domingo, 29 de dezembro de 2019

Quando o destino nos trai





Todos nós pensamos que, em um determinado momento da vida, já poderíamos ter vivido o suficiente e passado por coisas que nos deixariam espertos, fortes e conscientes de muitas arapucas que o destino pudesse vir a nos aprontar. Que num determinado momento de nossas vidas nada mais poderia nos abalar ou nos tirar o eixo de gravidade.

Mas não!

Então, em determinado momento da vida, já com uma suposta maturidade mental, um turbilhão de confusão na vida do cara surge do nada, de paraquedas.

Quer dizer, ... não é bem do nada.

Não é de hoje que meu casamento não ia muito bem. Finalmente, anos se passaram e as incompatibilidades começaram a se acentuar. A convivência foi se esfriando assim como a tolerância entre ambos. Até que num determinado momento tudo estoura e a mais triste e dura das decisões é tomada. E aí que o destino parece querer brincar com a nossa cara. Terminar um casamento nunca seria algo fácil. E não foi. Mas tive que fazer, mesmo que uma carga de incertezas viesse a cair sobre meus pensamentos.

Eu precisava fazer. Eu precisava saber o que queria, o que deveria fazer.

E assim eu fiz.

E no momento de maior fraqueza e vulnerabilidade que um homem poderia estar ela surgiu. Altiva, voz firme, atos e palavras fortes com uma determinação que me assustava. Por onde passava, não havia como não notar. Lá estava ela, equilibrando-se em seus saltões. Sempre eles, uma de suas várias marcas da sua imponente personalidade.

Era para ser apenas um beijo, uma cerveja, um carinho. Mas não! Foi pior. Muito pior. Desde suas mãos acariciando meu corpo, procurando por espinhas em minhas costas, até ávidos beijos que deixavam minha língua dolorida e meus lábios ardendo de prazer e tesão. Ou quando elas entravam por entre minhas calças procurando apertar maliciosamente minha bunda. Mesmo as patadas que me dava com sua língua afiada não me abalavam, ao contrário. Ela me xingava, dizia coisas que para outro homem o poria a correr ou a se enfurecer retrucando talvez com um tapa bem dado em sua cara. Lógico que isso estava fora de cogitação. Mas, para mim, o efeito foi contrário. A admiração e o desejo por aquela mulher só me fizeram aumentar. E, assim, a paixão foi tomando conta de mim. Era o destino mais uma vez agindo na minha vida colocando aquela mulher em meu caminho. Só não sabia se a favor ou contra mim. Algo que hoje iria descobrir.

Minha decisão, na verdade, não foi definitiva. Um casamento de anos não se acaba de uma hora para outra. Achei que mereceríamos mais uma chance, dentre muitas que já tínhamos nos dado. E assim decidi e para aquela mulher reportei minha decisão. No momento que assim o fiz, um sentimento enorme de perda me tomou, ainda titubeando se estava ou não realmente fazendo a coisa certa. Sim, estava confuso, estremecido, sem saber o que esperar do futuro. Na verdade, vi naquela mulher tudo o que desejava. Sonhei acordado por semanas imaginando como seria minha vida ao seu lado. Seus relatos, suas histórias, seus gostos, desejos e sonhos que me contara assim faziam eu pensar e imaginar. Eu estava embriagado por aquela mulher. Era tudo: seu corpo, sua voz, sua presença, suas palavras, seu cheiro, seu gosto, suas atitudes. Mesmo assim, decidi pela razão, pelo que julguei correto e devido, num esforço tremendo de tomar aquilo como o mais sensato a se fazer. Havia ainda amor por minha esposa, mas ainda nossas famílias, nossos projetos de vida e tudo aquilo que construímos ao nosso redor pesaram na minha decisão. Eu tinha que fazer uma escolha e aquele deveria ser o momento. E assim o fiz, mas confesso: não estava certo do que queria. Certo mesmo era que, naquelas altura do campeonato, já estava fazendo um baita estrago no coração de alguém, mesmo que apenas no momento de nossa despedida pudera perceber e sentir o gosto de suas abundantes lágrimas, assim como o forte som das batidas de seu coração colado em meu peito, atestando aquilo que eu mais temia: o de estar machucando alguém, de fazer doer. E isso me consumiu.

No dia em que decidi assumir minha decisão, amparado num enorme sentimento de pureza que a tempos havia caído no meu esquecimento, fui ao seu encontro. Tremendo e com o peito apertado tomei sua mão e nela depositei meu presente. Uma correntinha com um pequeno e delicado crucifixo, dizendo a ela para que toda vez que o usasse pudesse lembrar de mim, não como um sem-vergonha como me chamava e assim me tratava em certas ocasiões, mas como alguém especial que fez parte de sua vida. Mas disso ela declinou. Demonstrando mais uma vez sua forte personalidade, cerrou seus olhos já cheios d’água procurando os meus e assim me disse, com as duas mãos em meu rosto, que o iria guarda-lo com muito carinho mas não usá-lo como eu desejaria, pois a partir daquele dia eu seria parte de seu passado, sendo dessa forma que ela gostaria que eu passasse a ser e usar aquele presente faria ela lembrar de mim, coisa que ela não desejaria. Senti uma pontada em meu peito ao ouvir aquilo, mas eu bem entendi e nada mais me restou senão assentir. Percebi também o desdém pelo presente ao deixá-lo de lado na bancada da sala de sua casa onde nos encontrávamos. Naquele dia, nos abraçamos, nos beijamos, choramos por longos minutos. Então da porta de sua casa nos despedimos e assim nossa história acabou.

Página virada!

Hoje preciso espairecer.

Nada deu certo.

Tentamos. Tanto eu quanto ela, mas meu casamento fracassou de vez. Foi duro, difícil a separação. Pensei até que seria mais fácil vide ao que ocorreu meses atrás. Mas não foi. Foi decisão minha dessa vez e sem volta. Chega de me enganar e enganá-la. Agora cada um para o seu lado. Não houve uma troca, como em algum momento havia imaginado com aquela mulher. Dessa vez estou só. Logo que nos separamos imaginei que meus pensamentos iriam se voltar para aquela mulher, sabe, no intuito de procurá-la, de quem sabe, dizer a ela “eu tô aqui”. Mas não tinha como, ela já estava com alguém, além do fato de saber o quanto doeu tudo aquilo para ela e de suas firmes decisões. “Tu é um cara muito complicado”, ela me disse várias vezes. Tava na cara que ela não iria querer mais nada comigo. Como ela disse, agora eu fazia parte do seu passado. Além disso, já sabia que estava com outro, num namoro sério com um cara que tinha uma moto. Só podia ser, viajar de moto é o que ela gostava e sempre imaginou nos dois fazendo esse tipo de coisa.

Agora é hora de espairecer.

Preciso de uma cerveja.

Preciso conversar com pessoas, resgatar amizades, conhecer e fazer outras mais. A ideia de ser solteiro não me agrada muito, nunca quis. Não tenho mais saco para a futilidade da vida de solteiro e da noite. Não preciso e nunca precisei sair para caçar. Falta de mulher nunca foi um problema para mim. Só quero beber, rir, conversar. Então, um casal de amigos meus me convida para tomar uma cervejinha, me convidando para conhecer uma cervejaria legal que recém inaugurou e vou lá com eles. Um convite inesperado, um tanto malicioso e intrigante. Mas tá valendo. Recebo uma mensagem no celular dizendo que já estão indo para lá e que eu devia chegar antes para pegar uma mesa. “Tô indo”, escrevi...

Mais uma vez o tal destino brincando com a gente. Logo que entro no estacionamento da cervejaria, identifico a placa daquele hatch preto de placas ICX3509. Ah, como não reconhecer. E ainda a vaga livre bem no lado dele. Meu coração começa a bater ameaçando sair pela boca, minhas pernas começam a tremer e minha visão fica turva. “Devo entrar?” Como vou me portar ao ver ela? Não sei como vou agir lá dentro”. Na portaria peguei a comanda sem perceber de dar meu nome e tomá-la com a mão. Parecia que pisava em ovos. Entrei no bar e a sensação que tinha era de que todos me olhavam. Estava me sentindo mal, ofegante e com ansiedade. Já dentro do local não foi difícil de localizá-la. Lá estava aquela caipirinha. Era assim que a chamava pelo seu forte sotaque do interior e pelo péssimo gosto por música sertaneja. Eu tirava sarro dela, assim como ela comigo, pois sou roqueiro e a “bateção” das minhas músicas era insuportável para ela. Estava sentada num dos compridos bancos que guarneciam as mesas. Ela estava de frente para a entrada então não foi nada difícil identificá-la. Na verdade, entrei já instintivamente procurando ela com os olhos, sem pensar em mais nada, pois somente depois disso tentaria pensar em algo de como me portar. Pois ela estava ali, com as pernas entreabertas, montada sobre um dos compridos bancos e conversando com amigos do outro lado da mesa. Ela parecia estar sozinha, embora não pudesse reparar muito suas companhias pois tinha a missão de encontrar uma mesa.

Achei uma mesa a alguns bons metros de distância, o que ajudava na discrição para muitas coisas, seja para buscar algo na copa, ir ao banheiro ou mesmo observá-la de canto de olho, pois não queria bancar o imbecil e dar bandeira fazendo-a pensar que estaria tentando chamar sua atenção ou coisa do tipo. Sabe-se lá o que ela iria pensar e comentar com seus amigos. Percebi de imediato que ela não havia reparado minha entrada, o que de certa forma me agradou, ao mesmo tempo em que fiquei um poco frustrado, pois na verdade não gostaria de passar despercebido. No fundo eu queria chamar sua atenção: “Eu tô aqui”. Calmamente me sentei, larguei minhas coisas na mesa e passei a observá-la discretamente. Uma vontade enorme começou a me subir à cabeça em abordá-la, meu coração e respiração se aceleraram. Talvez se eu fosse buscar uma ceva, ao me levantar e caminhar, poderia fazer com que ela me visse e ao menos pudéssemos trocar um breve “oi”.

Mas aí, eis o belo banho de água fria.

E quando estava fazendo menção a me levantar para me dirigir ao balcão, um homem se aproxima de sua mesa. Era alto, forte, bem-apanhado, com uma jaqueta de um grupo de motociclistas e com dois copos de cerveja. Ele a beija ainda carregando os copos enquanto ela carinhosamente apanha seu rosto com suas mãos, para logo após sentar-se atrás dela montando no banco de forma que pudesse abraçá-la fazendo-a se escorar em seu peito. Era ele, seu namorado. Sabia já que ela tinha arranjado alguém, mas ninguém nunca a tinha visto acompanhada. Agora ela estava ali, com ele. Uma mistura de sentimentos e pensamentos tomou conta da minha cabeça de modo instantâneo. “Eu perdi”. O destino me traindo mais uma vez. Ela, que dentre as lágrimas lamentava a solidão e a má sorte no amor, finalmente estava com alguém que a confortasse, a desse carinho e atenção. Sim, mesmo os mais sutis e simples gestos de atenção e carinho para com uma mulher ela sempre valorizou. E lá estava ela com um homem, seu companheiro. A caipirinha linda, de atitudes fortes e com uma impetuosidade enorme finalmente estando deixar ver seu lado mais delicado, mais angelical, mais feminino. Era o que ela queria e sonhou um dia de mim. Sorri ao notar que seu namorado tinha se ausentado da mesa para ir até o balcão e trazer duas cervejas para eles, coisa que ela sempre valorizou: a gentileza, o cavalheirismo, a cortesia masculina. Algo que, para mim, era normal, mas que para ela não era tão fácil de encontrar, assim julgava. Eles se beijam, ela está bem. E eu estou aqui, sozinho numa mesa, com vontade de sumir.

“Que bom. Agora ela está bem!”, assim pensei de imediato.

Bom um cacete! Puta que pariu, que raiva! Vai se ferrar mulher cretina! Era comigo que ela deveria estar, não com aquele troglodita. Motoqueiro. Só podia! Claro, sempre vinha com a história de comprarmos uma moto para viajarmos, ideia, que até eu, tinha simpatia, mas não tanto quanto ela, era apaixonada por isso. E a barba! Porra, o cara é barbudo. Não, não.... tinha que ser um barbudo! Mas é óbvio, ela sempre deixou claro o tesão por homem barbudo. Que merda! Não posso mais olhar para esse cara, muito menos para eles juntos. Não sei o que faço. Mas tenho certeza de que se tivesse uma granada na mão já saberia para que direção jogar, embora, com a minha sorte, seria capaz de jogar o pino e ficar segurando a granada.

Tudo aquilo me entristecia, me deixava para baixo. Os pensamentos não paravam de vir na minha cabeça. Pensar que ela poderia estar comigo e que tudo poderia ser diferente na minha vida. O destino me traindo ou minhas decisões que são mal tomadas? Estava inquieto na mesa, não parava de olhar para o relógio ou para o celular. Essa gente que não vem, preciso quebrar o gelo. Agora sim, não quero que ela me veja desse jeito, como um cachorro perdido numa mesa de bar. Para me acalmar eu precisava ao menos estar bebendo alguma coisa, precisava ir até o balcão, mesmo que ao me levantar pudesse chamar sua atenção e nesse momento era isso que eu não queria. Mas fui, passei por sua mesa e ela de frente a mim, encostada no peito de seu namorado e conversando com amigos da mesa. Não me viu nem me olhou. Passei despercebido e rápido por sua mesa, mas com tempo o suficiente para notar sua blusa e seu decote nu. Ela não usava nada de adereço, muito menos meu presente. Algo esperado, mesmo que eu tivesse uma pontinha de esperança em vê-la usando, vai saber né? Apanho uma cerveja e volto para minha mesa, mas dessa vez não tive como ver se ela notou minha presença ou não.

Ah, que sensação horrível!

Foi sentar-se na mesa que meus amigos chegaram trazendo companhia.

Nossa, que alívio!

Além do casal, uma irmã e sobrinha, mãe e filha respectivamente, da mulher do meu amigo. A menina aparentava uns 20 anos e a mãe, uma mulher muito bonita, linda para falar a verdade, morena de olhos e cabelos negros lisos e escorridos, porém presos, ela aparentava ter em torno de 40 anos. Não consegui notá-la muito, pois procurei discrição ao guardá-la com os olhos, embora percebesse sua estatura média para uma mulher e seu corpo delineado entre seu jeans e blusa justa escura, bastante desejável, demonstrando curvas deliciosas, cintura não muito fina porém de generosas ancas e grossas pernas, deixando mostrar o que uma mulher madura tem de melhor. Nossa, que mulherão! Fomos apresentados devidamente pelo casal amigo e nos acomodamos na mesa, eu na ponta direita da mesa e ela ao meu lado, ambos à frente o casal amigo e na cabeceira da mesa sua filha (ou sobrinha de minha amiga, como queira). Esse arranjo fez com que, imediatamente um desconforto fizesse com que minha espinha se arrepiasse.

Por que isso?

Não estava fazendo nada de errado! Estava desimpedido e livre e mesmo assim um sentimento estranho me fazia não gostar em nada daquela situação. A presença daquelas duas mulheres na mesa foi uma surpresa enorme para mim. Não demorou para ver os sorrisos maliciosos do casal de amigos, assim como da menina, pois parecia algo que premeditado, uma agradável “emboscada’ para desencalhar um casal de solteiros. Procurei agir normalmente naquele grupo, demonstrando-me simpático e educado, algo relativamente natural e fácil para mim, ao mesmo tempo em que tentava novamente encontrá-la com os olhos, mas sem muito êxito, pois agora minha visão estava bloqueada por muitos que em pé ficavam no bar sem mesa.

Naquelas circunstâncias, procurei relaxar. Assim, procuro tornar o clima mais agradável me enturmando com aquelas pessoas até o momento em que me dou por conta que a conversa se tornou setorizada, a sobrinha conversando com o casal de amigos e eu com sua mãe. Ela, por sinal, demonstrando-se bastante à vontade comigo. Eu, nem tanto. Mas o papo fluiu, falamos sobre nossos trabalhos e vida profissional, filmes, cerveja, lugares para viajar, Grêmio (ela adorava futebol) e tatuagens.

Em determinado momento, minha companhia começou a fazer perguntas mais incisivas, coisa que não esperava. Aí fiquei mais inquieto, numa sinuca de bico. Eu não queria nada, não estava a fim de ficar com ninguém e para isso iria procurar não deixar brechas que dessem a entender algum interesse meu em algo mais com ela. Mesmo que, houvesse o outro lado da moeda: para um homem, ia ficar feio se quisesse pular fora, né?

- Então, tu és casado?

Ela sabia que eu já não era.

- Não, não. Me separei a pouco. E tu?

- Sou separada, faz um ano já. Fui casada por 21 anos.

Aí, tento quebrar o clima:

- Como é a vida de uma pessoa separada? Digo, ficar solteira depois de tanto tempo?

- Ah, a gente fica perdida. Eu tô perdida até hoje, mas aos poucos a gente percebe que não é o fim do mundo... minha filha é minha amiga também, saímos sempre juntas e conversamos muito. Isso amenizou muita coisa para mim.

À medida em que o tempo passava, íamos conversando mais e de modo bem natural, leve e descontraído, nos conhecendo cada vez mais. Começo então a perceber seu sorriso com mais frequência e suas risadas com mais intensidade, um típico sinal de interesse por mim, situação cada vez mais nítida quando solta o cabelo deixando cair longas mexas negras para o lado mexendo-as com a mão quase que involuntariamente. Seu sorriso é muito bonito, sua beleza é única e seu corpo dá vontade de apertá-lo pelas suas fartas ancas. Mas, mesmo com aquele mulherão na minha frente, não conseguia parar de pensar nela. Essa situação de estar na companhia de outras mulheres e com ela próximo trazia em minha memória situações inusitadas e até divertidas que passei em circunstâncias semelhantes. Certa vez, ela me viu na rua de longe conversando com duas amigas do tempo da faculdade que casualmente tinha encontrado, seu cenho mudou e seu rosto enrubesceu, afastando-se de mim sumindo de meus olhos. Em seguida, quase que imediatamente, recebo uma mensagem sua no celular: “não abusa da minha paciência”, numa demonstração de ciúmes que sempre negou, mesmo sabendo da minha condição de então um homem comprometido. Em outra oportunidade, eu disse a ela, brincando, que estava tão estressado que iria relaxar na zona. Minutos depois, a caminho de minha casa recebo outra mensagem sua: “não abusa de minha paciência e me manda a tua localização já!”. Eu não parava de rir, ao mesmo tempo que, mais uma vez me assustava com a possessividade que ela demonstrara, mesmo que negasse (sempre negava). Não tinha como não associar a cena de nossa mesa, caso ela me visse assim, com uma reação semelhante. Só que não. Meu celular não iria mais receber notificações de mensagens dela, eu não estaria mais abusando da paciência dela e ela, em suas palavras, já estaria cagando para mim.

Num determinado momento minha companhia toca meu braço fazendo menção às tatuagens que fiz, inicialmente elogiando-as e perguntando se elas tinham algum significado especial. Eu disse que sim e expliquei significado de cada uma daquelas que estavam a vista. Ela demonstrava não apenas interesse pelo que falava como não se satisfazia em ouvir, mas em tocá-las. Ela acariciava cada uma das tatuagens. Era nítido o clima entre nós, a ponto de esquecer brevemente que ela estava ali, a alguns metros de mim, embora muito bem acompanhada e bem resolvida. Meu rosto já estava muito próximo daquela mulher morena a medida em que falávamos sobre minhas tatuagens. O clima ficou estranho, eu já não sabia como agir. Talvez numa outra situação, sem ela por perto ou mesmo sem as demais companhias a paquera se consolidaria. Mas aquele não era o clima que eu desejava. Não sabia nem se poderia beijá-la, pois além de todo o turbilhão de coisas na minha cabeça em nossa frente estava sua filha, sua irmã e cunhado. O ideal seria deixar passar por hoje, mas o que ela iria pensar de mim? Meu Deus, que situação.

De repente ouço aquela voz, sempre alta e retumbante, dirigindo-se aos amigos em sua mesa já em movimento em direção a porta e consequentemente a nossa mesa: “Vou ali no carro e já volto”. Era a voz dela, não tinha como não reconhecer. Viro minha cabeça e vejo ela com o rosto baixo, cabelo para o lado, o molho de chaves numa mão e um guardanapo de papel noutra. Mais uma vez pude admirar suas pernas torneadas e valorizadas pelos saltões que nunca dispensava. Meu coração dispara, parecia que estava sendo pego em flagrante ou coisa parecida. Eu não estava com ninguém, eu não estava querendo ficar com ninguém, mas se ela me visse, com a proximidade que estava com aquela outra mulher, seria obvia a dedução. Porém, ao passar ela sequer levantou seus olhos, muito menos a cabeça. Ela não me olhou, embora aquela atitude pudesse demonstrar que em algum momento havia me visto e me reconhecido, talvez não desejasse um contato direto, nem mesmo um “oi”. Fiquei muito mal pensando nisso. Será que nem mesmo me cumprimentar ela vai querer?

Não me restou muita coisa a fazer senão continuar o papo e agir naturalmente, ao menos tentar fazer isso. Quando então percebo que minha companhia percebeu minha perturbação ao vê-la passar. “Tá tudo bem?”, ela me pergunta. Eu digo que sim com um sorriso um pouco forçado.

- Foi sua ex-mulher que passou?

- Não. Quer dizer... Ela não é a minha ex-mulher.

- Ah sim, entendi. Desculpa pela pergunta.

- Não, não. Está tudo bem. É só um caso mal resolvido. Da minha parte, claro. Mas não importa.

Quando acabo de respondê-la quando sinto um toque em meu ombro: “Oi!”. Era ela. Ao seguir o caminho de volta a sua mesa. Ela não parou, apenas me cumprimentou e seguiu caminhando, dando uma breve olhada para trás com um sorriso, assumindo uma postura do tipo “não quero importunar, só queria cumprimentá-lo”. Foi uma surpresa e um alívio de certa forma. Ela não seria mal-educada e não deixaria de me cumprimentar naquela noite, a não ser que não me visse realmente, mesmo que seja muito difícil disso acontecer dentro de um bar. Ao passar não pude deixar de reparar novamente em seus lindos e brilhantes cabelos, suas pernas e o lindo bumbum, tudo potencializado pelo jeans pelos saltões. E assim ela retorna para os braços do seu homem na mesa. Mas agora sentando-se de frente para mesa, ao invés de montada no longo banco junto com seu namorado. Agora estavam os dois, lado a lado de braços entrelaçados.


Agora, eu estando na ponta da mesa podia vê-la, de longe mais nitidamente. Ela, mesmo assim, não olhava para mim. A partir daquele momento ficaria difícil disfarçar meu inconsciente interesse visual nela, mesmo sabendo do necessário cuidado, pois ambos estávamos acompanhados e de forma alguma queria causar desconforto a quem quer que fosse. Mesmo assim, um detalhe me chamou muito a atenção. Mesmo com relativa distância, não consegui passar desapercebido o pequeno brilho em seu peito. Ela agora estava usando algo entorno de seu pescoço. Era uma correntinha com um crucifixo. Sim, o meu presente! Aquele que, ao presenteá-la me anunciou que nunca iria usá-lo. Juntei os pontos rapidamente: ela havia ido até seu carro e lá o vestiu. Meu Deus, o que aquele gesto significaria? Depois de ter compreendido o ocorrido, não escondi minha excitação, mesmo que aquilo tudo pouco poderia significar. Mesmo assim, era um fato, ela agiu daquela forma por minha causa de maneira discreta e singela de modo que os demais em sua mesa, inclusive seu namorado, nada percebessem, a não ser por alguém mais observador e cuidadoso, algo que sempre fui e ela sabia disso. Alguns minutos se passaram e por duas ou três vezes notei sua mão acariciando aquele pequeno objeto, mesmo que de modo algum notasse algum tipo de olhar seu para mim. Eu sabia que as mulheres são discretas para essas coisas, e, quem sabe, nesse caso ela usasse essa habilidade com bastante exímio.

Fiquei mais desconfortável do que já estava. Era nítido, a ponto de o casal de amigos anunciar que talvez fosse a hora de ir embora. Antes disso, porém, eu e aquela linda morena trocamos contatos de celular de forma nada discreta fazendo com que todos rissem na mesa. “Dane-se”, pensei. Agora teria um outro abacaxi para descascar: será que minha companhia iria querer algo mais para aquela noite? O que, e como, eu deveria fazer? Como iria convidar para darmos uma esticadinha estando sua filha, irmã e cunhado juntos? Sem falar que não estava com nem um pouco de cabeça para algo mais aquela noite. Dessa vez não tinha como rolar nada, minha cabeça girando, meus pensamentos ainda lá naquela mesa distante, além de correr o risco de decepcionar aquela linda mulher e ainda passar fiasco como homem. Nos dirigimos ao caixa para o acerto das contas e logo após ao estacionamento do bar. Ao chegarmos próximo dos carros minha bela companhia da noite se volta para mim e assim trocamos as últimas palavras. Ela então disse:

- Gostei muito da tua companhia.

- Eu também. Me desculpa se minha cabeça não estava muito legal hoje. Sabe, não consigo disfarçar muito.

- Eu percebi.

- É, eu percebi que tu percebeu.

- Rssssss.

- Mas gostaria muito de voltar a conversar contigo. Te conhecer melhor.

- Eu também. Mas hoje não poderei te acompanhar. Sabe, estou com minha irmã e minha filha. O que iriam pensar? Rssssss.

- Ah, sim. Claro.

Então nos despedimos.

Por alguns momentos, aquela sensação me deixou leve e confiante. Leve porque estava livre para fazer e estar com quem bem quisesse de forma despreocupada, pois aos poucos estava percebendo que não mais teria que dar satisfação a ninguém, me livrando de fazer coisas e hábitos adquiridos com o tempo. Confiante, porque me senti novamente um homem desejado e cortejado, ainda mais por uma bela mulher como aquela. Qual homem não se sentiria bem depois de estar com aquela agradável companhia? Tudo isso fez com que por aqueles instantes eu me esquecesse dela, me dando conforto e fazendo com que um belo sorriso surgisse em meu rosto. Talvez, pensei naquele momento, fosse a hora de realmente aceitar que o jogo continuaria e que deveria tocar a bola para frente. "Vida que segue", pensei.

Combinei de ainda naquela semana entrar em contato com ela. Me despedi dos demais a fim de me dirigir ao meu carro para ir embora, mas não antes de apreciar aquela mulher linda caminhar mexendo seus quadris ao firmar pé ante pé com seus saltos altos na medida em que meu grupo de amigos se distancia. Esperei todos desaparecerem na penumbra da saída do estacionamento para finalmente puxar meu maço de cigarros do bolso e acender um. Mais uma vez vejo aquele hatch preto ao seu lado do meu carro lembrando que ela ainda está lá dentro, quando me recosto na sua traseira para calmamente terminar de fumar meu cigarro. “Que noite”.

Quando abro a porta do carro para nele adentrar, percebo algo preso no seu para-brisa. É um guardanapo de papel cujo cuidado na sua colocação entre as varetas limpadoras para que não caísse ou voasse com o vento era nítido. Eu o retiro e percebo algo nele escrito, com uma letra feminina para lá de conhecida, a dela. Então, naquele momento juntei várias pecinhas daquela noite. Seria tudo imaginação, coisa da minha cabeça, de um cara que vive alternando entre a baixa estima e a ilusão de ter encantado uma mulher? Bem, minhas conclusões estavam mais para o factível do que para apenas coisas da minha cabeça, uma vez que estava com um pedaço de papel na minha mão com uma mensagem escrita com sua letra cujo conteúdo é inequivocamente direcionado para mim. Ao ler aquilo, todo o conforto e sensação de paz que havia conseguido junto aos meus amigos e àquela morena linda na última meia hora tinham ido para o beleléu.

Talvez, portanto, eu não tenha sido apenas mais um homem na vida dela, mas, quem sabe, alguém que tenha lhe marcado de modo especial ou mesmo que não conseguisse fazê-la esquecer por completo. Sei lá! Por todo o tempo juntos suas palavras comigo sempre foram fortes, impositivas e até mesmo intimidadoras. “Nunca seremos amigos se acabarmos”. Você vai ser só mais um e eu também”. Coisas do tipo... Quanto a isso, eu aceitei. Aceitei sua indiferença caso um dia fossemos um para cada lado, da mesma forma como ela previa que eu acabaria por agir da mesma forma com ela. Palavras duras, fortes e ásperas que mais pareciam um soco no estomago quando ela falava daquele jeito comigo.

Agora isso.

Esse guardanapo e essas palavras. A bem da verdade é que um grande sorriso se abriu em meu rosto. Dei uma pequena e gostosa risada sozinho ao mesmo tempo que meus olhos se enchiam d’água, numa mistura de emoções que só me fizeram ter mais vontade de viver. Aos que passavam pelo estacionamento, talvez vissem a cena com certo espanto, por isso me apressei a entrar no carro e ligá-lo, mas sem ainda o manobrar para ir embora, entrando numa letargia para apreciar aquele pedaço de papel e tentá-lo entender. A compreensão daquela mensagem era simples, pensando bem agora, mas a sutileza de suas ações me deixaram embasbacado. Ora, naquele momento em que ela anunciou que iria até seu carro em voz alta e clara para que todos ao entorno ouvissem, inclusive eu, a despeito de seu timbre de voz ser naturalmente alto, era tanto para pegar no carro a correntinha que lhe dei e vesti-la quanto para depositar essa mensagem em meu para-brisa. Sim, ela estava com um guardanapo na mão quando saiu. Claro! Isso também significa que, ela me viu desde quando cheguei no bar, ao contrário do que imaginara, e ficou espreitando com quem eu estava e o que estaria fazendo. Ela não me desdenhou, não mesmo, e sim utilizou uma habilidade feminina que sempre soube existir: a de observar, e acompanhar uma situação com total discrição, de forma que ninguém, nem mesmo quem as estiver acompanhando, fosse capaz de perceber.

Sim, foi isso que aconteceu. Ela me notou! Ela me notou!

Afinal de contas, o que me trouxe a esse bar essa noite? O que fez eu conhecer aquela mulher linda que sentou comigo, foi minha companhia por toda a noite e demonstrou todo aquele interesse em mim no mesmo lugar onde uma paixão tórrida, uma página virada, que já teria se dissipado vem a se manifestar de maneira tão singular? Isso é destino? Se for, ele só pode estar brincando com a minha cara.

E aquela mensagem? O que é aquela mensagem?

Seria só uma brincadeira para lembrar e cutucar sobre nossa deliciosa aventura ou seria algo bem mais sério que para ela não se acabou? Não sei. Talvez, ela queira que eu entre em contato e a faça essa pergunta. Mesmo que, no único contexto que poderia estar em nossa história, a frase “não abusa da minha paciência” viesse a ter apenas um significado.

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