sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Apenas uma forma de amar



O que fazer quando as palavras faltam ou simplesmente o pronunciar delas não é o suficiente para descrever aquilo que se sente?

Foram anos tentando entender tudo isso para que um dia, se tivesse a oportunidade, te dizer algo a respeito.

É verdade que nunca me esforcei muito para entender. Talvez porque, à medida que o tempo passava, tinha presente comigo que ele se encarregaria de tudo, quando a inocência em nossas vidas daria lugar às experiências maliciosas, dolorosas e cruéis que a maturidade iria apresentar.

Mas não, não se apagou.

Como uma centelha na lareira teimosa em não se apagar, sempre lá estava aquela lembrança: brilhando e ardendo, num cantinho secreto em nossos corações. Por mais fraca que pudesse estar ou que parecesse destinada a se apagar, bastaria um simples sopro para reavivá-la. E assim ela permaneceu por todos esses anos, e nunca se apagou

Foi uma grande paixão adolescente, não tenho dúvidas disso, daquelas de dar febre. Naqueles dias quase não dormia a noite me revolvendo na cama lembrando de teu sorriso, mesmo quando o coração parecia querer saltar do peito quando te via descendo as escadas abraçando os livros escolares ou sentada com as colegas nos bancos do pátio. Aquele “oi” de voz suave e levemente rouca nunca sairia da minha cabeça. Cada dia a espera ansiosa pela chegada do recreio para poder ouvi-lo. Me lembro que era um garoto envergonhado, encabulado até a raiz do cabelo, sem um mínimo de coragem para sequer segurar tua mão, quem diria um beijo.

Ah sim, o beijo. Hoje me tomo a rir sozinho quando me recordo desse delicioso momento: o dia em que me enchi de coragem e a ti lhe perguntei em voz tremula se podia lhe dar um beijo. E tu dissestes “sim”.

“E agora, o que faço?”

Meu Deus, eu não sabia como chegar perto de ti, muito menos como te abraçar. Por sorte tu fizestes isso por nós ao se aproximar e entrelaçar teus braços em meu pescoço. Então senti teu perfume e o calor de teu corpo. Sim, tu também estavas nervosa.

E assim nos beijamos. Um beijo breve, totalmente sem jeito, mas não menos apaixonado. Depois disso, um abraço, o mais longo abraço que poderíamos nos dar. Não vimos o tempo passar. Dez, quinze, vinte minutos... não sei. Só não queria que acabasse. Não queria que tu saísse de meus braços.

Não éramos donos de nossos narizes, pois ainda éramos crianças, eu com quatorze e tu com treze anos. Até hoje não perdoo meus pais por me trocarem de escola. “Lá estavam todos os meus amigos” eu dizia e eles, sempre escondendo o real motivo pela minha relutância na mudança. Até hoje lembro do quanto chorei escondido no pátio do colégio e fui flagrado pelo zelador da escola. Não foi difícil dissimular e dizer a ele que minhas lágrimas eram por causa da troca de escola, ao invés de falar a verdade sobre o que realmente estaria deixando para trás.

E assim o tempo foi passando. Já não conseguia te ver todos os dias, senão cruzando contigo de vez em quando pelas ruas, pois para piorar ainda éramos vizinhos de bairro. Estávamos em diferentes escolas e já não tínhamos mais amigos em comum. Aos poucos tua lembrança ia se enfraquecendo a medida em que raramente nos víamos. Parecia que o tempo de fato faria seu trabalho e aquele amor adolescente se dissiparia.

Aos poucos percebia o quanto estávamos ficando cada vez mais diferentes e por consequência mais distantes. Virei roqueiro, guitarrista de banda, cabeludo e tatuado, um rebelde sem causa ainda sem gostar muito de estudar. Ao contrário de ti, bailarina, educada e amante dos livros, a menina doce e de refinada educação, como sempre. Minha juventude, regada a bebida, rock’n roll e festas na qual minhas atitudes enlouqueciam meus pais contrastava com a tua, com apresentações de ballet, aulas de piano, viagens europeias, intercâmbios estudantis e bolsas de estudo mundo afora. Já tínhamos estilos diferentes de ver o mundo, o que me deixava claro o quão distante nos tornamos. Me imaginava como seriamos se um dia nos tornássemos de fato namorados, noivos ou até mesmo marido e mulher. Não tinha como, não encaixávamos. Mesmo assim, de alguma forma tua lembrança sempre esteve viva e em meus pensamentos.

Seguimos adiante, cada um com a sua vida: nos formamos, nos casamos, constituímos famílias, criamos diferentes círculos de amigos, deixei minha rebeldia de lado e amadureci. Vibrei com tua entrada na faculdade, com teus sucessos pessoais, mesmo que não tivesse certeza que tu pudesses sentir o mesmo comigo. Virei gente, homem responsável e pai de família, e assim tornamo-nos realizados e felizes. Era nítido o amor gerado por ti junto a teu marido e teus filhos, assim como ocorreu comigo. Minha esposa aliás, sempre soube de tua existência, pois desde o começo expus todos os momentos especiais em minha vida e a ela apresentei teu nome. Tu nunca foste, no entanto, motivo de ciúmes ou de qualquer incerteza junto a ela, assim como tenho certeza do mesmo de tua parte para com teu esposo, pois éramos apenas uma doce lembrança adolescente para ambos.

Dessa forma, nossas vidas tornaram-se paralelas e destinadas a assim seguirem, sem haver um vislumbre para que ambas novamente se encontrassem. Na verdade, sempre tive receio disso, pois não queria de forma alguma acabar com toda essa magia do mais puro e inocente sentimento que nutri em minha vida.

Aí veio a internet. Oh, tecnologia maravilhosa! A cada foto, cada postagem minha um “like” seu. E vice-versa. Uma sensação gostosa. Nada de mais, claro, senão a demonstração de um enorme carinho e atenção que tu nunca deixaste de demonstrar. Ao menos agora poderíamos saber um pouco mais e assim compartilhar e admirar os acontecimentos na vida de cada um de nós. Foi muito legal quando publiquei uma foto de meu certificado de conclusão do meu curso de mestrado quando tu fostes a primeira a curtir, da mesma forma como te felicitei junto as fotos publicadas por ti do nascimento de teu filhinho e de tua formatura. Muito bacana, mesmo a distância e na forma paralela como nossas vidas se desenvolveram, podíamos nos ver.

E o teu aniversário? Nunca esqueci do dia vinte e quatro de novembro, mesmo nunca podendo te dar os parabéns. Ao menos até agora. Toda o cuidado tinha que ser tomado. Os melindres não poderiam surgir, dúvidas não podiam ser geradas, mas eu tinha que fazer. Até que nesse dia, há dois anos, tomei coragem e te mandei uma mensagem de parabéns. Algo simples, discreto, privado e sem malícia alguma, tal qual sempre foi nossos breves olhares e trocas de palavras. Minha alegria quando tu respondeste, não com relativa secura a qual não estranharia se assim fizesse, mas com alegria e atenção que me surpreenderam. Sinceramente, nunca gerei expectativa alguma em sentimentos teus para comigo aos dias de hoje, mesmo que alguma manifestação tua pudesse me dar abertura para tal. E assim nos víamos, e assim nos tínhamos: a distância, zelosos com as palavras, mas não menos atenciosos entre nós.

Mesmo assim, apesar de todo esse tempo, apesar de toda a pureza que sempre permeou a relação de nossas almas, sempre quis te perguntar. Sempre quis saber, afinal de contas, o que tu sentias por mim. Eu precisava saber, mesmo que isso não fosse mudar nada em nossas vidas.

E tu, será que, se tivéssemos essa oportunidade, farias essa pergunta mim? Se a fizesse, fico pensativo no que te responderia. “Não sei”, seria a primeira resposta a vir em minha boca. Aliás, já respondi isso para alguém que um dia me perguntou, uma amiga em comum. Disse a ela que não saberia descrever, pois é algo difícil de encontrar palavras para tal. Minha própria esposa já me fez essa pergunta e a ela disse “nada demais”. De certa forma, não menti, pois nunca mais a desejei como uma paixão, nunca mais desejei seu corpo ou seu coração só para mim. Não, a ela eu não menti, e acho que entendeu. Até mesmo porque não trocaria tudo que até então construí por mais uma aventura, pois isso não deixaria de ser. Preferiria, portanto, manter tudo como está, da forma como temos hoje: algo distante, uma lembrança, um carinho.

Eu sei, eu me penitencio. Todas as coisas na vida as quais me arrependi não foram aquelas que fiz, mas as que deixei ou levei muito tempo para fazê-las. E agora não podia ser diferente. Poderia ter tomado essa atitude a muito tempo atrás e com isso poria um fim a essas dúvidas, que volta e meia teimavam em surgir em minha memória. Ou talvez, seria meu intrínseco e inconsciente desejo de sempre cultivar essas constantes dúvidas? Quem sabe. Se nem eu mesmo consigo responder isso, quem mais poderia?

É verdade que, eventualmente trocávamos mensagens nas redes sociais, mas, como já disse, todas superficiais, leves e até mesmo um tanto formais, o suficiente para nutrir alguma ligação, algum contato, mesmo que apenas a vista dos atuais meios digitais. Então, de uma forma astuciosa de minha parte, me cerquei de certezas para que não ouvisse – ou lesse – um “não” de tua parte, e a ti sugeri que nos encontrássemos para finalmente olhar em teus olhos e dizer e perguntar tudo aquilo que a quase trinta anos consumia um cantinho do meu coração. Tua expressão afirmativa para tal me encheu de euforia ao mesmo tempo que me tomei da ciência de manter-me austero, calmo e até mesmo cético com o que poderia ocorrer. E como faríamos isso, me perguntava, pois somos conhecidos em todo os cantos que possamos nos apresentar? A visita profissional que te faria em teu local de trabalho seria um bom pretexto.

Mas não foi dessa forma que aconteceu, não é mesmo? Tu fostes embora e na tua despedida eu não tive como participar. Apenas aqueles do teu círculo de convívio puderam lá estar e eu não tinha como. Então tu partiste, e não conseguimos nos ver a tempo. Percebi então que minhas perguntas a teu respeito não mais poderiam ser respondidas. Tudo, enfim, se tornaria uma forte, doce e apaixonante lembrança e nada mudaria isso.

Mesmo assim, eu não poderia deixar de tentar. Eu precisava conversar contigo. Eu precisava te dizer, eu precisava te perguntar. Seja qual fosse a forma, eu precisava fazer. E agora aqui estou, diante de ti, de teu túmulo, na última forma que me resta de em paz poder ir ao teu encontro, mesmo tendo teu silêncio como resposta.

Aqui estou agora, em pé diante de ti. No momento em que teria todo o tempo do mundo e ninguém para me importunar minhas palavras somem, meus pensamentos se acomodam, meu coração sossega. O sol mágico do fim da tarde está iluminando a tua foto onde consigo ver o mesmo sorriso de quando tu tinhas treze anos. Sem nenhuma palavra dita ou ouvida na companhia do vento norte sobre as árvores, tu, de uma forma que nunca irei entender, responde, como num estalo de dedos, todas aquelas perguntas que um dia eu teria a te fazer. Nesse momento, tu conseguiste fazer-me lembrar de todas essas e ao mesmo tempo respondê-las. Tu me fizeste agora ver que sempre tive as respostas comigo.

Tudo o que construímos, muitas vezes sem sabermos que estávamos fazendo. Tudo o que vivemos e sentimos juntos e ao mesmo tempo distantes um do outro. Todos os sonhos compartilhados entre nós, mesmo que não soubéssemos. Uma forma diferente de querer alguém mesmo à distância, por entre as diferenças que a vida nos impôs, de forma silenciosa, pura e sincera.

Sim Cecilia, agora eu sei. Tudo isso nada mais foi do que apenas uma forma de amar.