, não sabia que tu e a Fernanda conversavam. É isso que entendi agora?
- Sim, Rosane. Faz um bom tempo que nós trocamos mensagens e de vez em quando ela vai na lancheria conversar comigo.
- Nunca me passou pela cabeça isso. Meu Deus, como eu sou distraída! Puxa, eu não desaprovo isso. De modo algum. Mas não sabia. Também, tu nunca me falou nada!
- Já faz quase um ano que virei amiga da Fernanda. Ela conversa comigo sobre as brigas entre vocês e mais umas coisas de menina. Mas nada demais, senão eu teria te contado alguma coisa. Só que nossa conversas pararam, e foi logo depois que tudo isso começou a acontecer. Imaginei que não era nada até que tu veio me contar sobre isso. Aí eu tomei a decisão de ajudar, por isso procurei o Heleno. Eu precisava ajudar a Fernanda.
- Ai irmã! Ainda bem que te tenho no meu lado! - Rosane começa a chorar segurando a mão da irmã Solange.
- Heleno, como soube?
- Ah Solange,...Faz parte do jogo.
Durante esse diálogo entre sua mãe e tia, Fernanda emudece como se assentisse à pequena revelação apresentada. Ao contrário do que se pudesse parecer, o desfecho disso foi relativamente feliz, pois também foi nítida a sensação de conforto entre Fernanda e seus familiares, como se um pequeno e desnecessário segredo fosse revelado: o simples fato de Solange e Fernanda, além de tia e sobrinha, terem se tornado amigas. 
O intervalo de duas horas deu tempo para que eu fizesse um lanche, tomasse um banho e ainda pudesse tomar uma cervejinha para relaxar. Seria preciso, pois percebia que a próximas horas seriam bastante tensas. 
Ás 20h em ponto ouço a campainha da Casa Paroquial. Ao receber a família, convido-os para adentrarem novamente ao meu gabinete, porém dessa vez acomodando-se numa mesa retangular com seis cadeiras que as uso para algumas reuniões de trabalho. Orientei para que todos sentassem em lugares previamente designados por mim, onde Fernanda ficaria na cabeceira da mesa e eu sentado a sua direita, a sua esquerda sua mãe seu pai ao se sua mãe e Solange ao meu lado. Ao centro da mesa deixei o tabuleiro Ouija direcionado para Fernanda e de forma que seu ponteiro estivesse ao alcance de todos na mesa. 
- Bem pessoal, o que iremos fazer deverá ser feito conforme minhas orientações. Cada um de nós irá colocar a ponta dos dedos da mão direita sobre o ponteiro de forma com que a alguma entidade que deseje se manifestar possa faze-la através da movimentação do ponteiro em direção às palavras já impressas ou na composição delas através da indicação das letras no tabuleiro. Fernanda, vamos iniciar da mesma forma como tu e as meninas iniciaram, ok? Tu vais fazer essa mesma oração de invocação de espíritos que trouxe na caixa e serás o médium do jogo. Vai ser tu quem vai fazer as perguntas à entidade e mais ninguém. Só eu e Fernanda vamos falar durante a sessão. Eu não vou me dirigir ao espírito, somente a Fernanda.
Além dessas, passei algumas outras instruções aos presentes antes de iniciar a sessão, como: manter a concentração, evitar outros pensamentos e de forma alguma tirar a mão do ponteiro.
Ao dar o sinal de que podíamos começar, Fernanda pede que todos na mesa dessem as mãos e com o papel da oração aberto na mesa na base do tabuleiro, lê em voz alta, mesmo que gaguejando e com dificuldade de pronunciar as palavras em latim, a oração usada por ela e as meninas para invocação dos espíritos:

" Laus angelis caducis, qui amissas et inopes suscipiunt animas, quae adhuc non sunt obliti. eas ad nos expelle et dic nobis quod velimus"

Tal como foi feito na sessão com as meninas, Fernanda lê em voz alta oito vezes a oração. Ao fim da oitava vez, ela faz a pergunta em voz alta
- Tem alguém aí?
Nada acontece e após alguns minutos, Fernanda novamente repete a pergunta:
- Tem alguém aí?
Novamente nenhuma manifestação assentindo a pergunta. Um silêncio mórbido toma conta do gabinete, quebrado pelo sacolejar das cortinas em resistência ao vento que subitamente ganha força por entre a grande janela aberta. Esse barulho quebrou a concentração de todos quando imediatamente fiz a advertência:
- Cuidado! Não se descuidem em tirar a mão do ponteiro. - e todos retomam a concentração demonstrando nervosismo pelas suas respirações ofegantes. 
Então me dirijo a Fernanda:
- Fernanda, está sentido um pouco de calor e dor na base de suas costas?
- Sim!
- Isso é sinal de que já temos alguém aqui. E os demais, estão sentindo a um certo abafamento e dificuldade de respirar como se o ar ficasse mais quente de repente? 
E todos responderam:
- Sim!
- Certo. Prestem atenção. Apenas eu irei retirar a mão do ponteiro. Todos vocês permaneçam como estão. Minhas mãos serão recolhidas pois o espírito que estiver aqui deverá perceber que não tenho a intenção de participar da conversa com ele. Ele pode entender que eu possa ser uma ameaça a ele, então continuarei na mesa e continuarei a orientar a Fernanda, mas minhas mãos ficarão repousadas nas minhas pernas como sinal de respeito e resguardo. Fernanda, por favor, continue a chamar por alguém.
E por mais duas vezes, Fernanda faz o chamado sem obter resposta. Na sexta tentativa, o ponteiro se move pousando na palavra impressa: "Yes".
- Muito bem, ele está aqui! - anunciei - Fernanda, pergunte o qual é o nome dele.
Fernanda pergunta então qual o nome da entidade que se manifestou, mas não recebe resposta. eu insisto para que ela pergunte o nome dele, mas não há movimentação do ponteiro. Eu volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunte ele ele é homem ou mulher.
A entidade responde com o movimento do ponteiro pousando na letra "H".
- Fernanda, pergunte a idade dele.
A entidade novamente não responde.
- Fernanda, pergunte o que ele quer.
Nesse momento, o ponteiro se move para a letra "V" e depois para a letra "C".
-Fernanda, pergunte se vocês dois já se encontraram.
O ponteiro se move pousando na palavra impressa "Yes".
- Fernanda, pergunta por que ele te quer.
Fernanda faz a pergunta em voz alta. Imediatamente o ponteiro lentamente se move pousando nas letras impressas nos  tabuleiro que formam uma única palavra: "PQEUSEIQVCMEAMA".
- Fernanda, pergunta para ele por que ele não diz seu nome se ele te ama tanto.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e o ponteiro não se mexe. Então volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunta se em algum momento tu fez algum mal para ele.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e o ponteiro volta a se mexer pousando nas letras impressas no tabuleiro compondo a seguinte frase: "NEUTEFIZMAL". Nesse instante, a menina começa a chorar e todos os presentes se entreolham. Então indaguei Fernanda.
- Fernanda, ele chegou a te dizer essas coisas quando tu e tuas amigas jogaram?
- Não.
- Tu tem alguma ideia de quem poderia ser?
- Não.
Tem certeza?
- Sim.
- Entendi. Pergunta para ele como sabe que tu ainda ama ele se ele te fez mal.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e logo após o ponteiro volta a se mexer pousando nas letras impressas que formam a frase: "PQTUNAOMEESQUECE".
Após isso, mesmo sem minha orientação, Fernanda responde à entidade quase que gritando:
- Mas eu não sei que tu é! Vai embora. Me deixa!
Fernanda começa a chorar baixinho murmurando que não aguenta mais aquilo pedindo para a entidade ira embora e deixá-la em paz. Eu volto a orientá-la.
- Calma Fernanda. Calma. Pergunta como ele te descrever como tu está vestida.
Ao fazer a pergunta, o ponteiro se mexe pelas letras impressas formando a seguinte palavra: "SHORTJEANSBLUSABRANCA", descrevendo as roupas que Fernanda estava usando.
- Fernanda. Agora tu vai ser firme com ele dizendo para ele ir embora e que ele não tem como te ter. Diz para ele que ele não faz mais parte desse mundo e que se ele te ama ele deve te deixar em paz. Diz para ele que foi um erro tu ter chamado ele.
Fernanda dá as ordens orientadas por mim à entidade em voz alta e firme. Por alguns minutos ela continua a se dirigir à entidade de forma imperativa usando argumentos dando a entender que não há como tê-la. Após suas palavras, o silêncio na sala volta a tomar conta.
- Fernanda, pergunta se ele está ainda aqui.
Fernanda segue minha orientação perguntando em voz alta quando o ponteiro volta a se mexer pousando na palavra impressa "Yes". Eu novamente a oriento:
- Fernanda, pergunta se ele quer algum tipo de perdão teu.
- Perdão? De que?
- Não sabemos. Ele está dizendo que te fez mal. Pergunta então se ele deseja isso.
-Fernanda faz a pergunta em voz alta que lhe orientei e o ponteiro se mexe pousando na palavra impressa "Yes". Eu lhe oriento.
- Diz pra ele que tu o perdoa.
Em voz alta, Fernanda fala: "eu te perdoo".
O ponteiro então se mexe por sobre as letras impressas formando a seguinte palavra: "OBG".
- Agora Fernanda. Diz novamente para ele ir embora.
Fernanda mais uma vez dá a ordem para que a entidade se vá. Logo após o ponteiro se mexe pousando na palavra impressa "No". Eu oriento a Fernanda para que pergunte a entidade por que ele não vai, se ela a perdoou e se ele realmente a ama, que ele lhe deixe em paz. Ela então, faz as indagações em voz alta, tal qual a orientei, obtendo uma resposta através do ponteiro se movendo pelas letras impressas compondo a seguinte palavra: "PQNAOCONSIGO".  
Eu volto a lhe orientar:
- Fernanda, diz para ele que tu pode ajuda-lo a ir embora, mas ele precisa dizer o seu nome.
Fernanda então em voz alta se dirige à entidade da forma como lhe orientei, obtendo a resposta dela através do tabuleiro através da seguinte palavra composta: "NHOJ".
Um sentimento interrogativo toma conta de todos, pois a palavra que seria o suposto nome da entidade, não fazia sentido algum aos presentes. O silêncio novamente toma conta da sala o que fez com que minha atenção se voltasse para Solange que mais uma vez se expressa inconscientemente através de sua linguagem corporal estendendo suas costas e procurando uma posição mais confortável em sua cadeira, como se tivesse captado alguma coisa que não quisera compartilhar mas que lhe incomodara um pouco. Eu, porém, já havia entendido e decifrado aquele pequeno anagrama.
- Fernanda, diz de forma firme: "Zozo eu sei que é você! Deixa ele em paz!"
Fernanda repetiu minhas palavras em voz alta. Mandei ela repetir, o que novamente fez:
- "Zozo eu sei que é você! Deixa ele em paz!"
- Fernanda, diz para o John que ele pode ir!
Fernanda arregala os olhos dirigindo seu olhar para mim para depois dirigir seu olhar ao ponteiro e em voz firme e alta diz: "John, vai embora!".
Alguns instantes se passaram sem nenhuma manifestação do ponteiro sobre o tabuleiro. Então, eu novamente oriento Fernanda sobre a comunicação da entidade:
- Fernanda, pergunta se ele ainda está aqui.
Fernanda faz novamente essa pergunta sem obter resposta vinda do tabuleiro. Por mais duas vezes orientei a menina a perguntar se a entidade ainda estava presente sem obter resposta alguma. Então eu disse:
- Ok Fernanda. Está com a oração que te dei para fazer na igreja?
- Sim. Está no meu bolso traseiro.
- Pegue-a, por favor. Pode tirar a mão do ponteiro. Todos vocês podem tirar as mãos.
Foi perceptível a sensação de alívio de todos ao retirarem suas mãos do ponteiro do tabuleiro, pois houve uma estafa não apenas mental mas física dos participantes da sessão. Todos passaram a massagear seus braços devido ao longo tempo de estiramento de seus membros. Naquele momento, mais de 1h30min se passariam desde o início da sessão.
- Fernanda, por favor, leia em voz alta, frase a frase, a oração que te dei e todos, por favor, repitam as frases ditadas por ela. Por favor, vamos nos dar as mãos. Vamos rezar um pouco.

"A Cruz Sagrada seja a minha luz, não seja o dragão o meu guia. Retira-te, satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mau o que tu me ofereces. Bebe tu mesmo os teus venenos! Rogai por nós abençoado São Bento, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."

Ao fim, eu complemento a oração:

"São Bento, nosso Protetor contra a feitiçaria, fiel servo do nosso Deus Pai Todo-Poderoso e eterno aprendiz de Jesus Cristo e Mestre de seus irmãos nos abençoe contra todas as forças do mal. Amém."

- Por favor, voltemos a nos concentrar na sessão, mas desta vez não quero que pousem suas mãos no ponteiro, mas sim que se deem as mãos. Eu permanecerei na mesma posição, com as mãos sobre minhas pernas. Fernanda, pergunta se o John ainda está aqui.
Para a incredulidade de todos, Fernanda faz a pergunta em voz alta quando o ponteiro volta a se mexer pairando na palavra impressa do tabuleiro "Yes". Eu intercedo, procurando acalmar a todos:
- Ok, mantenhamos a calma. Fernanda, pergunta por que ele ainda não foi embora. O que ele ainda quer?
Fernanda segue minhas orientações e o ponteiro volta a se mexer por entre as letras do tabuleiro formando a seguinte palavra: "JOAO844". Novamente eu intercedo:
- É uma passagem da Bíblia, do Evangelho de João. Como estou com as mãos livres, vou me levantar e buscar a Bíblia. Ali na janela tem uma. A deixei para segurar a janela aberta.
Então me levanto e vou em direção ao parapeito da janela para tomar em mãos minha Bíblia. Eu retorno já folhando-a posicionando na página do Evangelho de João Capitulo 8 Versículo 44 deixando-a aberta diante de Fernanda dirigindo a ela a seguinte orientação e apontando com o dedo a passagem nas páginas:
- Fernanda, leia em voz alta, daqui até aqui.
Fernanda lê a seguinte passagem em voz alta: 

“Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira."

Após a leitura por Fernanda, me dirijo aos presentes:
- Fernanda, por favor, pergunta se ele ainda está aí.
Fernanda mais uma vez faz a mesma pergunta já repetida por várias vezes naquela sessão recebendo mais uma vez a resposta através do ponteiro do tabuleiro: "Yes". Eu volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunta se ele te enxerga nesse momento.
Fernanda faz a pergunta obtendo resposta através do ponteiro do tabuleiro posicionado na palavra impressa "Yes". Eu volto a lhe orientar:
- Manda ele dizer como.
O ponteiro então se mexe pelas letras impressas do tabuleiro compondo a seguinte frase: "POROUTROSOLHOS".
Eu olho para a janela e todos me acompanham. No parapeito está posicionado um gato preto olhando para todos os presentes. Então eu oriento a todos:
- Calma, fechem todos os olhos que farei uma oração silenciosa.
Novamente oriento Fernanda a perguntar se a entidade ainda estava entre nós, o que foi respondido com o ponteiro pairando na palavra impressa "Yes". Porém, o ponteiro não ficou parado nesta palavra, dirigindo-se para outras letras formando a seguinte palavra: "TIMOTEO25". Tomei novamente a Bíblia nas mãos folheando-a na procura da passagem em Timoteo 2:5 e logo posicionando-a em frente a Fernanda para que ela lesse aquele trecho do texto em voz alta, o que fez. O texto dizia:

"Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem"

Peço a Fernanda que volte a fechar seus olhos, assim como os demais. Oriento a menina para que novamente pergunte se a entidade está presente. O ponteiro se mexe novamente pairando na palavra impressa do tabuleiro: "Goodbye". 
Peço novamente para Fernanda perguntar por mais duas vezes se a entidade ainda estava presente, sem ouvir resposta alguma vinda do ponteiro do tabuleiro Ouija. Então eu anuncio a todos os presentes.
- Acabou!
Embora com seus rostos ainda estampados de várias dúvidas sobre os acontecimentos ocorridos naquela mesa, Fernanda e seus familiares compreenderam chegara o final de seu flagelo. Ela então ela cai num choro copioso que remetia num alivio mental e espiritual sendo imediatamente abraçada por sua mãe e sua tia. Seu pai Renato joga seu corpo contra a guarda de sua cadeira respirando profundamente demonstrando uma tentativa de relaxar depois de semanas angustiado pela situação da filha. 
Após alguns minutos com todos em silêncio, senão pelos soluços de Fernanda, convidei a todos para que deixassem aquela mesa e se acomodassem novamente no sofá e poltronas dispostos entre aquela mesa e minha escrivaninha.
"Vamos conversar", anunciei.
- Pois bem meu amigos, chegou a hora de todos nós entendermos o que realmente ocorreu aqui. Talvez todos vocês pudessem ter um único pensamento a meu respeito e à proposta que fiz a todos para tentar ajudar a Fernanda. Eu sempre me apresento como padre, um sacerdote católico devoto à missão de evangelizar e promover a fé entre as pessoas através da compreensão da palavra de Deus e de Jesus, mas todos também sabem das minhas demais formações acadêmicas nos campos da psicologia e psicanálise porque encontrei em muitos casos como esse respostas mais mundanas do que do além. A bem da verdade, e por várias vezes, as coisas que vi até hoje foram simplesmente explicadas através da compreensão da mente humana e resolução dos pequenos enigmas que ela constrói de modo invisível e silencioso. Para vocês terem uma ideia, presenciei a solução de vários casos de pessoas com distúrbios atribuídos a "abduções alienígenas", mas que na verdade eram casos de abusos de familiares mascarados pela repressão psicológica imposta a elas ou meramente autossugestão delas próprias procurando somente "chamar a atenção" das pessoas. Esses casos foram resolvidos através da aplicação da hipnose. Poderíamos ter usado hipnose com a Fernanda, se não fosse pelo fato de ter visto logo de cara que a coisa era um pouco mais séria.
O que eu estava tentando explicar à todo ali era o fato de que, chega determinado ponto, em algumas situações, que realmente devemos considerar que nem sempre conseguimos explicar a causa de uma crise com argumentos baseados na ciência, passando a considerar o emprego dos milenares conhecimentos construídos e adquiridos pela Igreja Católica, apesar destas situações serem cada vez menos aceitas no meio do catolicismo. No entanto, procura-se, antes disso, esgotar todas as possibilidades científicas para depois passarmos a encarar a situação como algo mais extremo. Por outro lado, pode-se também encarar os fatos como algumas pessoas querem que se encare: através das respostas simples e fáceis, atribuindo seus problemas à forças e entidades do além, mas sem deixar de procurar identificar indícios que venham a explicar plausivelmente as circunstâncias dos fatos.
Expliquei, portanto, que em terminado momento decidi abordar a situação de Fernanda como sobrenatural, passando a considerar que, de fato, ela tinha feito contato de modo ingênuo com algum tipo de espírito inquieto, inseguro e desamparado o qual ainda não tinha encontrado paz após sua morte. Não se tratava de uma possessão, por isso descartei o processo de exorcismo, mas sim de exortação da entidade, pois a situação demonstrava que o espírito ainda não havia entendido sua atual situação.
- Fernanda, o que ocorreu foi que, a "brincadeira" tua com tuas amigas de tentarem entrar em contato com algum espírito provocou uma situação que vocês não tinham condições de controlar. Quando se tenta esse tipo de contato, na maioria das vezes,  muitas outras entidades maldosas se aproveitam da ingenuidade e inocência, tanto da pessoa que está tentando fazer contato quanto do espírito que quer se comunicar. Os espíritos que tentam se comunicar são entidades que passaram para o plano dos mortos de uma maneira abrupta, geralmente através de mortes violentas como assassinato, acidentes ou mesmo suicídio. São almas perdidas que ainda não perceberam que não mais estão entre os vivos ou simplesmente não aceitam isso. Há outros casos, no entanto, que a morte ainda não foi aceita pelo espírito por estar carregada de ressentimentos, frustrações e sentimentos de vingança para com alguém que fez parte de sua história, não sendo necessariamente a pessoa que tenta o contato. São espíritos sem paz, por isso que há alguma facilidade para se estabelecer uma certa comunicação com eles.
Expus mais aspectos sobre o assunto explicando que, o contato com esses espíritos pode desencadear inúmeros perigos, pois eles usam àqueles que tentam contacta-los para tentar "resolver suas pendências" de alguma forma ainda no mundo dos vivos. E tudo começa com um primeiro contato que pode ser feito de várias formas, como nesse jogo do tabuleiro. Para a entidade, isso não é um simples jogo ou brincadeira e pode ser a oportunidade para tentar permanecer entre os vivos de uma forma arbitrária usando aqueles que tentaram contato consigo. A partir daí, inicia-se o processo do que é comumente chamado de "assombração", quando o espírito começa a perturbar a pessoa que tentou contato fazendo-a sentir sua pesada presença. A coisa começa a se complicar quando passam a surgir súbitas aparições da entidade para essas pessoas para posteriormente começarem a surgir sinais mais contundentes, como de agressões físicas, dentre os quais machucados, arranhões e hematomas. Tudo isso são sinais de que a entidade já estaria passando a se alimentar e drenar as forças de sua vítima para que finalmente possa apossar-se de seu corpo físico podendo leva-la a morte definitiva. E por mais que as pessoas tentem a não mais continuar com esse tipo de contato com a entidade uma vez feito, torna-se difícil desfazer o vínculo formado pois uma espécie de porta entre o nosso mundo e o mundo dos mortos teria sido perigosamente aberta. Provavelmente, foi isso que aconteceu.
Continuei a explicação dizendo que, especificamente sobre o método de comunicação do jogo do tabuleiro, é muito comum que um demônio chamado Zozo se manifeste. Ao que se sabe, os estudos e relatos existentes sobre ocultismo e necromancia descrevem Zozo como um dos vários anjos caídos banidos do céu há eras por Deus. Expliquei aos presentes que tal entidade gosta de enganar e jogar com as pessoas que possuem certa facilidade e capacidade para se comunicar com outros espíritos, os médiuns. Nesse caso, Fernanda não apenas tinha se proposto a ser a médium no jogo do tabuleiro como, sem mesmo saber, teria sua inata mediunidade especialmente desenvolvida. Seria, portanto, uma vítima perfeita para o demônio Zozo, que adora ver suas vítimas se contorcendo de confusão tendo mais prazer quando um humano acredita em suas mentiras. Ele é um enganador, o que não é surpreendente, pois o Diabo é reivindicado como o "Pai de Todas as Mentiras", sendo Zozo um poderoso Diabo no Inferno, sob Satanás.
Para mim, foi fácil constatar a atuação de Zozo no contexto dos distúrbios de Fernanda. A primeira constatação foi o aspecto facial da menina (pequenos hematomas na face, olheiras e uma palidez cadavérica) que já indicavam isso. Outras constatações foram: a resistência da entidade em revelar o seu nome, como se quisesse provocar as pessoas que estivera açoitando, bem como as respostas mnemônicas e abreviadas, como se estivesse digitando uma mensagem por aplicativo de celular de troca de informações, tentando demonstrar ser jovial, se passando por, ou se utilizando de um, espírito de um garoto. Apresentar-se escrevendo seu nome de trás para frente também foi uma constatação da presença de Zozo, sendo ele reconhecidamente um demônio brincalhão. 
O modo, no entanto, que se combate e se espanta Zozo é através do seu desmascaramento. E foi assim que fizemos durante a sessão quando rezamos todos juntos a oração de São Bento, uma arma poderosa contra a feitiçaria e ação de entidades demoníacas. A invocação de São Bento funcionou como um soco no queixo de Zozo, que aturdido, deixou com que o espírito que ele estava manipulando pudesse por si só se manifestar. Sim, Zozo estava brincando, tanto com Fernanda quanto com outro espírito que tentava, de fato, entrar em contato com a menina. Esse marionete de Zozo seria o tal John. E John, na primeira oportunidade que teve, revelara a presença demoníaca quando indica a todos os presentes através do ponteiro do tabuleiro a pista que nos faltava, nos orientando a ler a passagem bíblica João 8:44. O mentiroso foi descoberto, fazendo assim com que deixasse a todos em paz. 
Tudo se explicara, exceto por uma coisa:
- Fernanda, agora por favor, nos responda: quem é John?
- Não conheço nenhum John, padre.
- Não faz ideia de quem seja? Um ex-namorado, um colega, algum conhecido?
- Nunca tive namorados, padre. Até hoje, eu admito, eu só gostei de um menino e nome dele era Guilherme. Ele foi embora para os EUA há uns oito meses atrás.
Essa informação caiu como uma confissão junto aos pais de Fernanda. Sua tia Solange voltava seu olhar para ela de uma forma apreensiva, como na expectativa de que Fernanda pudesse falar mais alguma coisa, como um segredo. Os pais de Fernanda prenderam seus olhares para Fernanda não escondendo a surpresa, talvez não por recém saberem do interesse de Fernanda por um menino, mas por saberem quem era. 
Seu pai, Renato, se dirige a Fernanda:
- Guilherme, o filho do Alex?
- Sim, pai. Ele.
- Ah meu Deus!
A mãe de Fernanda, subitamente se manifesta, tendo um lampejo de memória:
- Aquele menino, Renato?
- Sim, Rosane. O nome dele era João Guilherme, mas ele só se apresentava como Guilherme, pois não gostava de seu primeiro nome. Ele morreu a seis meses atrás num acidente de carro nos EUA. Quando ficamos sabendo, acabamos por não mencionar o ocorrido a ninguém, pois nos parecia irrelevante. Nunca passou por nossas cabeças a ideia de que Fernanda pudesse ser apaixonada por esse menino. O Alex foi um colega meu de trabalho que acabou sendo transferido para os EUA.
Então, eu espalmei minhas mãos e pronunciei:
- John!
Como que num estado de choque, Fernanda fica paralisada com seus olhos arregalados, respiração ofegante e boca entreaberta, como que quisesse chorar e gritar ao mesmo tempo, mas sem forças para tal.
- Pois é, tudo agora faz sentido - eu disse.
Ainda relembrei a todos sobre a orientação dada pelo então revelado espírito de João Guilherme, já livre da influência de Zozo, para que fosse lido o trecho bíblico em Timoteo 2:5 que tentava explicar a Fernanda que é errado procurar os mortos, para o que quer que fosse.
- Bem, agora que estamos todos mais calmos, e já que expliquei o ocorrido a todos, devo dizer, Fernanda, que tudo isso deve de servir como um grande aprendizado, não apenas para ti mas para todos vocês. Procurar invocar os mortos é pecado e perigoso e isso nunca deve se repetir, pois as consequências poderiam ser terríveis. Por mais que a maioria do mal esteja entre os vivos, existem muitas coisas entre o Céu e a Terra que não compreendemos direito, Ok?
Fernanda balança a cabeça positivamente entendendo a lição para que nunca mais tentasse esse tipo de coisa. 
Novamente, faço uso da palavra:
- Bem, agora quero conversar apenas com os senhores pais. Solange, peço que tu e a Fernanda saiam um pouco da sala. Estejam livres para tomar um refrigerante aqui no bar da esquina. Por favor, aproveita e me traz duas latas de cerveja, porque mais tarde vou precisar!
Sem mais a presença de Fernanda e Solange, me levanto pedindo a todos um minuto para que eu fizesse algumas coisas:
- Deixa eu fechar essa janela. Tá na hora de ligar o ar condicionado e desligar essa estufa eu já não aguentava mais esse sufoco!
Os pais de Fernanda entreolharam se incrédulos, sem entender aquilo. Afinal, o ar condicionado não estava quebrado? 
Após ligar o ar condicionado e desligar o aquecedor que estava atrás de minha escrivaninha, volto a tomar meu assento na poltrona central com um pequeno sorriso, dizendo:
- Bem senhores pais, tenho uma coisa para lhes dizer: não havia espírito algum.
- Como assim padre? - esbraveja Renato.
- Calma Renato, eu vou explicar tudo agora. A sessão que tivemos foi inteiramente provocada por mim, mas de acordo com a sugestão inconsciente que Fernanda estava passando. Eu planejei com alguns detalhes na tentativa de entender o que realmente estava se passando com a menina e descobri. Vamos lá, vou repetir o que disse por várias vezes: sou um padre. A minha fé refuta tudo isso. Todos esses princípios que havia exposto fazem parte de diversas doutrinas que não chegam a ser propriamente uma religião, como o espiritismo. A comunicação com os mortos é peça central na doutrina espírita mas não cabe no catolicismo. Preferimos sempre encontrar as respostas menos obvias e mais complexas, porém mais verdadeiras. Não precisamos ver nada para crermos e isso nos traz sempre um sentimento de seriedade e ao mesmo tempo ojeriza, pois é muito fácil pra as pessoas encontrar algum conforto diante da perda de alguma pessoa querida tentando comunicar-se com ela após sua morte. Definitivamente não foi isso o que ocorreu e vou lhes mostrar.
Era evidente que, tanto Renato quanto Rosane estavam com muito mais dúvidas agora do que em qualquer momento. Rosane inicia um chuva de perguntas, uma atrás da outra, sobre todos os indícios que foram apresentados naquela sessão, os quais passei a explicar um por um.
- Veja bem: em primeiro lugar solicitei que Fernanda ficasse sentada naquela cadeira e logo lhe perguntei se ela sentia algum tipo de desconforto na base de suas costas  o que ela assentiu. Na verdade, se for olhar de perto, o assento da cadeira tem uma levíssima inclinação, bastando ficar sentada alguns minutos para qualquer um comece a sentir dores lombares. Depois disso, analisei o material que ela trouxe naquela caixa, principalmente a oração que fez para invocar espíritos usada para iniciar o jogo, o que na verdade é uma tradução grosseira em latim feita por aplicativos on-line encontrados na internet. Bastaria apenas cinco minutos de pesquisa no Google para que se encontrasse vários blogs escritos por jovens sobre instruções de como jogar o Ouija, inclusive preces e orações para invocação dos mortos. Nesse caso, quem tem um pouco de conhecimento sobre latim percebe a simploriedade daquele texto. Vocês também devem estar se perguntando como explicar a movimentação do ponteiro do tabuleiro e isso é simples, cuja resposta é conhecidíssima na psicanálise: "efeito ideomotor".   
Explicando melhor, o efeito ideomotor refere-se a pessoas fazendo movimentos ou agindo sem deliberação consciente. Embora alguns exemplos de efeitos ideomotores sejam bastante diretos, outros levantam questões substanciais sobre o uso adequado de ferramentas preditivas e até sobre a interação de seres humanos com elementos considerados à margem do conhecimento científico. O tabuleiro Ouija é um desses casos. Muitos cientistas sugeriram que essas atividades são baseadas em um efeito ideomotor, e não em outras causas teóricas comumente atribuídas ao sobrenatural. Uma das formas de se contestar as psicografias promovidas por médiuns espíritas pode ser encontrada através dos estudos sobre o efeito ideomotor. 
Sendo assim, todos os movimentos feitos pelo ponteiro nada mais foi do que a própria autossugestão inconsciente de Fernanda numa tentativa suposta de estabelecer contato com uma entidade do além. O que também deixei claro durante a explicação é que eu tinha 100% de certeza de que Fernanda procurou, provavelmente de forma inconsciente, fazer contato com sua paixão adolescente. 
- Senhores, posso garantir que Fernanda de alguma forma ficou sabendo da morte daquele menino, muito provavelmente através de amigos em comum da escola ou de outros círculos de convivência. Arrisco a dizer também que essa notícia foi um choque para ela, a ponto de promover essa blindagem psíquica fazendo-a praticamente esquecer, ou tirar de sua consciência, algumas informações que ela gostaria que fossem apagadas.
Solange novamente me questiona na tentativa de entender os eventos que presenciou:
- Mas padre, como o senhor explica o momento em que o ponteiro se mexe sozinho, sem nossas mãos?
- Por causa disso aqui.
Mostrei a ela um artefato que havia confeccionado. Era uma velha antena de rádio de mais ou menos um metro e meio tendo na ponta afixado um grande imã.
- Rosane, quando todos tiramos as mãos do ponteiro, tomei o cuidado para que ninguém visse eu manipulando isso. Eu retirei esse imã de um alto-falante velho, e o soldei na ponta dessa antena de rádio velha. Eu encosto o imã bem debaixo do tampão da mesa fazendo com que o ponteiro se mexesse sozinho. Se virar o ponteiro do jogo e olhar abaixo dele, verá que colei uma pequena placa de metal sem vocês perceberem. Isso é uma velha brincadeira de criança que fazíamos para assustar nossos amigos. Funcionou hoje mais uma vez! Eu fiz isso para que pudesse montar algumas mensagens que de fato gostaria de passar a Fernanda, principalmente a ideia de que não se deve mexer com os mortos. Afinal, a autossugestão de Fernanda não iria mandar ela ler pedaços da Bíblia.
- Mas padre, e o gato?
- Ah, o Espirro!
- Espirro?
- Sim, meu amiguinho Espirro, meu gato de estimação. Esse sem-vergonha anda sempre pela vizinhança e só volta pra comer e dormir. Ele adora subir e ficar me olhando naquele parapeito da janela. Foi por isso que a abri, para que ele viesse e ficasse sentadinho ali, como de costume, por isso tive que dizer que o ar-condicionado estava quebrado. Ele adora rodelas de salaminho, por isso que é fácil chamar ele. Quando fui pegar a Bíblia na janela, não a deixei ali para ela aberta, mas para que eu pudesse colocar duas fatias de salame ali e chamar o Espirro. O resto, vocês devem já ter deduzido: foi escrito por mim durante o jogo manipulando o ponteiro com o imã. E  para isso ninguém podia estar com as mãos nele.
Os pais de Fernanda franziam a testa e não paravam de me olhar com uma incredulidade sem precedentes. Além de acalmá-los ainda disse que teria mais comentários a fazer sobre Fernanda.
- Senhores, vocês perceberam que as mensagens foram todas abreviadas, como se tivessem conversando por Whatsapp. A Fernanda se comunica com vocês dessa forma pelo celular?
- Sim, padre. A Rosane, por ser professora, fica furiosa com ela por causa dessa preguiça em escrever as coisas de forma correta - Ponderou Renato.
- Então, uma forma bastante adolescente de se comunicar. Agora, Senhores, vem a parte mais séria e importante da coisa. Me respondam diretamente: vocês garantem que a Fernanda nunca se relacionou com ninguém? Vou ser mais incisivo: sabem me dizer se a Fernanda ainda é virgem?
- Como é que é Padre - diz Renato, num aspecto de surpresa e incômodo com a pergunta.
- Bom, vou ser direto. Eu acho que, sinceramente, Fernanda não era só apaixonada por esse menino Guilherme. Eu já vi casos do tipo, de meninas transtornadas com uma iniciação sexual forçada e traumatizante com alguém que desejavam muito mas que lhe no fim lhe decepcionaram. Não são raros os casos de abusos por meninos de meninas durante a adolescência. Eu creio, senhores pais, que Fernanda passou por alguma experiência traumatizante com esse menino a ponto de frustra-la e marcar sua psiquê profundamente. Pensem comigo: ter uma paixão por alguém e se decepcionar com o modo violento como foi tomada por essa pessoa, especialmente na inocente fase da adolescência. Eu acho que, depois dessa experiência, Fernanda não sabia como agir, especialmente para uma menina como ela: bonita, desejada por muitos e sempre admirada por todos em sua volta. Isso deve ter gerado um grande desespero nela, pois também sabia que não teria abertura para conversar sobre esse tipo de assunto com ninguém, especialmente vocês pais. Desconfio também que isso ocorreu alguns dias antes do rapaz ter ido embora. Sua partida também contribuiu para isso, pois ficou uma situação aberta e não resolvida. Com toda a certeza Fernanda nutria uma expectativa sobre o rapaz, mesmo com ele a distância, como que esperando um pedido de desculpas dele pelo mal que nela havia feito,  talvez para atenuar sua decepção procurando justificar a paixão que ainda restava pelo rapaz, o que não ocorreu. Imaginem agora o desespero dessa menina quando soube, de alguma forma, sobre sua morte. Ela não tinha com quem desabafar, e nem queria. Uma mistura de medo e orgulho que não a deixava tocar no assunto e isso se internalizou e a traumatizou tanto, a ponto de possivelmente ter bloqueando certas lembranças sobre esse menino. Eu acredito que, seu interesse pelo jogo do tabuleiro tem a ver com uma tentativa desesperada da Fernanda de se comunicar com alguém que gostou tanto, mas que lhe machucou profundamente para tentar dar um ponto final. Posso garantir que esse menina ainda sofre muito com essa mistura de sentimentos sobre esse jovem.
Mais uma vez um silêncio ensurdecedor toma conta do meu gabinete, quebra pelo choro desesperado de Renato.
- Meu Deus, meu Deus. Nossa filhinha! Rosane, como pudemos ser tão cegos assim? Meu Deus, meu Deus.
- Senhores - concluo - sugiro então que procurem definitivamente auxilio profissional. eu mesmo posso indicar uma psicóloga colega minha de pesquisas que poderá auxiliar todos vocês. Esse trabalho não deve ser apenas com a menina mas com todos os familiares. Mas antes, sugiro que conversem com a Solange, pois ela deve saber de alguma coisa, provavelmente  não todos os detalhes, pois esse tipo de trauma impede até mesmo as tentativas mais dolorosas das pessoas de desabafarem.
Para finalizar e não deixar nenhuma dúvida a respeito da sanidade do processo que conduzi, confessei a todos que, a menção do tal demônio Zozo também foi trabalho meu com o objetivo de deixar toda a sessão verossímil aos olhos daquela família.
- Gente, nos mesmos blogs da internet que a Fernanda pesquisou, é muito fácil encontrar a menção do demônio Zozo quando se joga o Ouija, inclusive com relatos supostamente verdadeiros sobre a manifestação dele durante esses jogos. Pura lenda urbana, fiquem tranquilos.
Eu me despeço de todos coberto de agradecimento por parte dos pais de Fernanda. A menina e suas tias já estavam de volta na antessala da casa paroquial. Ao abrirmos a porta do meu gabinete, Renato salta a frente e abraça efusivamente sua filha seguido por sua esposa Rosane. Antes de partirem, porém, dou a todos uma benção familiar especial.
- Agora vão em paz e Solange, me passa aqui essas latas de cerveja!
Após todos se despedirem e tomarem rumo a seus lares, me sinto a vontade para abrir minha camisa, ligar minha caixinha  de som para curtir suavemente  "For the love of God" do Steve Vai, minha terapia favorita de relaxamento. 
E mais uma vez me deparo nas reflexões da complexidade do ser humano e de sua relação com as coisas que ele não entende. E nunca entenderá.
Cada vez mais a ciência toma conta de nossas mentes e espíritos trazendo luz ou mesmo trevas para as perguntas que sempre fizemos sobre nossa existência e toda a dinâmica que nos envolve como seres humanos. Luz, porque a compreensão das coisas sob o método científico nos traz possibilidades reais da solução de muitos dos nossos problemas antes apenas deixados para que fossem resolvidos por si só e aos olhos do divino. Trevas, porque cerceia de vez a esperança das pessoas minando a fé daqueles que apenas querem crer, assim como aniquila todo e qualquer romantismo sobre as narrativas fantasiosas cuja única explicação não poderia ser encontrada em planos mundanos. No entanto, como agir quando ciência e fé cada vez mais se aproximam, ou quando as respostas derradeiras esbarram em paredes inexpugnáveis onde o método científico se dissipa restando apenas milenares anos de observação e relato? É por conta de reflexões como essa que um padre como eu pode sentir-se a vontade pra citar algumas palavras do renomado astrônomo Carl Sagan, um homem da ciência por excelência que não era religioso mas também nunca admitiu seu ateísmo: "Ausência de evidência não é evidência de ausência.". 
Alguém parou para pensar que os conhecimentos que temos sobre nossa existência se cruzam com a ciência e a filosofia, cada qual podendo ser escrito em diversos formatos teosóficos que polvilham as entrelinhas de incontáveis teologias por todo o nosso mundo? E, sendo assim, surge a difícil e complexa necessidade de explicar para aquelas pessoas simples as intrincadas relações entre essas diversas correntes de conhecimento sem correr o risco de confundi-las e iludi-las sob a tentação delas agarrarem-se posteriormente às fanfarras das pseudociências. Estas, oriundas da carência de sólidos fundamentos científicos, charlatanismo e vazios mitológicos que buscam muitas vezes provar de maneira doentia embarcadas em fanatismos apenas alguns simples pontos de vista apresentados sem a resposta para um todo. 
Pois então! Nem tudo conseguimos explicar à luz da ciência. O fato é que somos humanos, suscetíveis a exageros, juízos equivocados e muitas outras falhas. É por isso que nem tudo deve ser exposto como é, pois a humanidade de um modo geral não esta apta para tal. Nem mesmo àqueles que se julgam iluminados detentores do saber, uma presunção terrível para uma jovem espécie como a nossa nesse vasto universo.
Escorado no marco da porta encarando aquele tabuleiro sobre a mesa deixado por aquela família e, entre um gole e outro de cerveja bem gelada, falo em voz alta:
- Pois bem amigo, está na hora de tu descansar. Por favor, essa menina já sofreu o suficiente por tua causa, agora deixa ela. Tu também já sabes qual é o teu lugar, vai em paz e não dá mais ouvido praquele mentiroso.  Boa noite, João Guilherme.
O ponteiro do tabuleiro se move e paira na palavra impressa do tabuleiro "goodbye". 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Viagem de volta

Devo confessar: já estou de saco cheio dessa rotina! 

E dizer que um dos aspectos que me levaram a aceitar esse emprego seria justamente o de viajar por várias cidades do estado, todas elas não tão longe e ao mesmo tempo não tão perto de casa. Foi fácil imaginar que não seria um trabalho tão chato visitar as mais de quinze filiais da empresa vistoriando suas instalações e trocando ideias com os colegas. Isso significa que, mesmo esporadicamente, colocar o pé na estrada acabaria sendo uma necessidade, pois ações como essa também fazem parte das competências de um gestor de tecnologia como eu.  O que não se poderia imaginar era que isso um dia fosse se tornar uma rotina cansativa, a ponto de fazer de tudo para evitá-las a todo o custo, sempre buscando qualquer tipo de contorno sobre elas. E não é para menos. Cada uma dessas viagens leva no mínimo três horas de estrada (quando não sete ou oito) entre a matriz da empresa, daqui em Santa Maria, até a filial de destino, algo que já não me atraía há um bom tempo. Para potencializar meu desgaste e repulsa a essas viagens, minha ansiedade compulsiva passou a não aceitar muito o pernoite em cidades interioranas. O bucolismo e melancolia de suas aparências urbanas decadentes e esquecidas passaram a me deixar inquieto fazendo-me tomar por completo de uma sensação de isolamento e esquecimento. Instaurava-se aí o pânico numa mente não tão equilibrada emocionalmente quando apresentada a cenários como esse associado à solidão de um quarto simples de, em alguns casos, único hotel da cidade. Restava, nesses casos, apenas jantar uma torrada na lancheria do posto de gasolina da cidade situado na beira da estrada acompanhada de um refrigerante a alguns comprimidos de ansiolíticos. E caso esses demorassem a fazer efeito, me via obrigado a abrir algumas garrafas long neck da única cerveja disponível, até quase cair de sono no tampo do balcão para só acordar cedo da manhã do outro dia.

Para evitar esse tipo de tormento, a melhor saída que encontrei foi delegar essas indiadas para alguém da minha equipe, desde que devidamente capacitado e com o olho clínico para detalhes técnicos, essenciais para o bom cumprimento da missão. O cara deve ser um baita dum chato (tanto quanto eu) para avaliar as instalações elétricas e de telecomunicações com seus devidos acabamentos. De um tempo pra cá, deixei como encarregado dessa tarefa o Eliézer, o técnico da minha equipe responsável pela infraestrutura de telecomunicações da empresa. E nele realmente dava para confiar esse tipo de missão, afinal, era uma cria profissional minha, transformando-se num baita mala quando se tratava de cobrar serviço bem-feito pelos fornecedores. 

Eis então que surge mais uma demanda dessa natureza. Dessa vez, a diligência seria até a filial da empresa na cidade de Dom Pedrito, a duas horas e meia da matriz. Chegara a hora do sonho de nossos colegas dompedritenses se concretizar, estando eles às vésperas de realizar a mudança da loja para o novo endereço, onde o prédio moderno e confortável, não apenas atenderia melhor os clientes daquela cidade, como elevaria o prazer e orgulho de trabalhar na empresa. E já não era mais tempo, pois já se questionava como que uma empresa daquele porte permitiria manter uma filial em instalações tão precárias como a atual.

 Para tanto, e como de costume, duas semanas antes eu já havia notificado Eliézer sobre sua viagem de supervisão ao tal novo prédio. Diga-se de passagem, algo que ele detesta! Era só falar em viagem e já estava ele providenciando uma viatura da empresa, reservando quarto no hotel da cidade e decidindo o sabor do xis que ia jantar a noite. E dessa vez, não foi diferente, bastou vinte minutos após a missão dada para ele se dirigir até minha mesa me comunicando que já estava tudo certo para sua empreitada. Mas, tudo isso somente seria possível se o infeliz não me contraísse covid pela quarta vez, sendo obrigado a se afastar do trabalho por meio de um atestado médico ficando de molho em casa por uma semana. E o pior, ainda infectou metade do resto da minha equipe. Diante dessa situação, estando todos ferrados, adivinhe a quem sobrou a deliciosa tarefa de então vistoriar as instalações do novo prédio? 

Eu, né! 

Tudo bem. Já que é inevitável, que seja o menos doloroso possível. Às vésperas da viagem, tomo as chaves da viatura da empresa já alocada para essa. Deixo-as na minha primeira gaveta para que no outro dia, as seis horas da madrugada (sim, para mim seis horas ainda é madrugada) eu as apenhe e tome o rumo a Dom Pedrito, deixando meu carro no estacionamento da matriz. Não haveria problema algum em deixá-lo ali, pois estaria longe dos meus planos o pernoite naquela cidade. Minha intenção era chegar, vistoriar e vazar fora, de modo que pegaria a estrada de volta no mais tardar as dezesseis horas a fim de chegar em Santa Maria no máximo até as dezenove horas. Só em pensar que estaria de volta no mesmo dia, a despeito das duas horas e meia de estrada, já era um alento no meu coração.

Além da covid, Eliézer me apronta outra: o carro que ele locou, e que por consequência seria usado por mim, era uma indecência. Um Fiat Uno 1.0 sem ar-condicionado, sem direção hidráulica (ainda fazem carros assim) e com a suspensão dura feito um pau. Ainda por cima, se previa um frio de lascar, fazendo com que aquele caixote de lata se transformasse num freezer às seis horas de uma manhã em pleno julho. Meus planos de retorno cedo começaram a melar quando o pessoal do setor de peças me atrasou 40 minutos separando peças e as acondicionando no porta-malas do pé-de-boi que seriam levadas por mim para a filial aproveitando o translado, uma prática comum entre as filiais. O carro já era uma charrete com o porta-malas vazio, imagina então com ele cheio de peças agrícolas pesadas. 

A viagem até Dom Pedrito é um tanto quanto desoladora, mesmo que tenha lá seus pequenos encantos, pois corta a campanha gaúcha, apresentando uma paisagem que instiga os sentimentos solitários de reflexão que de certa forma me fascinam, mesmo que a noite se complemente com um desespero, pois se ocorrer algum imprevisto, não há o que fazer senão esperar uma santa alma passar e lhe socorrer. São quilômetros e quilômetros entre uma cidade e outra, um posto de gasolina e outro. A coisa fica bem mais divertida entre Rosário do Sul e o entroncamento da BR-293 com a BR-158. Sinal de celular, nem pensar. Mas tudo bem, pois veria aquela estrada somente cedo da manhã e ao entardecer do mesmo dia.

Aquele deslocamento duraria entorno de duas horas e quarenta minutos, chegando pelas dez horas e cinquentas minutos ao local. Logo ao chegar, não me faço de rogado e dou logo início aos trabalhos de avaliação da infraestrutura acompanhado do gerente da filial, Miguel, e demais fornecedores cujos serviços de instalação foram terceirizados. Após fazer incontáveis check-lists, fotografias das instalações para documentação, solicitações e sugestões de adequações das mesmas de minha parte e da parte do Miguel aos fornecedores, nos liberamos indo todos almoçar num pequeno restaurante local próximo das treze horas. Já estava empolgado com a ideia de início de retorno à Santa Maria antes mesmo das quinze horas, bem antes do esperado, pois havíamos nos adiantados nos afazeres.

Findando o almoço, dirigimo-nos agora ao antigo prédio onde a filial ainda operava. Começo os preparativos para retorno me despedindo do Miguel e demais colegas, não esquecendo de consultar a equipe de peças da loja se haveria alguma pequena carga de itens a serem transferidas para a matriz. Os colegas daquele setor me responderam de forma afirmativa, já embarcando devidamente os itens no porta-malas do pé-de-boi. Com isso, minha expectativa, no entanto, de que aquela condução pudesse ter um pouco mais de performance ao retornar devido ao porta-malas estar vazio, e, portanto, mais leve, foi para o espaço. 

Após o acondicionamento das peças no porta-malas e as devidas despedidas, me vi pronto para tomar a estrada quando um dos colegas da loja me chama dizendo que havia uma ligação telefônica para mim lá no telefone do balcão de peças. Embora tivesse achado estranho o fato de alguém ter me procurado através do telefone de linha fixa da filial (pois praticamente recebo ligações somente pelo meu celular), não hesitei em atendê-la. Do outro lado da linha uma voz envelhecida de homem saldou:

- Boa tarde Augusto, como vai. Aqui é o Valdir.

- Valdir, Valdir, Valdir... desculpa, mas não tô lembrado de ti.

- Ah, me desculpa. Sou daqui do setor de peças de Santa Maria. Faz pouco tempo que assumi aqui, é por isso que tu não me reconheceu.

Realmente, não reconheci o Valdir. Algo que também não era de se espantar, pois a empresa havia crescido muito aumentando bastante o número de novos funcionários e esse senhor deveria ser um desses. Sua voz suave e nitidamente de um homem com idade mais avançada chamou minha atenção, pois não é comum contratações de pessoas mais velhas. Apesar disso, a sensação de calma e tranquilidade que suas palavras me passaram fizeram com que eu ignorasse qualquer outro tipo de indagação sobre quem seria aquele homem.

- Augusto, fiquei sabendo pelo pessoal daqui da matriz que tu estás em Dom Pedrito. Preciso que me tragas uns itens daí. Só tem um problema, os itens ainda não estão nessa loja.

- Como assim Sr. Valdir?

- Pois é, uma situação incomum. O que posso te dizer é que a transportadora ficou de entregar aí e eu preciso delas aqui. É coisa importante.

Não preciso dizer como ficou minha cara após ouvir isso. Pergunto para os guris do setor de peças que horas a transportadora costuma chegar na loja: por volta das dezoito horas.

Puta...

Que...

Pariu...

- Ok Sr. Valdir, vou ter que esperar então. Fazer o que?!

- Muito obrigado Augusto. Que Deus te abençoe!

Bah, mas a entrega desses itens é tão crítica assim? "Deus te abençoe". Logo imaginei esse tal Valdir um senhor que está se esforçando para que seja efetivado na vaga de vendedor de peças lá em Santa Maria como que "demonstrando serviço". Enfim, como disse a ele, só me restaria esperar. Se eu soubesse o que estaria por vir, não teria deixado de perguntar o que seriam os tais itens, coisa que não fiz por induzir meu pensamento automático a serem apenas mais uma pequena carga de peças. 

Mas eu deveria ter perguntado...

O sol começa a se pôr, a temperatura cai vertiginosamente, o expediente da loja se encerra, os colegas da filial vão para casa... e nada da transportadora.

Já era quase dezenove horas. Miguel se despede de mim ao fechar o portão me deixando do lado de fora da loja com o carro da empresa. Antes de ir, porém, dissera a mim estranhar uma carga de peças estar por chegar naquele horário, embora isso já tenha ocorrido em algumas pouquíssimas ocasiões. Bastou alguns minutos após a partida de Miguel e uma caminhonete Chevrolet C-10 bastante velha aponta na esquina estacionando ao lado do Uno. Um senhor baixinho e atarracado desceu do veículo chamando pelo meu nome com sua voz baixa e grave:

- Augusto?

- Sim, sou eu.

- Aqui estão os caixotes. Boa viagem.

O homem que aparentava aproximadamente uns setenta anos, além de não apresentar nenhum tipo de expressão facial, evitou me olhar mantendo-se sempre de cabeça baixa, descarregando com rapidez três pequenos caixotes os deixando no meio-fio da calçada. Com uma pressa desconcertante, o atarracado senhor retornou para a cabine da caminhonete arrancando aquela sucata sem dizer uma única palavra. As caixas, embora lacradas, eram lisas, sem nenhum tipo de identificação de algum fornecedor. Não perdi tempo e as acomodei sobre as demais no porta-malas do carro. Já estava frio e meus planos de estar em casa cedo já tinham ido para o espaço. Embora tenha cedido brevemente lugar para a estranheza, meu sentimento de irritação ainda era grande por ter que encarar algumas horas de estrada escura e deserta à noite num frio de rachar. 

O Uno já estava abastecido e carregado, restando apenas tomar a estrada para retorno. E assim iniciei minha viagem de volta para Santa Maria. Apesar da carga prejudicar o desempenho do judiado motor 1.0 daquela caixa de fósforos, uma certa serenidade pairou sobre mim. O trecho da BR-293, entre a cidade de Dom Pedrito e o trevo de acesso à Santana do Livramento havia ganho nova pavimentação, o que propiciava uma viagem tranquila e confortável, fazendo com que se pudesse manter uma velocidade baixa, porém constante, dando a sensação de estar deslizando sobre a via. Viajar ouvindo um bom rock n'roll também estava ajudando a relaxar, graças à conexão de bluetooth estabelecida entre o som do carro e meu celular (ao menos isso funcionava bem naquele carro).

Apesar de toda essa tranquilidade, percebo que aos poucos começo a tremer feito uma gelatina sem saber se essa sensação surgira devido ao frio ou pelo puro nervosismo devido à solidão daquela viagem de volta. A ansiedade de chegar logo em casa era grande, afinal viajar sozinho naquela estrada deserta, onde um veículo passa lá de vez em quando, não é nada alentador. Por conta disso, nessas situações adquiri o hábito de escutar o som em volume alto, o que abafaria qualquer outro som menos ruidoso, evitando que me assustasse por qualquer coisa. A essas alturas, baixar o som não seria uma opção, muito menos desligá-lo, pois a sensação de desespero seria incontrolável devido ao silêncio e isolamento, mesmo que em pleno movimento. A medida em que o sol caía e a luz natural se ia, minha ansiedade só aumentava. Admito: já não era uma viagem confortável. E confesso: já estava começando a ficar com medo.

A viagem, no entanto, iria ficar melhor, a ponto de me dar reais bons motivos para começar a sentir de fato medo e pânico.

Em determinado momento, minha concentração na estrada e na música que tocava se quebra quando uma estranha sensação me toma conta. Por um momento, pensei ter ouvido um choro de criança, baixinho, porém perfeitamente identificável como de um bebê. Eu olho para o painel do carro e para o celular procurando identificar se aquele som viria daqueles dispositivos, se fossem parte de uma composição musical de tantas do estilo heavy metal que costumava escutar ou mesmo um ruído mecânico mal identificado, mas sem sucesso. Por alguns insistentes segundos continuei ouvindo aquele som cada vez mais fantasmagórico, ficando cada vez mais nítido o apelo choroso na medida em que estes passam.

De repente, o som choroso cessa abruptamente.

Um frio na espinha me tomou conta. A partir de então, e por puro instinto, comecei a conferir sem parar o retrovisor do carro, mesmo que não pudesse ver absolutamente nada devido a escuridão que envolvia todo aquele ambiente. Minhas mãos começaram a congelar devido ao frio e ao suor em decorrência do nervosismo que já havia me tomado conta. Na tentativa de relaxar, abaixei um pouco o vidro do carro na tentativa de fumar um cigarro. Embora não seja permitido fumar nos carros da empresa, resolvi "ligar o foda-se" para essa regra. Uma péssima ideia, pois a pequena fresta que deixei do vidro só gelou mais ainda o interior do carro me obrigando a jogar o cigarro fora e fechar novamente o vidro. 

O choro de bebê novamente volta a ser ouvido por mim. 

Incrédulo com o que estava ouvindo, decidi imediatamente suprimir por completo o som do carro para que finalmente pudesse identificar afinal que porra era aquela. Ao fazê-lo, baixando o volume do som carro, o choro do bebê ficara mais nítido. Meu coração quase sai pela boca fazendo com que eu freasse abruptamente o carro tendo como consequência uma derrapagem e um rodopio sobre a nova pavimentação, parando por sorte sobre o acostamento então em boas condições. Assustado com o ocorrido resolvi descer do carro, este já todo atravessado entre o acostamento e parte da pista, enfrentando o vento gelado daquela noite que chegara. Instintivamente me afastei do carro deixando a porta aberta e o carro ligado. Olhei ao redor sem enxergar absolutamente nada devido ao breu dominante. 

"O que tá acontecendo?"

Recuperei um pouco a clama após alguns minutos retornando vagarosamente ao carro. Já não ouvia mais o choro de criança. Não sei por que cargas d'água, mas alguma coisa naquele momento me trouxe à consciência a ideia de abrir o porta-malas e verificar a carga que estava transportando, o que fiz com a lanterna do celular ligada segurando com a mão totalmente trêmulas. Aquelas alturas, já estava sentindo uma sensação de grito presa no peito, como se um sufocamento em decorrência do pavor me tomou conta.

Sem saber o que deveria procurar, abri a tampa do porta-malas vasculhando toda a carga ali acomodada. Nenhum daqueles itens me chamara a atenção, pois estavam todos padronizados e devidamente lacrados, inclusive aqueles dois últimos entregues pelo estranho velho no início da noite em frente à loja de Dom Pedrito. Inspecionei aquelas embalagens analisando-as externamente. Uma era um pouco mais pesada que a outra. Ao tomar a mais leve nas mãos e chacoalhar, ouço um barulho como se várias peças estivessem soltas e não bem acomodadas no interior dela. Não ví nada de suspeito, me levando a recolocar tudo no porta-malas e embarcando novamente no carro, desta vez com o pé lá no fundo na expectativa de que pudesse acabar com aquela cena de terror o mais breve possível, mesmo que a realidade dissesse ainda haver quase duas horas de estrada naquela noite fria e tenebrosa.

Agora, durante o trajeto que falta, me vinha a sensação de que alguma coisa pudesse estar no banco de trás do carro, o que me deixava mais apavorado. Tudo por conta daqueles filmes de terror que costumava assistir onde o motorista está sempre no primeiro plano da câmera e do nada salta alguma coisa de trás ou simplesmente aparece no retrovisor. Essas lembranças desses filmes me deixavam em completo pânico. Para me acalmar, joguei meu celular com a lanterna ligada ao banco de trás para iluminar um pouco aquele interior. 

Dez minutos após retomar a estrada, os fachos de luz dos faróis do carro em luz alta iluminam a certa distância o que parecia ser um homem coberto por um poncho escuro e botas correndo ao longo do acostamento com o braço direito levantado e segurando o que identifico como sendo uma espécie de faca grande ou adaga. A cena é impressionante, completamente inusitada e absolutamente assustadora.  Na medida em que me aproximava com o carro daquele indivíduo, conseguia visualizar a frente dele outra pessoa em movimento, correndo, dessa vez com a silhueta de uma mulher de longos cabelos negros balançando ao vento e enrolada sobre o que parecia ser uma espécie de manta de cor clara e de pés descalços. Naquele momento, já estava a velocidade de 100km/h fazendo com que a passagem por aquelas pessoas viesse a ser bastante rápida, mas o suficiente para entender que a pessoa de trás, que já deduzira ser um homem, estava tentando alcançar daquela outra, onde deduzi ser uma mulher. O objeto que o homem segurara era de fato algo semelhante a uma faca, sendo o complemento para explodir meu desespero. Por conta disso comecei a murmurar sozinho dentro do carro:

- Meu Deus, o que tá acontecendo?... Meu Deus, me tira daqui... Socorro...

Meu pavor só aumentava, agora principalmente devido aquela cena. Sentimento este só aumentava quando me dava conta que estava aquilo ainda estaria longe de acabar. Não havia sinal de posto de gasolina, casa ou mesmo algum veículo que passasse por ali ao menos para dar a sensação de que não estava sozinho na estrada e que ela que teria um fim.

Eu não parava de olhar para o retrovisor quando de repente ouço um grande estouro e o carro começa a cambalear e a dançar sobre a pista. Me esforcei para manter o seu controle até conseguir pará-lo novamente no acostamento. Desci do carro para averiguar o que havia acontecido percebendo de imediato que o pneu traseiro direito havia estourado. Agora, já do lado de fora, fico constantemente olhando na direção que viera na expectativa pavorosa de ver aquelas duas pessoas correrem em minha direção, mas sem sucesso, pois está muito escuro. Por conta disso, entrei no carro novamente e o manobrei posicionando-o no outro lado da faixa de modo que os faróis iluminassem o sentido da pista em que estava vindo, tentando identificá-las quando se aproximassem. Sem perder tempo algum, descarreguei todo o porta-malas do carro em busca do estepe, o que felizmente estava em dia e calibrado. Apesar do estado de nervos sem igual me concentrei em trocar logo aquela porcaria de pneu. O frio já não me incomodava mais, apesar do suor do nervosismo potencializar a sensação de congelamento, como se atingisse os ossos. Enquanto macaqueava o carro, ficava de olho naquela estrada totalmente escura iluminada apenas alguns metros pelos fachos de luz dos faróis na expectativa daquele encontro sinistro. 

E nem sinal deles... 

Nunca troquei um pneu tão rápido na minha vida. Ao concluir, nem penso em recarregar o porta-malas com a carga que trouxera até então, muito menos com o pneu estourado. Está tudo espalhado pelo acostamento. Que se dane! Voltei ao carro e dei a partida. No entanto, antes de acelerar para retomar a estrada e fugir de toda aquela situação sinistra, algo mandava eu tentar entender o que estava ocorrendo. Parecia que alguma coisa fizera com que eu me acalmasse novamente e mandasse eu averiguar a carga que estava levando, desta vez, de forma mais incisiva. Assim, descido carro e catei as embalagens que ficaram no acostamento me detendo a atenção nas duas embalagens que o misterioso velho da caminhonete havia me entregue. Que entrega da fábrica nada! Alguma coisa fez com que eu começasse a pensar com um pouco mais de racionalidade sobre aquilo tudo. Valdir? Que Valdir? Nada se encaixava, mas eu já começava a maquinar que havia relação entre tudo aquilo. 

Tomei uma daquelas embalagens na mão, a mais pesada, arrancando seu lacre para averiguar afinal o que tinha nela. Então minha primeira surpresa, tanto estranha quanto frustrante: três rolamentos de trator velhos e desgastados embrulhados sobre velhas folhas de jornal para dar mais volume e acomodar as peças na embalagem. Não entendi absolutamente nada. Por que raios me fizeram esperar até tarde para uma carga como essa? O que alguém iria querer com aquele ferro-velho?

Deixei de lado aquela caixa largando-a ao chão com aqueles rolamentos, agora soltos em seu interior. Apanhei logo em seguida a segunda caixa, rasgando de modo violento o lacre que a envolvia. Me acomodei sentando-me ao chão para inspecionar aquele volume abrindo suas tampas e iluminando seu interior com a lanterna do meu celular e revelando algo que pareceria impossível me deixar mais apavorado ainda. O conteúdo parecia ser uma ossada de um bebê, identificando facilmente seu pequeno crânio. 

Eu queria, tinha vontade, mas não conseguia gritar. Minha única reação foi de paralisia diante do que tinha diante de mim. Fiquei parado atônito com os olhos vidrados naquela caixa quando de repente ouvi um latido e um rosnado. Buscando a origem daqueles sons caninos, virei-me para trás me deparando com um enorme cachorro preto a poucos metros de distância cujos olhos brilhavam e sua postura de ataque desnudava seus enormes caninos, iluminado precariamente pela difusão da luz dos faróis do carro. Ouvi outro rosnado, agora vindo da minha esquerda, sobre um pequeno morro formado ao lado da pista. Mesmo através daquele breu, consegui identificar outro cachorro de mesmo porte que olhava fixamente em minha direção. O pavor que me dominou impedia qualquer reação minha. Logo percebi, no entanto, que os cães não rosnavam para mim, mas para algo que estava mais adiante quando a alguns metros surge a figura daquele homem de poncho e botas. Naquele momento, diante dos faróis do carro, consegui ver nitidamente seu rosto enrugado, feio, de barba longa, grisalha e desgrenhada segurando uma enorme faca, longa e fina. Ele se afasta lateralmente dos fachos de luz do carro dirigindo-se mais para a penumbra, o que permitiu exibir seus apavorantes olhos vermelhos e brilhantes. Então ele se dirigiu a mim:

- Larga isso! Deixa isso! Vai embora! Não te mete nessa história!

Lateralmente a ele, porém a alguns metros de distância, surge um outro vulto que, ao se aproximar da luz dos faróis, percebo pelas suas vestes que se trata da mesma mulher que estava sendo perseguida por aquele homem. Vendo-a mais de perto, nota-se seus cabelos negros e feições bugras, quase indígenas. Está com o rosto, as mãos e parte e sua manta suja de sangue. Eu olho para aquele homem horroroso e também vejo sinais de sangue em suas mãos e no facão que segurava. A mulher se dirige a mim aos gritos:

- Vai moço, leva ela, por favor! Salva ela, não deixa ele pegar ela de novo! Por favor, vai!

O homem aponta a comprida faca para a mulher e esbraveja:

- Cala a boca desgraçada! tu nunca vai ter ela contigo!

Vi a mulher pondo-se a chorar desesperadamente. Ela continua a me olhar com seu rosto totalmente molhado de lágrimas de desespero, dirigindo-me a palavra implorando para que eu "vá e a leve". O homem, nitidamente emanando rancor e maldade, começa a dar passos em minha direção quando os dois cachorros latem para ele e começam a rosnar sinalizando um estarem prestes a atacá-lo. O homem baixa a longa faca e, mudando sua expressão facial demonstrando um medo aterrorizante daqueles animais, se põe a correr para fora da estrada campo a fora sob a densa escuridão. Os cães então se lançaram em perseguição aquele homem numa ferocidade demoníaca fazendo-as também sumir através da escuridão da noite campo afora.  Instantes após passei a ouvir gritos do homem em conjunto com rosnados daqueles enormes cachorros dando a entender que eles acabaram por alcançá-lo concluindo sua caçada.  Nesse instante, a mulher voltou a dirigir-se a mim:

- Vai agora! Vai! Leva ela! Não deixa nada para trás senão ele vai atrás de ti. Vai! Carrega tudo e vai. Anda logo, por favor...

Eu estava completamente travado sentado no chão, assistindo incrédulo aquela cena de terror sem conseguir me mover. 

Não sei por qual motivo, mas num sobressalto simplesmente me levanto e resolvo seguir o que aquela mulher me dizia. Recarreguei o carro do modo mais rápido possível colocando tudo o que tinha espalhado pelo chão de qualquer forma no porta-malas do carro, sem deixar de dar a devida atenção àquela sinistra caixa. Quanto a esta, foi perceptível a sensação de alívio daquela mulher ao vê-la ser acomodada no carro, desta vez no banco de trás. Após fechar o porta-malas e a porta traseira direita do carro me voltei para a mulher com o objetivo de fazer perguntas e entender o que estava acontecendo.

Ela havia desaparecido, assim como o homem e seus gritos, os cães e seus rosnados. Não havia mais ninguém ali.

Buscando não perder tempo com meus pensamentos entrei no carro, dei a partida fazendo meia volta retomando o caminho da viagem. Por todo o restante do caminho até a cidade de São Sepé, eu vi por mais três vezes a imagem daquela mulher em diferentes pontos da estrada na medida em que os faróis iluminavam brevemente a via, acenando para mim como se estivesse acompanhando minha viagem de volta com aquela macabra carga. E assim foi, por todo o restante daquela pavorosa viagem, fui assombrado por aquela mulher.

Por fim, havia saído de Dom Pedrito pelas dezenove horas chegando à loja matriz em Santa Maria pelas vinte e duas horas e trinta minutos. Tempo que parecia uma eternidade. Não é preciso descrever muito como foi meu sentimento de alívio ao adentrar no pátio da empresa, sentindo estar rodeado de luzes num ambiente urbano novamente. A sensação de segurança tinha começado a tomar conta de mim, mesmo que o sentimento de incredulidade em tudo o que havia se passado nessa viagem viesse a perdurar ainda pro um bom tempo.

"Será mesmo que tudo aquilo aconteceu".

Por incrível que pareça, creio que sim. A caixa no banco de trás do carro confirmava isso. Sabia, no entanto, que relatar tudo aquilo a alguém não seria algo fácil. Na verdade, quase impossível, pois iriam rir de mim, me chamar de louco, cascateiro ou até mesmo sugerir que viajei chapadão. Provavelmente irão me sugerir a escrever uma história a respeito (ops!). E aquela carga? Meu Deus, o que vou fazer com aquele troço? Como é que vou mostrar isso para alguém? 

Ao estacionar o carro no estacionamento da matriz, não conseguia sair de dentro dele pensando nessas coisas. Porém, decidi que deveria elucidar o máximo possível, a começar por procurar o tal Valdir e questionar ele: "que porra de peças são essas"? Meus olhos ardiam de cansaço, eu estava extenuado com tudo aquilo. Por alguns minutos me debruço no volante do carro procurando relaxar e respirar um pouco. Foi nesse momento que voltei a ouvir aquele já familiar choro de criança, dessa vez acompanhado de um outro som agora conhecido vindo do lado de fora do carro. Ao levantar a cabeça vi aquela mulher morena, parada bem à frente do carro, dirigindo-se a mim gritando o que pude entender:

- Cuidado, cuidado, cuidado!

Pelo retrovisor vi o horrendo rosto daquele homem, dessa vez com o rosto completamente sujo de sangue, postado no banco de trás do carro pronto a me atacar apunhando aquela longa faca.

Batidas no vidro lateral do motorista são dadas pelo vigilante em serviço.

 - Vamos Augusto! Já são seis horas da manhã!

Sentia o calor de raios de sol sobre o meu rosto. Fui acordado. Olhei ao redor percebendo ter chegado são e salvo daquela viagem, devidamente estacionado no pátio da matriz da empresa. E ali caí no sono ficando inerte até o amanhecer. Um sentimento enorme de alívio toma conta do meu ser ao concluir que tudo não passou de um baita pesadelo. 

Eu precisava ir embora, tomar um banho, me recompor e voltar a trabalhar. Mas antes, precisava desocupar aquele carro, o que implicava em descarregá-lo. Ao sair do carro, Rogerio, o vigilante, me pergunta:

- Augusto, tu viu que a porta traseira direita do carro está aberta?

- Como assim Rogerio?

- Olha aqui, ó!

Rogerio então me aponta a porta direita traseira apenas encostada, como que aberta recentemente. Imediatamente passei a inspecionar o interior do carro a procura de algo inusitado, pois o tal sonho ainda estava bem vívido em minha memória. Queria ter certeza se tudo foi realmente um sonho ou se aqueles ossos de fato existiam e foram transportados por mim naquele carro. Flashes de memória me vinham à tona, como o inusitado pedido do tal Sr. Valdir e o frete que chegou tarde. Não encontrei sinal algum daquela caixa aquela caixa, o que de imediato me trouxe alívio, senão quando me deparei no porta-malas do carro com a estranha caixa de rolamentos velhos.

- Pra que isso? - Pergunta Rogerio, segurando um dos rolamentos velhos.

- Não faço ideia. Isso é coisa do Valdir. Aliás, Rogerio, quem é esse tal Valdir das peças? Ele é novo aqui na loja?

- Valdir? Não tem nenhum Valdir não!

- Como é que é?

- Não tem nenhum Valdir, Augusto. Conheço todo o time de peças daqui. Não tem não!

Fiquei mudo e perdido em pensamentos, só interrompido quando o Rogerio me chama novamente:

- Augusto, o que tu fez com esse estepe? Olha o talho nesse pneu tchê! Parece que tu enfiou uma adaga nele!

Continuei mudo, agora mais incrédulo com o que estava vendo. Imediatamente minha cabeça se inunda de perguntas que fazia a mim mesmo: Era ou não um sonho? E esses rolamentos velhos? E esse pneu? E essa tampa do porta-malas aberta? Será que alguém a abriu e tirou alguma coisa daqui? Seria aquela caixa?

De repente, ao passar os olhos em direção à rodovia que passa bem à frente da matriz da empresa, vejo um homem de meia idade, aparentando uns sessenta anos, grisalho, alto, com tez serena e um suave sorriso no rosto conduzindo dois cães grande e pretos, um em cada um de seus flancos, sem coleiras. Os cães imediatamente são reconhecidos por mim, assim como aquele homem: Valdir. Ele parou diante do portão da empresa como se me chamasse para conversar. Me desloquei ao seu encontro sendo recebido por ele com a mão estendida. Eu o cumprimentei sem trocar uma palavra sequer.

Então ele diz, ainda com um sorriso afável no rosto.

- Olá Augusto. já deve saber quem sou. Te peço desculpas por mentir pra ti, mas foi necessário. Meu nome não é Valdir e não faço parte dessa empresa. E Sim, recolhi a caixa que tu trouxeste e tu sabes por quê. Ela precisava voltar para junto de sua mãe. Estava na hora. Obrigado.

O homem se despede com um sorriso dando meia volta e desaparecendo bem diante do meu nariz. 

- Tu viu isso Rogério?

- Isso o que?

- Nada, esquece - percebi que Rogério não havia testemunhado aquela conversa.

Algumas semanas se passaram com minha rotina restabelecida. certo dia, num dos intervalos de expediente, Eliézer se depara diante e mim e diz:

- Augusto, tu viu o que aconteceu em Dom Pedrito, bem quando tu foi pra lá?

- Não!

- Andaram roubando uma ossada de criança do cemitério municipal de lá. Cara, te lembra da história pirada que tu me contou? 

Eliézer me chama diante do seu notebook me mostrando um artigo de blog de curiosidades e acontecimentos curiosos da fronteira do estado, uma espécie de tabloide daquela região, que relatava um roubo de ossada de uma criança. O artigo, além de descrever a notícia daquele furto, destacava que sobre essa ossada pairava uma história bastante triste e sombria que acabou tornando-se uma lenda de assombração local. Tratava-se de uma criança que foi tomada de sua mãe pelo seu avô por ela tê-la concebida solteira e por consequência "desonrada diante de todos". Conta o relato que o pai da moça, um rude e temido capataz de instância devido a sua fama homem mau, sem limites e despido de sensibilidade, fora acometido por um estado de fúria por não aceitar a gravidez de sua filha bem como a concepção de sua filha. Ele então, não mais tolerando a situação, havia teria sequestrado a criança e a matado, não permitindo ainda que a mãe sequer pudesse velar a criança nem mesmo aproximar-se de seu corpo após a morte. O texto ainda relata que o desnaturado homem fez sua filha deixar a cidade após o horrendo assassinato, tendo esta encontrado socorro e abrigo junto a uma família de grandes proprietários de terras que mudara seu domicílio para Santa Maria. O homem acabou sendo condenado e preso, morrendo na cadeia. Tudo isso ocorreu no ano de 1935. O artigo sensacionalista então vincula o desaparecimento da ossada à lenda da mãe da criança, cujo espírito era frequentemente visto pelo cemitério de Dom Pedrito rondando o tumulo de seu famigerado pai e de sua filha, pois o já velho condenado havia sido sepultado junto ao tumulo da criança, um assombroso descuidado por parte das autoridades e, provavelmente o desejo macabro daquela alma desgraçada. Diz a lenda que o espírito da mãe sempre reivindicara sua filha, mas que o espírito de seu pai a impedia de tê-la de volta, mesmo em morte.

Dois anos se passaram após aquela mórbida viagem. Estava eu visitando uma loja de brinquedos a procura de um presente de aniversário para minha afilhada, quando ouço um choro de bebê que há algum tempo atrás já tivera ouvido. Mais uma vez, um arrepio toma conta da minha espinha. Logo após o choro, no entanto, uma gostosa risada toma seu lugar após doces e acolhedoras palavras da mamãe que carregara. Eu me lembrei daquela voz também. Então, diante de mim estava aquela mulher de longos cabelos negros, cuja pela bugra e feições delicadas indicavam uma beleza singular da mistura mestiça entre o índio e europeu, tendo em seu colo um bebê tão lindo quanto, sorrindo cintilantemente para mim.

- Dá "oi" para o tio Verônica!

Sim, eu reconheci aquela mulher. Ela sorri para mim emanando um brilho sem igual. Dá as costas para mim e segue em direção à porta da loja. Vira-se brevemente e por último diz:

- Obrigada!

Quanto ao velho, o Valdir que não é Valdir, até hoje não faço a mínima ideia de quem seja. O fato é que, nunca mais eu o vi.

Mas tudo bem. Se eu contar essa história, ninguém vai creditar. Nem mesmo o Eliézer, que até hoje zomba de mim.