domingo, 29 de setembro de 2024

Contato


 Já perdi a conta das vezes que havia feito esse tipo de serviço e não seria nada estapafúrdio, para mim fazer mais uma diligência como essa. Já tenho mais de vinte anos de experiência nessa profissão e, por conta disso, visto muitas coisas que poderiam impressionar e chocar as demais pessoas. Desde coisas aterrorizantes e tristes, até as alegres e esperançosas. Mas não tão fantástica e inacreditável como vou contar. Nada do que já vivi me prepararia para aquela experiência.

Meu nome é João, sou socorrista e paramédico de uma empresa de saúde daqui de Santa Maria. Meu trabalho é atender emergências médicas e fazer acompanhamentos de pacientes em estado crítico e sensível durante seus transportes, monitorando seus sinais vitais e agindo, dentro de minhas possibilidades, até que cheguemos no nosso destino ou que o atendimento médico mais específico se apresente e assuma a situação. Como já disse, passei por muitas coisas, a ponto de já me considerar um bom e experiente profissional. 
   
Tudo aconteceu numa noite quente de dezembro. Eu e o Evandro, um motorista de ambulância que volta e meia fazia dupla comigo em serviços como esse, fomos escalados para fazer o translado de um paciente em estado delicado, da cidade de Rosário do Sul para Santa Maria. O trajeto tem 140km e leva entorno de uma hora e meia fazê-lo de carro a uma velocidade média de 100km/h. No entanto, estávamos numa ambulância e, portanto, protocolos de segurança devem ser cumpridos, pois, caso o contrário, dispositivos de rastreio e tacógrafos poderiam denunciar as transgressões de seus motoristas. Mesmo para o Evandro, um experiente e cuidadoso profissional que também tem seus lá 20 anos de experiência na direção. 

Apesar disso, estávamos ansiosos por fazer esse serviço e voltar para casa logo. É claro que eu e o Evandro já tínhamos feito viagens desse tipo muito mais longas e demoradas. Mas, puxa vida! Era uma sexta-feira, final de dezembro com o verão despontando e o calor já presente, começando a exigir do sistema de ar condicionado da ambulância. Tudo sugerindo para uma cervejinha com as esposas num barzinho, ou em casa mesmo. Na verdade, estávamos incomodados e desgostosos com a escala daquela empreitada, pois seria nossa folga. E foda-se, nenhum de nós dois estava a fim de fazer hora extra, só queríamos curtir a folga. No entanto, estávamos trabalhando. Mas tudo bem, de certa forma, seria um bate-e-volta rápido e tranquilo.

Chegamos no Hospital de Caridade Nossa Senhora Auxiliadora, em Rosário do Sul, por volta das 19h e imediatamente iniciamos o procedimento de embarque do paciente, um senhor que aparentava ter entorno de 60 anos, de estatura baixa e cabelos grisalhos. Dele, não sabíamos mais nada, até que nos repassassem sua documentação para a viagem. Ele já estava acomodado na maca, devidamente imobilizado para sua segurança e com uma mascara de oxigênio, além de estar coberto por um lençol até seu pescoço. Com o paciente embarcado na ambulância e já em deslocamento, pude ter acesso com calma à sua ficha. 

Seu nome era Mario Afonso Seixas, 65 anos, natural de Rosário do Sul. Seu diagnóstico descrito na ficha acusa várias úlceras gástricas que o levaram ao estado de hemorragia digestiva constante, precisando de intervenção cirúrgica urgente: uma gastrectomia. Sim, o Sr. Mario estava perdendo sangue, de modo que seu estado de saúde era frágil, sendo necessário todos os cuidados possíveis para manter sua pressão arterial e demais sinais vitais estáveis durante aquela viagem. Ele já se encontrava muito fraco, a ponto de não conseguir mais respirar sem auxílio de ventilador mecânico, por isso a máscara.  Nossa tarefa era, portanto, transferi-lo urgentemente para o Hospital Universitário de Santa Maria, onde uma equipe médica estaria a sua espera.

E assim tomamos o caminho para a estrada entorno das 19h50min. O experiente Evandro conduz a ambulância observando todos os procedimentos protocolares, desde a manutenção da velocidade máxima permitida até a ativação de dispositivos sinalizadores, como giroflex e sirene, enquanto eu fico no compartimento do paciente, monitorando os sinais do Sr. Seixas. A viagem tinha tudo para transcorrer com tranquilidade e a devida agilidade. 

Em alguns minutos, saímos do perímetro urbano de Rosário do Sul, tomando a BR-290 para, nos próximos 30 minutos, nos aproximarmos do trevo de acesso à BR-158, a "Faixa de Rosário". Era de nosso conhecimento que, a partir dali, levaríamos entorno de 1 hora até Santa Maria, mas que a partir de 15 ou 20 minutos, passaríamos por um trecho daquela estrada onde não haveria nada. Uma luminária num poste perdido, um galpão aqui e outro acolá, pouquíssimo fluxo de veículos, um breu completo. Sinal de celular então, nem pensar.

Já eram 20h20min quando alcançamos o trevo e tomarmos a Faixa de Rosário, 25 minutos se passaram quando passamos a atravessar aquela zona escura da estrada, levando mais alguns minutos que qualquer outro veículo devido à velocidade padrão da ambulância de 80km/h, o que implicaria em mais que 20 minutos para atravessa-la por completo. Eu estava sentando num dos bancos, ao lado do paciente, brincando com meu celular e fazendo o tempo passar. Estávamos em silêncio, senão pelos bipes dos aparelhos de monitoramento, pelo contínuo som do ventilador mecânico e pelo próprio motor da ambulância. Quando enfim o sinal de celular se foi, me levantei e fui até Evandro, me escorando no marco do acesso à cabine do motorista.

- E aí? Tudo certo?

- Tranquilo. Não vejo a hora de chegar. Tô louco pra uma cerveja.

- Eu também.

- E aí atrás, tudo tranquilo?

- Sim, sim. Tudo normal.

De repente, o inusitado acontece. Em determinado momento, as luzes da ambulância se apagam, assim como o seu motor. Inexplicavelmente, além da completa escuridão, um silêncio ensurdecedor coma conta conta de todo o veículo, isso porque os equipamentos de monitoramento e o ventilador mecânico também se desligam. 

- O que foi isso, meu Deus? - exclamei. Sim, foi uma exclamação, pois imediatamente percebi que nem mesmo o Evandro teria condições de explicar o que tá acontecendo.

- Não faço ideia. Cara, apagou tudo aqui na ambulância. - Diz Evandro.

Evandro tentar dar ignição no motor da ambulância e verifica seus faróis em vão. Nem mesmo o motor de arranque do veículo responde ao comando estando ainda em movimento, porém em desaceleração. Ele então habilmente aproveita a força inercial restante para tentar estacionar no acostamento, uma manobra arriscada para aquela situação pois simplesmente não se conseguia enxergar um palmo diante de nossos narizes. Nossa sorte foi que em questão de instantes surge um poste distante que consegue emanar uma fraquíssima luz que ele usa como referência. Por conta dessa dificuldade, ele desloca a ambulância levemente para a direita e aos poucos vai freando, buscando parar o veículo por completo e averiguarmos a situação. Eu percebo, desde logo, que os equipamentos internos da ambulância também se apagaram, me dirigindo de pronto ao paciente que estamos transportando.

Com o veículo já parado, Evandro saca seu celular tentando ligar sua lanterna em vão e se deslocando junto a mim, que aquelas alturas também estava a procura das lanternas dos kits de emergência para logo avaliar o estado do paciente, em vão. Apesar da escuridão, tentei tomar o pulso do paciente, para depois verificar seu batimentos cardíacos com um estetoscópio e sua respiração retirando a máscara e aproximando meu ouvido junto a suas fossas nasais.

- Evandro, nosso paciente se foi! - Anunciei.

- Mas o que tá acontecendo? João, não me diz que foi por causa do ventilador mecânico que parou? 

- Pode ser. Ele estava muito fraco.

- Mas não faz cinco minutos que tudo desligou. E cara, tu não verificou as baterias desses negócios antes? - Evandro me faz essa indagação sabendo que os equipamentos internos de monitoramento e estabilização são independentes do sistema elétrico da ambulância e possuem alimentação de energia própria, com bancos de baterias com autonomia de horas e que a supervisão deles é de responsabilidade do paramédico escalado para o translado. Ou seja, minha.

 - Sim, Evandro! Eu revisei tudo antes de sair. Não tô entendendo nada. 

Eu e o Evandro já havíamos perdido pacientes em outras viagens por diversos motivos. Mas nunca por conta de uma situação como aquela. Admito que, naquele momento, um certo nervosismo me tomou conta ao imaginar uma suposta falha minha num procedimento comum que já fizera inúmeras vezes, levando um paciente sob minha custódia a óbito. Por conta disso, comecei a imaginar o que reportar ao corpo médico responsável após retornarmos. Voltei ao meu banco e fiquei em pensamento tentando entender o que aconteceu, se alguma coisa poderia relacionar a pane geral em todo o veículo e equipamentos independentes, enquanto Evandro tentava insistentemente dar partida no motor para depois começar a dar um olhada se havia alguma anomalia perceptível no sistema elétrico da ambulância.

Apesar de ainda ser primavera, a noite estava quente. A porta do motorista já estava aberta, pois Evandro tinha descido e começado a verificar o sistema elétrico da ambulância, começando pela sua bateria. Mesmo assim, ainda o fluxo de ar não dava conta e por isso resolvi descer da ambulância pela porta de trás. Deixei-a aberta e fui ao encontro de Evandro. Aos poucos, estávamos acostumando nossos olhos à escuridão já começando a ter uma visão relativa do local, pois apesar da única fonte de luz ser aquele poste distante a mais de 300 metros, a lua  cheia e o céu limpo nos auxiliava. Então, indaguei João:

- Descobriu alguma coisa?

- Nada! Parece que a energia elétrica da ambulância simplesmente foi chupada toda. Não consigo produzir nenhuma faísca, nada. E tu? Deu uma olhada nos equipamentos?

- Sim. Cara, a mesma coisa. As baterias não funcionam. Nenhuma delas.

- João, da uma olhada nas lanternas dos kits de emergência aí do compartimento do paciente.

- Evandro, foi a primeira coisa que fiz. Nem essas lanternas funcionam.

- Tá de sacanagem!?

- Pior que não. E te digo mais: eu mesmo carreguei botei essas porcarias pra carregar hoje pela manhã.

Sem uma saída para a situação naquele momento, fechamos as portas da ambulância e nos sentamos junto aos pneus do flanco seu flanco direito acendendo cada um um cigarro para que relaxássemos um pouco e pensássemos em algo. Por pior que fosse a situação, a noite estava linda, o céu estrelado e com a lua cheia refletindo sua luz pelas árvores e asfalto. Não seria a mais quente das noites, não havia vento algum e o calor que fazia não chegava a nos fazer transpirar. Em outro contexto, um belo e agradável início de noite. 

A essas alturas, já eram entrono de 21h30min e assim, de costas para a via, nos dispomos a observar aquele poste distante com aquela fraca luminária. Aos poucos, fomos percebendo que ela guarnecia uma pequena construção que parecia uma casa.

- João, olha lá. Não tá parecendo uma casa?

- É tá parecendo sim.

- E, se déssemos uma olha lá? Sei lá, talvez haja alguém e poderíamos pedir algum tipo de ajuda.

- Pode ser, mas que tipo de ajuda? Celular aqui não pega, então se tem alguém lá e com celular, não vai adiantar. Duvido que tenha uma linha de telefone fixo. Só se tiver um carro ou uma moto para levar um de nós a algum lugar que tenha sinal de celular. Isso se essa bruxaria não tenha ocorrido só com a gente, pois olha só: mortinho! E o teu também! - Exibo meu aparelho celular para o Evandro demonstrando estar totalmente apagado, como se de um hora pra outra a bateria tivesse se descarregado, ao mesmo tempo que aponto para o dele, no mesmo estado.

- Pois é. Mesmo assim, acho que vou tentar.

- É, não custa nada. Vai, dá um pulo lá enquanto tomo conta da ambulância aqui.

- Tá bem, Vamos fazer isso. 

Aos poucos vejo Evandro se distanciando na escuridão, com seu vulto cada vez mais delineado por aquela fraca luz do distante poste. Ele toma um pequeno acesso de veículos desenhado no chão a alguns metros da ambulância e que se estende a cerca de trinta metros até chegar num simples portão de madeira e tela de arame. Percebo que está analisando aquela cancela no intuito de achar um meio de abri-la, quando examina algumas correntes enroladas entre ela e um moirão de sustentação, denunciado pelo tilintar do metal mesmo a distância. Evandro não vê alternativa senão transpô-lo pulando sobre ele com relativa facilidade por ser relativamente baixo, seguindo em direção ao poste que está no caminho para aquela pequena construção.

De repente, percebo algo inusitado. Evandro fica imóvel, completamente parado, de frente para o poste e de costas para mim, numa posição retilínea com os braços alinhados ao corpo. Imediatamente pensei que ele tivesse avistado algum cachorro que pudesse o ameaçar ou mesmo que alguém tivesse surgido ameaçando-o por estar invadindo uma propriedade. Eu dou uns passos em direção ao acesso adentando alguns passos nele e saindo do asfalto, me distanciando da ambulância, chamando-o quase que gritando:

- Evandro, tá tudo bem?...Evandro?... Evandro????

Por algumas vezes repeti o chamado ao Evandro alternando aumentando o volume da voz, mas em vão. Evandro não se mexia, parecendo um manequim completamente estático. Comecei a ficar um pouco preocupado já me ensaiando para ir até o portão para de lá chamá-lo novamente e poder talvez ter uma visão melhor do que estava acontecendo. Antes disso, porém, chamei-o novamente, dessa vez berrando já com uma certa irritação por ele não ter correspondido, a ponto de já esbravejar:

- Mas que merda, cacete!

Então, quando comecei meu deslocamento no sentido de tomar o pequeno acesso em direção ao portão, uma voz baixa, levemente rouca e notadamente masculina me interpela, vinda pelas minhas costas:

- Calma rapaz, ele não vai te ouvir.

Tomei um tremendo susto com aquilo. De sobressalto me viro para a direção da ambulância para ver o que era aquela voz. Vejo o nosso paciente, em pé a dois passos de mim, vestindo a roupa privativa hospitalar, de pés no chão, com as mãos postas sobre seu abdômen com os dedos entrelaçados e sorrindo. Seus olhos tinham um brilho azul sobrenatural, mas emanavam uma tranquilidade e paz que não conseguiria descrever. A despeito do momento do susto que levei, nada mais naquela visão me repassava insegurança, medo ou algum tipo de ameaça. Sua postura corporal e seu sorriso transmitiam  afabilidade e tranquilidade, mesmo incrédulo com o que estava vendo. Comecei então, a sistematicamente virar meu pescoço buscando com os olhos Evandro que permanecia na mesmíssima posição estática desde que se estava se aproximando do poste iluminado. Aos poucos comecei a entender que chamá-lo ou mesmo ir de encontro a ele não seria uma opção. E antes mesmo de esboçar algum tipo de reação, algo meio complicado naquele momento, pois também fiquei paralisado e atônito com aquela presença, o paciente de modo sereno e sem desentrelaçar os dedos das mãos diz, olhando para o céu:

- Que noite, hein?! Vamos sentar um pouco, eu explico tudo pra ti.
 
Eu não me mexi. Também, convenhamos, não tinha como. Então, ele se move, ainda com as mãos entrelaçadas, se agachando para sentar escorando-se no pneu traseiro da ambulância.

- Mas João, sente-se aqui. Seu nome é João, não é?

Até que eu queria, mas não conseguia dizer nada. Ele deixa de me olhar desviando seu olhar para o alto e serenamente começar a apreciar o céu limpo e estrelado. Seu sorriso é cada vez mais tranquilo e confortante. Seus olhos cada vez brilham mais como se fossem duas safiras, um cintilo notadamente sobrenatural, porém lindo e encantador. 

Não me restava alternativa, senão de sentar-me ao seu lado no chão, ainda com movimentos que demonstram receio e incredulidade. Enquanto me acomodo, ele novamente se dirige a mim, já com as mãos sobre seus joelhos dobrados até a altura de seu peito:

- Ah, antes de começarmos: meu nome não é Mario. Quer dizer, ele tá me dando uma mãozinha aqui. E não se preocupa com ele - apontando para Evandro a distância, ainda estático - está tudo bem com ele.

A partir de então, uma sensação de tranquilidade, conforto e segurança finalmente me toma conta. Também de forma indescritível, qualquer pontinha de pânico ou medo havia dado lugar a uma incontrolável curiosidade e vontade de entender o que de fato estava acontecendo.

- Como assim? O Sr. Não se chama Mário? E como sabe o meu nome?

- Eu sei ler, está escrito aí, no seu macacão. - responde, seja lá quem ele for, sorrindo para mim demonstrando também um certo bom humor.

- Ah é, verdade.

- Então, pode onde quer começar?

- Não sei. As palavras não vêm na minha cabeça. Que tal se dissesse o seu nome?

- Nome? Ah sim. É, de fato não sou o Sr. Mario. Nomes... bem, isso é algo que não usamos mais, temos inúmeras outras formas de nos comunicarmos. Isso também já explica porque peguei emprestado o shape do Sr. Mário.

 - Como assim, "pegou emprestado"?

- Achamos que seria a melhor forma de entrar em contato contigo. Um modelo de comunicação que você pudesse entender. Aliás, pobre homem, está todo ferrado por dentro.

- Entrar em contato? Comigo? Por que?

- Pois então. Teríamos muito o que conversar e o que lhe explicar, mas há como lhe dizer tudo. Não de forma aprofundada. Tempo não seria um problema, pois sabemos lidar com essa questão. Mas teríamos um certo problema na compreensão. Estamos aqui por sua causa, talvez esse seja o primeiro ponto.

- "Estamos"? Quem?...Quem são vocês?

- Não somos daqui, meu caro. Explicar de onde viemos também é um pouco complicado. Mesmo assim, sabemos que você tem capacidade para compreender um pouco isso, pois também sabemos sobre sua pessoa.

Comecei a perceber que, de fato essa pessoa, esse ser, seja lá o que for, de fato me conhecia. Ele me conduziu a uma conversa amena sobre geopolítica e literatura policial, assuntos que eu sempre gostei. Na medida em que ele argumentava sobre esses assuntos eu ficava cada vez mais surpreso ao mesmo tempo em que me sentia motivado a conversar. Se ele queria me deixar a vontade, ele conseguiu, a ponto então de retornar a questioná-lo com mais incisividade sobre o que estava acontecendo.

- Então Sr. "Mario que não é o Mario", por que veio? Disse que é por minha causa. Como assim?

- Como disse, lhe conhecemos bem. E sabemos do sofrimento que passou nesses últimos quatro anos.

Sobre isso! Engoli a seco no momento em que uma sensação de um tijolo no peito tivesse me acertado. Um filme passou pela minha cabeça: a morte do meu pai e um ano depois a morte da minha mãe por COVID, o desmoronamento da nossa família com o fim das referências e as brigas com meus irmãos, o aborto espontâneo de minha esposa e a crescente ameaça de enxugamento de quadro da empresa que trabalhamos. Esses últimos quatro anos realmente viraram a minha cabeça de pernas para o ar. E logo comigo, um homem católico devoto, a despeito de ser profissional da saúde e ter vivenciado muitas coisas que acabariam com a fé de qualquer um. Pessoas boas, inocentes, honestas e queridas por muitos acometidas por todo o tipo de morte. Doenças, assassinatos, acidentes,... Em cada momento que me deparava com uma situação dessas por decorrência do meu ofício, um certo questionamento sobre minha fé a tudo que a religiosidade me representava surgia, mas não a ponto de comprometê-la. Talvez, porque nunca imaginaria que minha vida seria devastada do jeito que foi, como se aquelas coisas nunca iriam ocorrer comigo. Mas aconteceram, a finalmente comecei a perceber que estava cansando de perguntar "por quê" sendo tomado por um desânimo a ponto de assumir que estava em crise com minha própria fé. De que adiantou a devoção? De que adiantou acreditar? De que adiantou ser honesto, correto, justo? Passaria então a receber qualquer tipo de menção, conforto ou tentativa de explicação de forma cética e desdenhosa.

- O que quer dizer? Veio para me mostrar alguma coisa? Deus?

- Ah Deus. Eu sabia que essa pergunta viria. Sabe, é uma coisa que não é muito fácil de falar, sabia? Mas para você, acho que podemos ter uma breve conversa a respeito.

Porém, imediatamente assumi meu "modo cético" e irônico. E com um sorriso sarcástico, perguntei:

- Tá Sr. "Mario que não é o Mario", antes de qualquer coisa, eu ainda não sei quem é você, então acho meio complicado falarmos tentar me convencer de alguma coisa.

- Está bem. Vamos fazer assim: me chame de Mario, ao menos para facilitar a nossa conversa.

- Quem é você a final de contas? Um anjo?

- Mesmo me vendo e podendo me tocar você ainda questiona a minha existência?

- Quem me garante que não estou sonhando?

 - Ele. - apontando para o Evandro, ainda estático na mesma posição. - Quando formos embora, você perceberá.

 - E por quê "nós"? Não está sozinho?

- Não, não. Viemos num time, só para lhe encontrar. Daqui a pouco meus amigos irão aparecer para vocês.

-De onde? Outro planeta? Do céu?

- Se viéssemos do céu, não iriámos querer sair de lá. Nem mesmo para uma missão como essa.

- Missão... alguém mandou vocês aqui?

- Sim, João. Fomos enviados a vocês.

- Por quem?

- Não sabemos. E talvez seja essa a primeira coisa que devemos lhe dizer. Temos muito o que aprender ainda, e constantemente trabalhamos, estudamos e nos aperfeiçoamos para isso. Há muito o que conhecer e saber.

- Não estou entendendo.

- Não se preocupe, provavelmente você acabará tendo mais perguntas do que respostas. 

Então, um pequeno silencio toma conta. O nomeado Sr. Mario olha para o céu com aquele mesmo sorriso sereno, contemplando-o. Eu novamente o indago:

- Vocês vieram lá de cima, então?

- Dá pra se dizer que sim.

- Outro planeta?

- Acho que é mais correto dizer "outro mundo".

- Outra dimensão?

Ele dá um breve risadinha e volta aqueles olhos lindos, brilhante se assustadores para mim.

- Sabe João, daqui a algum tempo vocês homens vão perceber que ciência, religião, magia, tecnologia,... tudo isso vai acabar sendo uma coisa só e apesar de muitas perguntas serem respondidas, inúmeras outras surgirão.

 -Eu já imaginei isso, Sr. Mario. Agora, já que está me dizendo, estou confirmando minhas suspeitas.

- É mesmo João? Quais?

- De que minhas orações de nada valem.

- Tudo existe por um motivo, João. Assim como vocês, nós não sabemos, apesar de termos bem mais conhecimento do que vocês.

- E o que são vocês? Uma espécie de anjos?

- Talvez a trezentos anos atrás a única forma de nos apresentarmos a pessoas como você seria dessa forma. Hoje, talvez só tomando um corpo emprestado seja o suficiente. Mas não para todas as pessoas. Entende?

- Um pouco.

- Agora, quer saber por quê estamos aqui?

- Sim. 

Nesse momento, uma crise de ansiedade me toma conta na expectativa de que talvez eu pudesse ter as respostas por tudo o que me ocorreu. Esse meu estado atrapalhou minha forma de raciocinar de forma que não consegui formular nenhuma pergunta a respeito, conseguindo apenas dizer isso:

- Me fale, por favor.

- Deixa eles falarem.

O Sr. Mario aponta para o céu. Naquele momento, três esferas enormes, como se fossem luas sobre aquela escuridão, surgem entre as estrelas descendo lentamente a ponto de ficarem a alguns metros de nós, pairando no céu. Eram objetos enormes e iluminados, porém não irradiavam luminosidade, de modo que todo o resto do ambiente permanecia escuro, exceto pelas estrelas no céu que circundavam suas bordas. Fiquei em pé, me afastando a ambulância avançando alguns passos a frente, me postando bem a frente daquelas três enormes esferas cujas luzes não agrediam de forma alguma meus olhos.

Então, uma única voz se dirige a mim. Foi a voz mais serena que ouvi. Ela, no entanto, parecia ressonar numa cúpula ou espécie de anfiteatro criado artificialmente por aqueles visitantes. A sensação que senti me remeteu às visitas no planetário da universidade quando criança. Era uma voz grave e notadamente masculina, que lembrava locutores ou comunicadores de rádio, vinda da esfera do centro. De forma pausada, calma e imponente passara a ecoar suas palavras:

"Boa noite, João. Viemos de muito longe ao seu encontro, tanto quanto possa imaginar. Há milhões de anos fomos levados a abandonar nossos frágeis corpos para assumirmos outro tipo de forma em decorrência dos vários ciclos de evolução que fomos submetidos."

Aquela voz me hipnotizava. Eu nunca na minha vida havia me sentido tão seguro quanto estando ali, mesmo que diante daquelas entidades que emanavam tamanha autoridade. Eu estava totalmente  exposto à eles. Suas primeiras palavras me impactaram de forma a já me sentir diminuto diante de todo daquele universo que estava sendo apresentado a mim. Após uma pequena pausa, a entidade retorna a falar:

"Somos guardiões, designados por aqueles acima de nós, para auxiliar outros inferiores, como você. Nós lhe conhecemos desde o momento em que veio a esse mundo, acompanhando seu crescimento, seus feitos, suas dificuldades e realizações, estando próximos nos momentos em que as alegrias e as tristezas lhe tomaram conta. Nos foi dada a ordem para que nos apresentássemos a você, e aqui estamos."

Eu não conseguia expressar nenhum tipo de reação. Estava em êxtase, completamente paralisado diante deles e num sentimento de ouvi-los por muito mais. Dentre breves pausas, a entidade continua,:

"Suas perguntas não serão respondidas, pois acreditamos que apenas nossa presença lhe ajudará na compreensão de muitas coisas, pois como o nosso companheiro lhe disse, nem mesmo nós temos as respostas para tudo."

"Mas temos algumas coisas a lhe dizer, João: a primeira é que, para tudo há um motivo de existir e acontecer. A segunda é que vocês e todos aqueles iguais a você têm o poder das escolhas." 

Nesse momento, deixei por um momento o estado absorto e inerte que estava, baixando a minha cabeça e iniciando uma reflexão sobre aquelas palavras. Eu já ouvira aquilo de pessoas que tentavam me consolar durante aqueles momentos difíceis que passei. Aquelas mesmas palavras que por um certo tempo começara a tratar com desdém e descrédito. Porém, agora, transmitidas a mim por alguma coisa inexplicável e de certa forma inacreditável, mesmo diante de mim. 

Parecia que havia passado horas refletindo sobre o que acabara de ouvir, parado, inerte e com a cabeça baixa diante deles. Meus pensamentos são interrompidos quando mais uma vez eles se dirigem a mim: 

"João, fomos orientados a lhe dar essa mensagem: Complete o seu  trabalho e continue a ser o bom homem que é."

Após essas palavras, os visitantes se vão, iniciando uma subida em direção ao céu estrelado desaparecendo em segundos. Por mais alguns instantes permaneço inerte olhando para o céu, quando o Sr. Mario, agora em pé e atrás de mim, quebra o silêncio batendo com a mão em meu ombro direito e chamando a minha atenção:

- E aí João, o que achou?

Gaguejando, tentei respondê-lo.

- E...E...Eu não sei. Estou confuso.

- Eu avisei. Garanto que, muita coisa pode ter sido respondida. Mas você deve estar com muito mais perguntas. Isso chama-se "existência". Bom, está na hora de me juntar aos meus amigos. Missão cumprida.

O Sr. Mario se vira e começa a se dirigir para o interior da ambulância. ao chegar na porta traseira, ele se vira e diz uma última coisa a mim.

- Ah João, preciso lhe avisar para que não se assuste: vai ficar tudo bem com o Sr. Mario e não tenta explicar nada para o Evandro, ele vai achar que você está louco. Tenha uma boa noite!

Aquela coisa não me deu uma chance sequer de lhe questionar sobre o que acabara de dizer sumindo pela porta traseira da ambulância. De repente, e num único instante, as luzes da ambulância se acendem e seu motor dá a partida, permanecendo, a partir de então, ligado. Eu confiro meu celular e vejo a logomarca da marca do aparelho no display, indicando que o aparelho está se ligando novamente. Meu estado de incredulidade termina quando ouço uma voz conhecida atrás de mim:

- Como é que tu conseguiu?

Era o Evandro, caminhando de volta para a ambulância, já próximo a alguns passos de mim.

- João, como é que tu conseguiu ligar a ambulância?

- Eu não sei.

- Como não sabe?

- Não sei cara! O que aconteceu lá?

- Ah, cheguei lá, não tinha nada. Ninguém. Só isso.

- Por quê demorou tanto?

- Mas não demorei cara. Cheguei lá e dei meia volta. Não deu 5 minutos.

De repente, o Evandro arregala os olhos e me pergunta:

- João, tu tá escutando isso?

- Sim, tô!

Apesar do barulho do motor da ambulância, ambos conseguíamos ouvir conhecidos barulhos vindos do seu interior. Eram os equipamentos de monitoramento dos sinais vitais e o ventilador mecânico, mas com um detalhe: Estávamos ouvindo o bipe indicando os sinais vitais do paciente. Corremos para dentro da ambulância e nos deparamos com o paciente acamado e ao visualizarmos os monitores vimos que ele estava vivo. Verifiquei seus sinais vitais estando todos estáveis.

- João, o que está acontecendo? Cara, olha, meu celular se ligou!

- O meu também.

- Cara, vamos dar o fora daqui.

Então começamos a fechar as portas da ambulância e nos preparando para retomar a estrada. minha cabeça estava um turbilhão de pensamentos ao mesmo tempo em que uma paz interior me tomava conta, mesmo com toda aquela situação inusitada e assustadora que se instalara. Percebia também que tudo o que se passou não foi invenção da minha cabeça. Eu não havia adormecido em momento algum e o Evandro fora testemunha da pane da ambulância e de todos os equipamentos que carregávamos, bem como do óbito do paciente, que agora estava ali, vivinho da Silva. 

 Entramos na ambulância e retomamos a  estrada. Pelos próximos 70 minutos de viagem permanecemos em silêncio, cada um com seus pensamentos. Todas as palavras daquela entidade vinham a minha mente, sem, curiosamente, me esquecer de uma sequer.

Chegamos ao Hospital Universitário de Santa Maria concluindo o translado do paciente. Em seguida, fomos até a sede da empresa para devolver a ambulância no seu estacionamento dirigindo-nos para a já agendada cervejinha, já pelas 22h30min da noite. Lá, no posto de gasolina, tive uma vontade louca de contar tudo, mas me lembrei da advertência do "Sr. Mario que não era o Mario" de que Evandro não iria acreditar no que diria, a despeito do que ele presenciou comigo.

Foram as três cervejas mais deliciosas que já tomei na vida.

Uma semana se passou. Estando na sede da empresa, o nosso coordenador médico me aborda sorrindo e ao mesmo tempo com um semblante de incredulidade me dizendo:

- João, sabe o Sr. que tu e o Evandro trouxeram de Rosario do Sul sexta-feira passada?

- Sim, me lembro.

- Tu leu a ficha medica dele, ne?

- Sim, li. Ele tava todo ferrado, cheio de úlcera e perdendo sangue. Deu certo a cirurgia dele?

- Cirurgia? Cara, tu não vai acreditar! Ele foi para a cirurgia, chegaram a abrir ele. Não tinha uma única úlcera!