domingo, 29 de setembro de 2024

Contato


 Já perdi a conta das vezes que havia feito esse tipo de serviço e não seria nada estapafúrdio, para mim fazer mais uma diligência como essa. Já tenho mais de vinte anos de experiência nessa profissão e, por conta disso, visto muitas coisas que poderiam impressionar e chocar as demais pessoas. Desde coisas aterrorizantes e tristes, até as alegres e esperançosas. Mas não tão fantástica e inacreditável como vou contar. Nada do que já vivi me prepararia para aquela experiência.

Meu nome é João, sou socorrista e paramédico de uma empresa de saúde daqui de Santa Maria. Meu trabalho é atender emergências médicas e fazer acompanhamentos de pacientes em estado crítico e sensível durante seus transportes, monitorando seus sinais vitais e agindo, dentro de minhas possibilidades, até que cheguemos no nosso destino ou que o atendimento médico mais específico se apresente e assuma a situação. Como já disse, passei por muitas coisas, a ponto de já me considerar um bom e experiente profissional. 
   
Tudo aconteceu numa noite quente de dezembro. Eu e o Evandro, um motorista de ambulância que volta e meia fazia dupla comigo em serviços como esse, fomos escalados para fazer o translado de um paciente em estado delicado, da cidade de Rosário do Sul para Santa Maria. O trajeto tem 140km e leva entorno de uma hora e meia fazê-lo de carro a uma velocidade média de 100km/h. No entanto, estávamos numa ambulância e, portanto, protocolos de segurança devem ser cumpridos, pois, caso o contrário, dispositivos de rastreio e tacógrafos poderiam denunciar as transgressões de seus motoristas. Mesmo para o Evandro, um experiente e cuidadoso profissional que também tem seus lá 20 anos de experiência na direção. 

Apesar disso, estávamos ansiosos por fazer esse serviço e voltar para casa logo. É claro que eu e o Evandro já tínhamos feito viagens desse tipo muito mais longas e demoradas. Mas, puxa vida! Era uma sexta-feira, final de dezembro com o verão despontando e o calor já presente, começando a exigir do sistema de ar condicionado da ambulância. Tudo sugerindo para uma cervejinha com as esposas num barzinho, ou em casa mesmo. Na verdade, estávamos incomodados e desgostosos com a escala daquela empreitada, pois seria nossa folga. E foda-se, nenhum de nós dois estava a fim de fazer hora extra, só queríamos curtir a folga. No entanto, estávamos trabalhando. Mas tudo bem, de certa forma, seria um bate-e-volta rápido e tranquilo.

Chegamos no Hospital de Caridade Nossa Senhora Auxiliadora, em Rosário do Sul, por volta das 19h e imediatamente iniciamos o procedimento de embarque do paciente, um senhor que aparentava ter entorno de 60 anos, de estatura baixa e cabelos grisalhos. Dele, não sabíamos mais nada, até que nos repassassem sua documentação para a viagem. Ele já estava acomodado na maca, devidamente imobilizado para sua segurança e com uma mascara de oxigênio, além de estar coberto por um lençol até seu pescoço. Com o paciente embarcado na ambulância e já em deslocamento, pude ter acesso com calma à sua ficha. 

Seu nome era Mario Afonso Seixas, 65 anos, natural de Rosário do Sul. Seu diagnóstico descrito na ficha acusa várias úlceras gástricas que o levaram ao estado de hemorragia digestiva constante, precisando de intervenção cirúrgica urgente: uma gastrectomia. Sim, o Sr. Mario estava perdendo sangue, de modo que seu estado de saúde era frágil, sendo necessário todos os cuidados possíveis para manter sua pressão arterial e demais sinais vitais estáveis durante aquela viagem. Ele já se encontrava muito fraco, a ponto de não conseguir mais respirar sem auxílio de ventilador mecânico, por isso a máscara.  Nossa tarefa era, portanto, transferi-lo urgentemente para o Hospital Universitário de Santa Maria, onde uma equipe médica estaria a sua espera.

E assim tomamos o caminho para a estrada entorno das 19h50min. O experiente Evandro conduz a ambulância observando todos os procedimentos protocolares, desde a manutenção da velocidade máxima permitida até a ativação de dispositivos sinalizadores, como giroflex e sirene, enquanto eu fico no compartimento do paciente, monitorando os sinais do Sr. Seixas. A viagem tinha tudo para transcorrer com tranquilidade e a devida agilidade. 

Em alguns minutos, saímos do perímetro urbano de Rosário do Sul, tomando a BR-290 para, nos próximos 30 minutos, nos aproximarmos do trevo de acesso à BR-158, a "Faixa de Rosário". Era de nosso conhecimento que, a partir dali, levaríamos entorno de 1 hora até Santa Maria, mas que a partir de 15 ou 20 minutos, passaríamos por um trecho daquela estrada onde não haveria nada. Uma luminária num poste perdido, um galpão aqui e outro acolá, pouquíssimo fluxo de veículos, um breu completo. Sinal de celular então, nem pensar.

Já eram 20h20min quando alcançamos o trevo e tomarmos a Faixa de Rosário, 25 minutos se passaram quando passamos a atravessar aquela zona escura da estrada, levando mais alguns minutos que qualquer outro veículo devido à velocidade padrão da ambulância de 80km/h, o que implicaria em mais que 20 minutos para atravessa-la por completo. Eu estava sentando num dos bancos, ao lado do paciente, brincando com meu celular e fazendo o tempo passar. Estávamos em silêncio, senão pelos bipes dos aparelhos de monitoramento, pelo contínuo som do ventilador mecânico e pelo próprio motor da ambulância. Quando enfim o sinal de celular se foi, me levantei e fui até Evandro, me escorando no marco do acesso à cabine do motorista.

- E aí? Tudo certo?

- Tranquilo. Não vejo a hora de chegar. Tô louco pra uma cerveja.

- Eu também.

- E aí atrás, tudo tranquilo?

- Sim, sim. Tudo normal.

De repente, o inusitado acontece. Em determinado momento, as luzes da ambulância se apagam, assim como o seu motor. Inexplicavelmente, além da completa escuridão, um silêncio ensurdecedor coma conta conta de todo o veículo, isso porque os equipamentos de monitoramento e o ventilador mecânico também se desligam. 

- O que foi isso, meu Deus? - exclamei. Sim, foi uma exclamação, pois imediatamente percebi que nem mesmo o Evandro teria condições de explicar o que tá acontecendo.

- Não faço ideia. Cara, apagou tudo aqui na ambulância. - Diz Evandro.

Evandro tentar dar ignição no motor da ambulância e verifica seus faróis em vão. Nem mesmo o motor de arranque do veículo responde ao comando estando ainda em movimento, porém em desaceleração. Ele então habilmente aproveita a força inercial restante para tentar estacionar no acostamento, uma manobra arriscada para aquela situação pois simplesmente não se conseguia enxergar um palmo diante de nossos narizes. Nossa sorte foi que em questão de instantes surge um poste distante que consegue emanar uma fraquíssima luz que ele usa como referência. Por conta dessa dificuldade, ele desloca a ambulância levemente para a direita e aos poucos vai freando, buscando parar o veículo por completo e averiguarmos a situação. Eu percebo, desde logo, que os equipamentos internos da ambulância também se apagaram, me dirigindo de pronto ao paciente que estamos transportando.

Com o veículo já parado, Evandro saca seu celular tentando ligar sua lanterna em vão e se deslocando junto a mim, que aquelas alturas também estava a procura das lanternas dos kits de emergência para logo avaliar o estado do paciente, em vão. Apesar da escuridão, tentei tomar o pulso do paciente, para depois verificar seu batimentos cardíacos com um estetoscópio e sua respiração retirando a máscara e aproximando meu ouvido junto a suas fossas nasais.

- Evandro, nosso paciente se foi! - Anunciei.

- Mas o que tá acontecendo? João, não me diz que foi por causa do ventilador mecânico que parou? 

- Pode ser. Ele estava muito fraco.

- Mas não faz cinco minutos que tudo desligou. E cara, tu não verificou as baterias desses negócios antes? - Evandro me faz essa indagação sabendo que os equipamentos internos de monitoramento e estabilização são independentes do sistema elétrico da ambulância e possuem alimentação de energia própria, com bancos de baterias com autonomia de horas e que a supervisão deles é de responsabilidade do paramédico escalado para o translado. Ou seja, minha.

 - Sim, Evandro! Eu revisei tudo antes de sair. Não tô entendendo nada. 

Eu e o Evandro já havíamos perdido pacientes em outras viagens por diversos motivos. Mas nunca por conta de uma situação como aquela. Admito que, naquele momento, um certo nervosismo me tomou conta ao imaginar uma suposta falha minha num procedimento comum que já fizera inúmeras vezes, levando um paciente sob minha custódia a óbito. Por conta disso, comecei a imaginar o que reportar ao corpo médico responsável após retornarmos. Voltei ao meu banco e fiquei em pensamento tentando entender o que aconteceu, se alguma coisa poderia relacionar a pane geral em todo o veículo e equipamentos independentes, enquanto Evandro tentava insistentemente dar partida no motor para depois começar a dar um olhada se havia alguma anomalia perceptível no sistema elétrico da ambulância.

Apesar de ainda ser primavera, a noite estava quente. A porta do motorista já estava aberta, pois Evandro tinha descido e começado a verificar o sistema elétrico da ambulância, começando pela sua bateria. Mesmo assim, ainda o fluxo de ar não dava conta e por isso resolvi descer da ambulância pela porta de trás. Deixei-a aberta e fui ao encontro de Evandro. Aos poucos, estávamos acostumando nossos olhos à escuridão já começando a ter uma visão relativa do local, pois apesar da única fonte de luz ser aquele poste distante a mais de 300 metros, a lua  cheia e o céu limpo nos auxiliava. Então, indaguei João:

- Descobriu alguma coisa?

- Nada! Parece que a energia elétrica da ambulância simplesmente foi chupada toda. Não consigo produzir nenhuma faísca, nada. E tu? Deu uma olhada nos equipamentos?

- Sim. Cara, a mesma coisa. As baterias não funcionam. Nenhuma delas.

- João, da uma olhada nas lanternas dos kits de emergência aí do compartimento do paciente.

- Evandro, foi a primeira coisa que fiz. Nem essas lanternas funcionam.

- Tá de sacanagem!?

- Pior que não. E te digo mais: eu mesmo carreguei botei essas porcarias pra carregar hoje pela manhã.

Sem uma saída para a situação naquele momento, fechamos as portas da ambulância e nos sentamos junto aos pneus do flanco seu flanco direito acendendo cada um um cigarro para que relaxássemos um pouco e pensássemos em algo. Por pior que fosse a situação, a noite estava linda, o céu estrelado e com a lua cheia refletindo sua luz pelas árvores e asfalto. Não seria a mais quente das noites, não havia vento algum e o calor que fazia não chegava a nos fazer transpirar. Em outro contexto, um belo e agradável início de noite. 

A essas alturas, já eram entrono de 21h30min e assim, de costas para a via, nos dispomos a observar aquele poste distante com aquela fraca luminária. Aos poucos, fomos percebendo que ela guarnecia uma pequena construção que parecia uma casa.

- João, olha lá. Não tá parecendo uma casa?

- É tá parecendo sim.

- E, se déssemos uma olha lá? Sei lá, talvez haja alguém e poderíamos pedir algum tipo de ajuda.

- Pode ser, mas que tipo de ajuda? Celular aqui não pega, então se tem alguém lá e com celular, não vai adiantar. Duvido que tenha uma linha de telefone fixo. Só se tiver um carro ou uma moto para levar um de nós a algum lugar que tenha sinal de celular. Isso se essa bruxaria não tenha ocorrido só com a gente, pois olha só: mortinho! E o teu também! - Exibo meu aparelho celular para o Evandro demonstrando estar totalmente apagado, como se de um hora pra outra a bateria tivesse se descarregado, ao mesmo tempo que aponto para o dele, no mesmo estado.

- Pois é. Mesmo assim, acho que vou tentar.

- É, não custa nada. Vai, dá um pulo lá enquanto tomo conta da ambulância aqui.

- Tá bem, Vamos fazer isso. 

Aos poucos vejo Evandro se distanciando na escuridão, com seu vulto cada vez mais delineado por aquela fraca luz do distante poste. Ele toma um pequeno acesso de veículos desenhado no chão a alguns metros da ambulância e que se estende a cerca de trinta metros até chegar num simples portão de madeira e tela de arame. Percebo que está analisando aquela cancela no intuito de achar um meio de abri-la, quando examina algumas correntes enroladas entre ela e um moirão de sustentação, denunciado pelo tilintar do metal mesmo a distância. Evandro não vê alternativa senão transpô-lo pulando sobre ele com relativa facilidade por ser relativamente baixo, seguindo em direção ao poste que está no caminho para aquela pequena construção.

De repente, percebo algo inusitado. Evandro fica imóvel, completamente parado, de frente para o poste e de costas para mim, numa posição retilínea com os braços alinhados ao corpo. Imediatamente pensei que ele tivesse avistado algum cachorro que pudesse o ameaçar ou mesmo que alguém tivesse surgido ameaçando-o por estar invadindo uma propriedade. Eu dou uns passos em direção ao acesso adentando alguns passos nele e saindo do asfalto, me distanciando da ambulância, chamando-o quase que gritando:

- Evandro, tá tudo bem?...Evandro?... Evandro????

Por algumas vezes repeti o chamado ao Evandro alternando aumentando o volume da voz, mas em vão. Evandro não se mexia, parecendo um manequim completamente estático. Comecei a ficar um pouco preocupado já me ensaiando para ir até o portão para de lá chamá-lo novamente e poder talvez ter uma visão melhor do que estava acontecendo. Antes disso, porém, chamei-o novamente, dessa vez berrando já com uma certa irritação por ele não ter correspondido, a ponto de já esbravejar:

- Mas que merda, cacete!

Então, quando comecei meu deslocamento no sentido de tomar o pequeno acesso em direção ao portão, uma voz baixa, levemente rouca e notadamente masculina me interpela, vinda pelas minhas costas:

- Calma rapaz, ele não vai te ouvir.

Tomei um tremendo susto com aquilo. De sobressalto me viro para a direção da ambulância para ver o que era aquela voz. Vejo o nosso paciente, em pé a dois passos de mim, vestindo a roupa privativa hospitalar, de pés no chão, com as mãos postas sobre seu abdômen com os dedos entrelaçados e sorrindo. Seus olhos tinham um brilho azul sobrenatural, mas emanavam uma tranquilidade e paz que não conseguiria descrever. A despeito do momento do susto que levei, nada mais naquela visão me repassava insegurança, medo ou algum tipo de ameaça. Sua postura corporal e seu sorriso transmitiam  afabilidade e tranquilidade, mesmo incrédulo com o que estava vendo. Comecei então, a sistematicamente virar meu pescoço buscando com os olhos Evandro que permanecia na mesmíssima posição estática desde que se estava se aproximando do poste iluminado. Aos poucos comecei a entender que chamá-lo ou mesmo ir de encontro a ele não seria uma opção. E antes mesmo de esboçar algum tipo de reação, algo meio complicado naquele momento, pois também fiquei paralisado e atônito com aquela presença, o paciente de modo sereno e sem desentrelaçar os dedos das mãos diz, olhando para o céu:

- Que noite, hein?! Vamos sentar um pouco, eu explico tudo pra ti.
 
Eu não me mexi. Também, convenhamos, não tinha como. Então, ele se move, ainda com as mãos entrelaçadas, se agachando para sentar escorando-se no pneu traseiro da ambulância.

- Mas João, sente-se aqui. Seu nome é João, não é?

Até que eu queria, mas não conseguia dizer nada. Ele deixa de me olhar desviando seu olhar para o alto e serenamente começar a apreciar o céu limpo e estrelado. Seu sorriso é cada vez mais tranquilo e confortante. Seus olhos cada vez brilham mais como se fossem duas safiras, um cintilo notadamente sobrenatural, porém lindo e encantador. 

Não me restava alternativa, senão de sentar-me ao seu lado no chão, ainda com movimentos que demonstram receio e incredulidade. Enquanto me acomodo, ele novamente se dirige a mim, já com as mãos sobre seus joelhos dobrados até a altura de seu peito:

- Ah, antes de começarmos: meu nome não é Mario. Quer dizer, ele tá me dando uma mãozinha aqui. E não se preocupa com ele - apontando para Evandro a distância, ainda estático - está tudo bem com ele.

A partir de então, uma sensação de tranquilidade, conforto e segurança finalmente me toma conta. Também de forma indescritível, qualquer pontinha de pânico ou medo havia dado lugar a uma incontrolável curiosidade e vontade de entender o que de fato estava acontecendo.

- Como assim? O Sr. Não se chama Mário? E como sabe o meu nome?

- Eu sei ler, está escrito aí, no seu macacão. - responde, seja lá quem ele for, sorrindo para mim demonstrando também um certo bom humor.

- Ah é, verdade.

- Então, pode onde quer começar?

- Não sei. As palavras não vêm na minha cabeça. Que tal se dissesse o seu nome?

- Nome? Ah sim. É, de fato não sou o Sr. Mario. Nomes... bem, isso é algo que não usamos mais, temos inúmeras outras formas de nos comunicarmos. Isso também já explica porque peguei emprestado o shape do Sr. Mário.

 - Como assim, "pegou emprestado"?

- Achamos que seria a melhor forma de entrar em contato contigo. Um modelo de comunicação que você pudesse entender. Aliás, pobre homem, está todo ferrado por dentro.

- Entrar em contato? Comigo? Por que?

- Pois então. Teríamos muito o que conversar e o que lhe explicar, mas há como lhe dizer tudo. Não de forma aprofundada. Tempo não seria um problema, pois sabemos lidar com essa questão. Mas teríamos um certo problema na compreensão. Estamos aqui por sua causa, talvez esse seja o primeiro ponto.

- "Estamos"? Quem?...Quem são vocês?

- Não somos daqui, meu caro. Explicar de onde viemos também é um pouco complicado. Mesmo assim, sabemos que você tem capacidade para compreender um pouco isso, pois também sabemos sobre sua pessoa.

Comecei a perceber que, de fato essa pessoa, esse ser, seja lá o que for, de fato me conhecia. Ele me conduziu a uma conversa amena sobre geopolítica e literatura policial, assuntos que eu sempre gostei. Na medida em que ele argumentava sobre esses assuntos eu ficava cada vez mais surpreso ao mesmo tempo em que me sentia motivado a conversar. Se ele queria me deixar a vontade, ele conseguiu, a ponto então de retornar a questioná-lo com mais incisividade sobre o que estava acontecendo.

- Então Sr. "Mario que não é o Mario", por que veio? Disse que é por minha causa. Como assim?

- Como disse, lhe conhecemos bem. E sabemos do sofrimento que passou nesses últimos quatro anos.

Sobre isso! Engoli a seco no momento em que uma sensação de um tijolo no peito tivesse me acertado. Um filme passou pela minha cabeça: a morte do meu pai e um ano depois a morte da minha mãe por COVID, o desmoronamento da nossa família com o fim das referências e as brigas com meus irmãos, o aborto espontâneo de minha esposa e a crescente ameaça de enxugamento de quadro da empresa que trabalhamos. Esses últimos quatro anos realmente viraram a minha cabeça de pernas para o ar. E logo comigo, um homem católico devoto, a despeito de ser profissional da saúde e ter vivenciado muitas coisas que acabariam com a fé de qualquer um. Pessoas boas, inocentes, honestas e queridas por muitos acometidas por todo o tipo de morte. Doenças, assassinatos, acidentes,... Em cada momento que me deparava com uma situação dessas por decorrência do meu ofício, um certo questionamento sobre minha fé a tudo que a religiosidade me representava surgia, mas não a ponto de comprometê-la. Talvez, porque nunca imaginaria que minha vida seria devastada do jeito que foi, como se aquelas coisas nunca iriam ocorrer comigo. Mas aconteceram, a finalmente comecei a perceber que estava cansando de perguntar "por quê" sendo tomado por um desânimo a ponto de assumir que estava em crise com minha própria fé. De que adiantou a devoção? De que adiantou acreditar? De que adiantou ser honesto, correto, justo? Passaria então a receber qualquer tipo de menção, conforto ou tentativa de explicação de forma cética e desdenhosa.

- O que quer dizer? Veio para me mostrar alguma coisa? Deus?

- Ah Deus. Eu sabia que essa pergunta viria. Sabe, é uma coisa que não é muito fácil de falar, sabia? Mas para você, acho que podemos ter uma breve conversa a respeito.

Porém, imediatamente assumi meu "modo cético" e irônico. E com um sorriso sarcástico, perguntei:

- Tá Sr. "Mario que não é o Mario", antes de qualquer coisa, eu ainda não sei quem é você, então acho meio complicado falarmos tentar me convencer de alguma coisa.

- Está bem. Vamos fazer assim: me chame de Mario, ao menos para facilitar a nossa conversa.

- Quem é você a final de contas? Um anjo?

- Mesmo me vendo e podendo me tocar você ainda questiona a minha existência?

- Quem me garante que não estou sonhando?

 - Ele. - apontando para o Evandro, ainda estático na mesma posição. - Quando formos embora, você perceberá.

 - E por quê "nós"? Não está sozinho?

- Não, não. Viemos num time, só para lhe encontrar. Daqui a pouco meus amigos irão aparecer para vocês.

-De onde? Outro planeta? Do céu?

- Se viéssemos do céu, não iriámos querer sair de lá. Nem mesmo para uma missão como essa.

- Missão... alguém mandou vocês aqui?

- Sim, João. Fomos enviados a vocês.

- Por quem?

- Não sabemos. E talvez seja essa a primeira coisa que devemos lhe dizer. Temos muito o que aprender ainda, e constantemente trabalhamos, estudamos e nos aperfeiçoamos para isso. Há muito o que conhecer e saber.

- Não estou entendendo.

- Não se preocupe, provavelmente você acabará tendo mais perguntas do que respostas. 

Então, um pequeno silencio toma conta. O nomeado Sr. Mario olha para o céu com aquele mesmo sorriso sereno, contemplando-o. Eu novamente o indago:

- Vocês vieram lá de cima, então?

- Dá pra se dizer que sim.

- Outro planeta?

- Acho que é mais correto dizer "outro mundo".

- Outra dimensão?

Ele dá um breve risadinha e volta aqueles olhos lindos, brilhante se assustadores para mim.

- Sabe João, daqui a algum tempo vocês homens vão perceber que ciência, religião, magia, tecnologia,... tudo isso vai acabar sendo uma coisa só e apesar de muitas perguntas serem respondidas, inúmeras outras surgirão.

 -Eu já imaginei isso, Sr. Mario. Agora, já que está me dizendo, estou confirmando minhas suspeitas.

- É mesmo João? Quais?

- De que minhas orações de nada valem.

- Tudo existe por um motivo, João. Assim como vocês, nós não sabemos, apesar de termos bem mais conhecimento do que vocês.

- E o que são vocês? Uma espécie de anjos?

- Talvez a trezentos anos atrás a única forma de nos apresentarmos a pessoas como você seria dessa forma. Hoje, talvez só tomando um corpo emprestado seja o suficiente. Mas não para todas as pessoas. Entende?

- Um pouco.

- Agora, quer saber por quê estamos aqui?

- Sim. 

Nesse momento, uma crise de ansiedade me toma conta na expectativa de que talvez eu pudesse ter as respostas por tudo o que me ocorreu. Esse meu estado atrapalhou minha forma de raciocinar de forma que não consegui formular nenhuma pergunta a respeito, conseguindo apenas dizer isso:

- Me fale, por favor.

- Deixa eles falarem.

O Sr. Mario aponta para o céu. Naquele momento, três esferas enormes, como se fossem luas sobre aquela escuridão, surgem entre as estrelas descendo lentamente a ponto de ficarem a alguns metros de nós, pairando no céu. Eram objetos enormes e iluminados, porém não irradiavam luminosidade, de modo que todo o resto do ambiente permanecia escuro, exceto pelas estrelas no céu que circundavam suas bordas. Fiquei em pé, me afastando a ambulância avançando alguns passos a frente, me postando bem a frente daquelas três enormes esferas cujas luzes não agrediam de forma alguma meus olhos.

Então, uma única voz se dirige a mim. Foi a voz mais serena que ouvi. Ela, no entanto, parecia ressonar numa cúpula ou espécie de anfiteatro criado artificialmente por aqueles visitantes. A sensação que senti me remeteu às visitas no planetário da universidade quando criança. Era uma voz grave e notadamente masculina, que lembrava locutores ou comunicadores de rádio, vinda da esfera do centro. De forma pausada, calma e imponente passara a ecoar suas palavras:

"Boa noite, João. Viemos de muito longe ao seu encontro, tanto quanto possa imaginar. Há milhões de anos fomos levados a abandonar nossos frágeis corpos para assumirmos outro tipo de forma em decorrência dos vários ciclos de evolução que fomos submetidos."

Aquela voz me hipnotizava. Eu nunca na minha vida havia me sentido tão seguro quanto estando ali, mesmo que diante daquelas entidades que emanavam tamanha autoridade. Eu estava totalmente  exposto à eles. Suas primeiras palavras me impactaram de forma a já me sentir diminuto diante de todo daquele universo que estava sendo apresentado a mim. Após uma pequena pausa, a entidade retorna a falar:

"Somos guardiões, designados por aqueles acima de nós, para auxiliar outros inferiores, como você. Nós lhe conhecemos desde o momento em que veio a esse mundo, acompanhando seu crescimento, seus feitos, suas dificuldades e realizações, estando próximos nos momentos em que as alegrias e as tristezas lhe tomaram conta. Nos foi dada a ordem para que nos apresentássemos a você, e aqui estamos."

Eu não conseguia expressar nenhum tipo de reação. Estava em êxtase, completamente paralisado diante deles e num sentimento de ouvi-los por muito mais. Dentre breves pausas, a entidade continua,:

"Suas perguntas não serão respondidas, pois acreditamos que apenas nossa presença lhe ajudará na compreensão de muitas coisas, pois como o nosso companheiro lhe disse, nem mesmo nós temos as respostas para tudo."

"Mas temos algumas coisas a lhe dizer, João: a primeira é que, para tudo há um motivo de existir e acontecer. A segunda é que vocês e todos aqueles iguais a você têm o poder das escolhas." 

Nesse momento, deixei por um momento o estado absorto e inerte que estava, baixando a minha cabeça e iniciando uma reflexão sobre aquelas palavras. Eu já ouvira aquilo de pessoas que tentavam me consolar durante aqueles momentos difíceis que passei. Aquelas mesmas palavras que por um certo tempo começara a tratar com desdém e descrédito. Porém, agora, transmitidas a mim por alguma coisa inexplicável e de certa forma inacreditável, mesmo diante de mim. 

Parecia que havia passado horas refletindo sobre o que acabara de ouvir, parado, inerte e com a cabeça baixa diante deles. Meus pensamentos são interrompidos quando mais uma vez eles se dirigem a mim: 

"João, fomos orientados a lhe dar essa mensagem: Complete o seu  trabalho e continue a ser o bom homem que é."

Após essas palavras, os visitantes se vão, iniciando uma subida em direção ao céu estrelado desaparecendo em segundos. Por mais alguns instantes permaneço inerte olhando para o céu, quando o Sr. Mario, agora em pé e atrás de mim, quebra o silêncio batendo com a mão em meu ombro direito e chamando a minha atenção:

- E aí João, o que achou?

Gaguejando, tentei respondê-lo.

- E...E...Eu não sei. Estou confuso.

- Eu avisei. Garanto que, muita coisa pode ter sido respondida. Mas você deve estar com muito mais perguntas. Isso chama-se "existência". Bom, está na hora de me juntar aos meus amigos. Missão cumprida.

O Sr. Mario se vira e começa a se dirigir para o interior da ambulância. ao chegar na porta traseira, ele se vira e diz uma última coisa a mim.

- Ah João, preciso lhe avisar para que não se assuste: vai ficar tudo bem com o Sr. Mario e não tenta explicar nada para o Evandro, ele vai achar que você está louco. Tenha uma boa noite!

Aquela coisa não me deu uma chance sequer de lhe questionar sobre o que acabara de dizer sumindo pela porta traseira da ambulância. De repente, e num único instante, as luzes da ambulância se acendem e seu motor dá a partida, permanecendo, a partir de então, ligado. Eu confiro meu celular e vejo a logomarca da marca do aparelho no display, indicando que o aparelho está se ligando novamente. Meu estado de incredulidade termina quando ouço uma voz conhecida atrás de mim:

- Como é que tu conseguiu?

Era o Evandro, caminhando de volta para a ambulância, já próximo a alguns passos de mim.

- João, como é que tu conseguiu ligar a ambulância?

- Eu não sei.

- Como não sabe?

- Não sei cara! O que aconteceu lá?

- Ah, cheguei lá, não tinha nada. Ninguém. Só isso.

- Por quê demorou tanto?

- Mas não demorei cara. Cheguei lá e dei meia volta. Não deu 5 minutos.

De repente, o Evandro arregala os olhos e me pergunta:

- João, tu tá escutando isso?

- Sim, tô!

Apesar do barulho do motor da ambulância, ambos conseguíamos ouvir conhecidos barulhos vindos do seu interior. Eram os equipamentos de monitoramento dos sinais vitais e o ventilador mecânico, mas com um detalhe: Estávamos ouvindo o bipe indicando os sinais vitais do paciente. Corremos para dentro da ambulância e nos deparamos com o paciente acamado e ao visualizarmos os monitores vimos que ele estava vivo. Verifiquei seus sinais vitais estando todos estáveis.

- João, o que está acontecendo? Cara, olha, meu celular se ligou!

- O meu também.

- Cara, vamos dar o fora daqui.

Então começamos a fechar as portas da ambulância e nos preparando para retomar a estrada. minha cabeça estava um turbilhão de pensamentos ao mesmo tempo em que uma paz interior me tomava conta, mesmo com toda aquela situação inusitada e assustadora que se instalara. Percebia também que tudo o que se passou não foi invenção da minha cabeça. Eu não havia adormecido em momento algum e o Evandro fora testemunha da pane da ambulância e de todos os equipamentos que carregávamos, bem como do óbito do paciente, que agora estava ali, vivinho da Silva. 

 Entramos na ambulância e retomamos a  estrada. Pelos próximos 70 minutos de viagem permanecemos em silêncio, cada um com seus pensamentos. Todas as palavras daquela entidade vinham a minha mente, sem, curiosamente, me esquecer de uma sequer.

Chegamos ao Hospital Universitário de Santa Maria concluindo o translado do paciente. Em seguida, fomos até a sede da empresa para devolver a ambulância no seu estacionamento dirigindo-nos para a já agendada cervejinha, já pelas 22h30min da noite. Lá, no posto de gasolina, tive uma vontade louca de contar tudo, mas me lembrei da advertência do "Sr. Mario que não era o Mario" de que Evandro não iria acreditar no que diria, a despeito do que ele presenciou comigo.

Foram as três cervejas mais deliciosas que já tomei na vida.

Uma semana se passou. Estando na sede da empresa, o nosso coordenador médico me aborda sorrindo e ao mesmo tempo com um semblante de incredulidade me dizendo:

- João, sabe o Sr. que tu e o Evandro trouxeram de Rosario do Sul sexta-feira passada?

- Sim, me lembro.

- Tu leu a ficha medica dele, ne?

- Sim, li. Ele tava todo ferrado, cheio de úlcera e perdendo sangue. Deu certo a cirurgia dele?

- Cirurgia? Cara, tu não vai acreditar! Ele foi para a cirurgia, chegaram a abrir ele. Não tinha uma única úlcera! 






segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Aprendizado



"Os mortos não louvam o Senhor, tampouco nenhum dos que descem ao silêncio."
Salmos 115:17

Pessoalmente adoro rezar a missa às terças-feiras. São poucos o que comparecem as 7 horas da noite, porém me trazem a confortável sensação de despretensão, como se ali estivessem para relaxar, descansar suas pesadas cabeças com algumas palavras de conforto. Por isso não pego pesado no meu sermão, pois uma missa que não passa de 30 minutos não tem muito tempo para tagarelice. Algumas velhas beatas, como sempre, ali sentadas nos bancos à esquerda do altar segurando seus Rosários com os olhos fixados no crucifixo enquanto disserto sobre alguma coisa do cotidiano fazendo alusão a passagens do evangelho que mais gosto. Elas, por sinal, claramente dão ao entendimento que não estão nem aí para o que falo e por essas e outras que acabo me dirigindo às poucas pessoas sentadas de forma pulverizada pelos bancos da enorme nave paroquial. O interessante é que as missas das terças-feiras, talvez por serem curtas propositalmente, sempre trazem um publico diferente toda a vez. Sempre vejo rostos novos, muitos deles jovens, atentos às minhas palavras já reconhecidas por muitos como atrativas aos mais jovens. Essas missas possuem liturgia simples, sem ministros de eucaristia ou mesmo puxadores de cantos, seja no ofertório ou no momento da comunhão. É tudo comigo mesmo, sem muita frescura e de forma bem direta.
Sim, adoro as terças-feiras. Por conta da missa das 19 horas, mas principalmente pelo que vem depois dela. É que é o meu "Dia do Xis", pois sagradamente após a celebração da missa vou até a lancheria que fica a duas quadras da Casa Paroquial para saborear um bom Xis Salada acompanhado de uma (ou duas, três...) cervejinhas. Afinal, sou padre, mas sou filho de Deus. Tá certo que minha bebida preferida é o vinho, mas no calor santamariense de janeiro isso não é muito convidativo. A lancheria em si já é ponto tradicional do bairro e ali, os fregueses também já são tradicionais. Certamente que sou um deles.
Findando a missa, me dirigindo aos presentes com o protocolar "vão em paz e que Deus o acompanhe" vejo aquelas poucas pessoas sumirem por aquelas altas portas até me restar fecha-las e recolher os paramentos à sacristia. Ao me desfazer da batina e da estola passo a mão em meu smartphone como de costume afim de checar mensagens recebidas. Dentre algumas enviadas por colegas padres e dirigentes paroquianos, vejo uma mensagem da Solange, dona da lancheria: "Heleno, tu vens hoje ne? Queria conversar contigo". Eu respondo: "Claro que sim. Chego aí em 30 ou 40 minutos. Aí conversamos melhor. Coloca uma pra gelar lá no fundo do freezer".
Até mesmo o percurso da Casa Paroquial à lancheria é agradável, pois posso andar despojadamente ao longo da avenida fumando um cigarrinho e a sós com meus pensamentos, sem ninguém para encher o saco. Sou padre, mas sou homem e como tal, as vezes gosto de ficar plenamente só com meus pensamentos. Ao chegar na lancheria, meu banquinho da ponta do balcão já estava me esperando com a taça de cerveja a minha disposição. Eu me acomodo sendo recebido com o habitual sorriso respeitoso de Solange. 
- Boa noite Heleno.
- Boa noite noite Solange. Pode mandar fazer um xis salada.
- Já tirei teu pedido. Daqui a pouquinho já te sirvo. Posso te acompanhar nuns goles? A primeira cerveja é por minha conta.
- Claro que sim. Então, quais as novidades?
Iniciamos uma agradável conversa que se estendeu por alguns bons minutos. Solange algumas vezes é enfadonha, com assuntos beirando à fofoca dedicada à vida alheia dos nossos conhecidos vizinhos de bairro mas na maioria das vezes tece assuntos interessantes sobre os acontecimentos na cidade e do seu cotidiano em si, o que faz atualizar-me das coisas e do que se passa ao nosso redor.
Após engolir sucessivos goles de cerveja, percebo Solange enrubescer formando um senho em seu rosto impossível de não se perceber. Nunca tinha visto sua aparência daquele jeito, pois parecia um pouco nervosa, impossível de qualquer dissimulação.
- Que houve Solange?
- Ai Heleno, vamos lá. Eu tenho certeza que tu és a pessoa mais certa para esse tipo de coisa. Estava ansiosa pela tua chegada porque eu queria te contar algumas coisas.
- Sim tu me mandastes mensagem. Estou aqui, pode falar.
- É minha irmã Rosane. Está com problemas com minha sobrinha Fernanda...
Solange então começa a a explanar toda uma situação contada por sua irmã. Contou que achou muito estranho Rosane não dar notícias por semanas, afinal, sempre foram muito próximas e conviviam se falavam quase que diariamente. No entanto, depois de um tempo, e de uma maneira muito estranha e inesperada, a recebeu em sua casa. Ela estava muito nervosa, trêmula e chorosa procurando algum tipo de ajuda para sua filha, sobrinha de Solange. Disse que já fazia um bom tempo que estranhava o comportamento de Fernanda, pois não dormia mais com a luz apagada e por inúmeras vezes a ouvia na madrugada gritando para alguém pedindo que "a deixasse em paz". Logo de início ela imaginou ser sonhos provocados por algum ocorrido que começara a lhe preocupar  mesmo sem ter a mínima noção do que poderia ter ocorrido. A situação ficou mais preocupante a assustadora quando certa noite, Rosane ouve Fernanda gritando de seu quarto indo até seu encontro e, para sua surpresa, não a vê ainda deitada em sua cama, mas vestida como se recém tivesse chegado em casa, acuada no quanto de seu quarto de cócoras aos prantos gritando "vai embora, não te quero mais aqui, vai embora, tu precisa ir, vai, vai por favor". Ainda segundo sua irmã, Solange relata que, a partir de então, sua sobrinha não queria mais para a escola, muito menos sair de casa. Logo ela, uma menina linda de quatorze anos que adorava jogar vôlei e passear com as amigas. Isso fez com que Rosane começasse por conta própria sua própria investigação sobre o que teria provocado aquela situação pedindo ajuda ao seu esposo Renato que aparentemente não estava tão abalado quanto ela mas já começara a demonstrar preocupação com o estado da filha. Ela contou então que Renato ao vasculhar o smartphone da filha havia encontrado conversas com amigas por aplicativo combinando pousarem juntas para jogarem o jogo novo que havia comprado num marketplace da internet "mas que nossos pais não podem saber que jogo é". De fato, segundo sua irmã, as meninas haviam pousado juntas num sábado quando Solange e Renato haviam saído para um jantar com casais amigos e que justamente após essa noite começou a notar sinais de ansiedade e pânico por parte da filha o que os levou a entrar em contato com os pais das demais meninas fazendo com que estes questionassem suas filhas sobre o que poderia ter acontecido. Uma delas acabou confessando que tinham jogado um tal jogo de tabuleiro para "conversar com espíritos". O tal tabuleiro foi encontrado por Rosane no roupeiro de Fernanda tirando uma e enviando para Solange que acabou por me mostrar em seu celular.
- Hummm. É um tabuleiro Ouija, um jogo que a gurizada brinca para "tentar falar com os mortos", já ou ouviu falar?
- Ai Senhor. Já tinha ouvido falar disso. Meu Deus! Mas da onde essa guria conseguiu isso?
- Calma calma. É só um jogo bobo, fácil de encontrar a venda na internet.
- O que me diz Heleno. Esse negócio preocupante ou não?
- Sim e não Solange. Envolve muitas coisas.
-Ai Heleno, tem haver com possessão?
Com um breve sorriso, então digo.
- Calma. Calma. Para se concluir que estamos diante de uma "possessão", tem que se eliminar um monte de coisas já descritas pelas ciência, e para isso temos a psicologia, a psiquiatria, a neurologia, e por aí vai. Tu bem sabe, sou um padre e a fé que confesso dá pouco espaço para essas coisas, além de ser profissional da área da psicologia e psicanálise. Faz uns bons anos que resolvi  me dedicar a essas disciplinas para justamente entender as pessoas que caem na tentação das crendices e das respostas fáceis para os seus problemas quando eles complicam pra valer esquecendo o que a ciência diz e até mesmo sua própria fé. Se tornou um desafio para mim entender o quanto as ações inconscientes de um indivíduo podem enganá-lo a si mesmo. Eu te garanto que há muito mais coisa vinda da própria terra do que do além nessa história. Nós já conversamos muito sobre isso, lembra?
- Sim Heleno, eu sei. Mas sabe como é,  quando essas coisas batem na nossa porta... assustam. Mas, enfim... Tu pode nos ajudar?
- Posso sim. Claro que sim! Até mesmo porque, pelo que já percebi, me parece que já tem muitas pessoas envolvidas, desde a menina, seus pais, tu e as famílias das outras amiguinhas da tua sobrinha. Antes que isso vire uma tempestade desnecessária e prejudique mais ainda a menina e a família, eu acho que podemos fazer alguma coisa sim. Até mesmo porque esse é um caso bastante familiar para mim, vindo de encontro com meus trabalhos acadêmicos. 
- Tu achas que isso pode ser...
- Possessão? Ah, não é bem assim dessas coisas acontecerem. Por conta de uma brincadeira de adolescentes? Não acredito. Mas...
- Mas...?
- O mal existe Solange e isso é um fato. Talvez ele não se manifeste da forma literária como se imagina, mas ele existe, só que de muitas formas a ponto de te decepcionar pela simplicidade delas. Então, vamos com calma. O catolicismo tem um conhecimento milenar sobre esse assunto e a ciência é uma ferramenta que nós utilizamos. Muita coisa que no passado era atribuída a possessão acabaram por ser resolvidas com respostas simples ou então complexas, mas à luz da ciência. No entanto, existem sim casos em que a ciência tem dificuldade em responder, mas para isso existem religiosos dedicados e devidamente esclarecidos para tratar disso.
Dirigi uma piscadela para Solange empunhando irreverentemente a taça de cerveja buscando confortá-la de que sabia o que estava dizendo. Procurando demonstrar interesse no caso (porque de fato já estava) a indago:
- Me diz uma coisa,  a tua irmã não disse nada sobre as outras amiguinhas? Como por exemplo, se só tua sobrinha está com esse tipo de comportamento ou as demais também...
- Sim, ela me falou algumas coisas. Disse que as demais meninas estão normais, mas com muito medo e dificuldade para dormir.
- Imagino, elas devem se sentir parte de toda essa situação, e de fato são. Bom Solange, como já te disse, sou um padre antes de mais nada e por vocação. Preciso e gosto de ajudar as pessoas. Vamos ver o que podemos fazer a respeito. Mas, te acalma e leva uma palavra de tranquilidade à tua irmã. Combina para que ela e o seu esposo levem tua sobrinha lá na casa paroquial no sábado a tarde, após a missa das 16h. Peça também para que levem o tal tabuleiro. Por enquanto quero ver apenas a... como é mesmo o nome da menina?
- Fernanda.
- Isso, Fernanda. Vou me concentrar nela primeiro. Depois da missa vamos primeiro conversar com ela e ver o que podemos fazer. Pode ser que, ajudando ela as outras meninas terão um reflexo positivo sobre isso.
- Não entendi! Então a coisa pode ser mais séria do que entendi, é isso?
- Solange, relaxa! Só providencia esse encontro do sábado.
- Certo. Já vou mandar uma mensagem para ela. Obrigada Heleno.
- De nada. Traz outra bem geladinha, por favor. E me conta, por onde anda o Sr...
Para descontrair e mudar o foco do assunto, resolvi retomar com Solange sobre os assuntos amenos da vizinhança. Mais uma cerveja após o lanche foi o suficiente para concluir meu tradicional programa "pós-missa de terça-feira". Despeço-me de Solange tomando o caminho de volta até a casa paroquial pensativo sobre o caso que iria tratar no final de semana. Eu estava pensativo e em voz alta disse:
"É meu amigo. Mais um abacaxi para descascar".
Logo após meu sermão durante a tradicional "missa de sábado das 4" e iniciando o rito do ofertório, identifico entre os presentes Solange acompanhada de uma família que deduzi ser de sua irmã Rosane. A aflição em seus rostos era latente, como se todos aqueles ali estivessem procurando algum tipo de ajuda com um certo desespero não tendo mais para onde e para quem recorrer. A cena era tão inquietante que chamou a atenção dos demais presentes, geralmente os mesmos daquele horário: idosos da vizinhança do bairro desacostumados a rostos mais jovens e estranhos junto aos conhecidos de décadas. Eu não tinha dado como premissa a participação dos familiares, tampouco da menina, naquela celebração. Todavia, o fato de ter vindo foi relativamente bom, pois a partir dali já podia iniciar meu processo de avaliação da situação.
Ao findar a missa, me dirijo àquelas pessoas inicialmente cumprimentando Rosane e depois sendo por ela apresentado à sua irmã Rosane, o esposo dela Renato e por fim a sua filha Fernanda. Naquele momento comecei a perceber o certo grau de seriedade do caso ao notar a palidez, olheiras e o nítido visual de abatimento fraqueza física de Fernanda. Algo de fato a estava importunando e desestabilizando sua psiquê de forma contundente. Seus pais também pareciam abatidos e demonstrando certa ansiedade na expectativa de minhas abordagens a respeito. Procurei, no entanto, tranquilizá-los com um afável sorriso demonstrando também calma, ponderação e prudência nos atos e palavras.
- Por favor, aguardem eu liberar de minha indumentária. Irei até a sacristia e já volto. Aguardem aqui, por favor, está muito quente lá fora e aqui dentro da igreja está bastante agradável. - Disse a todos eles.
Ao dar as costas em direção à sacristia, ouço um baixo murmúrio de Fernanda: "Mãe, como é calmo aqui dentro". Não contive o breve sorriso já processando mais aquela pista do que poderia estar acontecendo. A psicossomatização, afinal de contas, é causada por um gatilho, um choque muito forte no consciente da pessoa que reflete em seu inconsciente a ponto de faze-la adoecer. A reversão disso pode ocorrer da mesma forma, só que contrária e a presença de Fernanda no interior da igreja poderia já ser sinal dessa reação. 
Ou, talvez não.
Retornando da sacristia junto àquele grupo, solicito a eles que deixassem a igreja e se dirigissem até a casa paroquial que fica ao lado, pois ali em meu escritório iria atendê-los de maneira adequada. Perguntei aos pais se trouxeram o tal tabuleiro do jogo sendo respondido por eles de modo afirmativo, mas que estava no carro, pois não queriam carregar aquele objeto durante a missa. Assenti a intenção deles mas solicitei que o pai da menina fosse até o carro buscar o jogo para que ele pudesse ser utilizado e avaliado durante nossa conversa, o que foi feito por ele.
- Bom pessoal, sejam bem-vindos. Esse é meu gabinete, por favor sentem-se todos. 
Meu gabinete era um pequeno cômodo da casa paroquial que transformara em escritório. Além de minha escrivaninha guarnecida por uma estante com minha biblioteca particular, haviam alguns quadros com imagens religiosas e algumas fotos. Meu quadro preferido era de uma foto que havia feito na companhia do Papa Francisco em Roma ano passado após a conclusão de algumas formações em psicologia e parapsicologia promovidas pela Ordem dos Jesuítas num dos históricos prédios anexos à cidade do Vaticano. Sem dúvida uma honra estar na sua presença e ter beijado sua mão. Não foi a toa que a mesma chamou a atenção daquela família, mesmo sem saber do real e profundo motivo de, o momento daquela foto, o próprio Papa ter ido ao encontro da nossa turma de estudiosos, especialmente por ser ele mesmo um jesuíta de formação. À frente da escrivaninha, duas cadeiras e logo atrás, duas poltronas e um sofá de três lugares formando um espaço para conversas menos formais para um grupo de pessoas. Foi nesse espaço que solicitei à família que se acomodassem. Peguei uma das cadeiras de guarnição da escrivaninha e a virei de forma que eu pudesse nela me acomodar de frente aos demais. 
- Por favor, fiquem bem a vontade. Me desculpem o calor, mas como podem ver as janelas estão escancaradas porque meu ar-condicionado estragou, justo hoje, num calor terrível de 33ºC. Nossa sorte é que esse ventinho faz o ar circular e deixa essa sala mais suportável. Pois bem, vamos lá...
Iniciei nossa conversa me dirigindo à menina.
- Então, tu és a Fernanda, certo?
- Certo.
Fernanda cai no choro de maneira desesperadora. Deixe-a dar vazão à sua angústia através de suas lágrimas num choro que deve ter durado longos cinco minutos a ponto de provocar soluços na menina.
- Vamos Fernanda, me conta o que está acontecendo.
A menina inicia, então seu relato de como tudo ocorreu. Contou que estava curiosa sobre o jogo do tabuleiro Ouija visto em alguns filmes do gênero de terror junto com suas amigas e que era usado para se comunicar com os mortos. Essa curiosidade, segundo Fernanda, fez com que começasse a pesquisar sobre o assunto de modo desenfreado através da Internet. Por conta disso, consumira muito conteúdo a respeito, textos e vídeos dos mais variados formatos a respeito. Essa pesquisas fizeram com que ela tivesse acesso à supostos rituais que invocassem os mortos para dar início ao jogo, da mesma forma que pesquisara sobre o jogo em si e seu funcionamento. Durante seu relato, questionei-a de como ela obtivera aquele tabuleiro sendo respondido que o comprara através de um site de marketplace da Internet. De fato, o tal tabuleiro é muito fácil de ser encontrado a venda.
Fernanda aprofunda o seu relato cada vez mais ao descrever que insistiu muito para que ela e as amigas jogassem o tal jogo fazendo pequenas chantagens às amigas do tipo "não vou mais querer tua amizade" ou "nem fala mais comigo", tamanho estava o seu interesse sobre o assunto. Fiquei intrigado com relação à determinação da menina em promover uma sessão daquele jogo. Mais ainda quando sua mãe Rosane interrompe o relato dizendo:
- Fernanda, a Carina disse para a mãe dela que tu chegou a chorar pedindo que ela e Patrícia jogassem contigo isso.
Fernanda volta a chorar, mas dessa vez percebo algo de diferente, como  um sinal de repressão que a fizesse fica acuada. Aquele detalhe eu guardei para mim.
Após se acalmar um pouco, mesmo que não interrompendo seu choro, Fernanda volta ao seu relato. Convencera suas duas amigas mais próximas Carina e Patrícia a fazerem uma sessão do jogo, mas que para isso, ninguém poderia saber, muitos menos os pais das meninas. Escolheram, portanto, uma noite de quarta-feira à uns três meses atrás na qual seus pais não estariam em casa e suas amigas lá iriam pousar, algo muito comum entre elas uma vez que as famílias são conhecidas. Estando então sozinhas, poderiam jogar. Disse ter encontrado instruções na Internet de como conduzir o jogo. Após descrever mais alguns detalhes dos preparativos, como preparar pipoca e servirem-se de Coca-Cola, Fernanda conta que um "espírito" havia se manifestado, movendo o ponteiro do jogo para palavras pré-fixadas, como "Hi" e "Yes". Disse que conversaram com o tal espírito com perguntas frugais respondidas imediatamente por ele através do ponteiro. O espírito, segundo Fernanda, era um homem que estava com saudades de todos que havia conhecido e que não quis dizer o seu nome.  Após algumas tentativas de extrair mais informações da entidade, sem sucesso,  pediram para encerrar dando uma ordem firme ao espírito para que ele fosse embora, conforme as instruções encontradas na Internet. Porém, após essa ordem, o tal espírito havia respondido "Não" e isso as havia assustado fazendo com que todas as meninas tirassem as mãos do ponteiro e de forma impulsiva fechassem o tabuleiro. Percebendo a precipitação da ação, retomaram o jogo reabrindo o tabuleiro posicionando o ponteiro ao centro deste com as mãos postas sobre este voltando a perguntar se o espírito ainda estava presente, o que foi novamente respondido como "Sim". Então assustadas, resolveram encerrar de vez o jogo fechando o tabuleiro e o guardando, passando a agir como se isso bastasse. Disse também que suas amigas se assustaram muito a ponto de pedirem a seus pais que as buscassem para leva-las de volta a suas casas ficando ela sozinha por toda aquela noite apavorada com a suposta experiência que tivera. Por fim, conseguiu pegar no sono acordando no outro dia pela manhã retomando normalmente sua rotina. No entanto, e a partir daí, por todas as noites passou a sentir a presença masculina do espírito a acompanhando por onde ela ia, a ponto desta presença se tornar cada vez mais forte com o passar do tempo chegando a enxergar vultos, tanto nos cantos de sua casa quanto junto aos familiares, como durante uma refeição conjunta. Ela conclui seus relatos dizendo que, além da presença do espírito ao qual havia se comunicado sentia também o desejo do espírito por ela, como se quisesse tê-la como posse.
Ao encerrar seu relato, passei a indagá-la.
- Suas amigas. Conversou com elas a respeito disso depois daquela noite?
- Sim.
- Elas também têm essa sensação de perseguição por essa entidade?
- Não. Elas disseram que está tudo normal para elas. Eu acho que é porque eu me propus a ser o médium.
Demonstrando espanto pela declaração da filha, seu pai Renato interpela:
- Como assim Fernanda?
Então, intervi explicando:
- É que uma das premissas desse jogo é de que um dos participantes deve ser o médium. Ou seja, aquele que irá conduzir o jogo fazendo as perguntas ao espírito que irá se comunicar. Agora, me responde Fernanda, por que tu quisestes ser o médium?
- Estava curiosa.
Percebi uma certa dose de titubeação na resposta de Fernanda.
- Certo. Me mostra agora o tabuleiro.
Fernanda toma nas mãos o tabuleiro junto com uma caixinha de sapatos que acompanhara. Dentro da caixa estava o ponteiro de madeira e alguns papéis impressos de textos da Internet que eram as instruções de como jogar. Tomei os papéis na mão e os avaliei. No primeiro, estavam descritas as instruções básicas do jogo, tais como: concentrar-se inicialmente limpando as mentes livrando-as de qualquer pensamento antes do jogo, posicionar uma das mãos de cada participante junto ao ponteiro e definir o participante que seria o médium. Noutra folha, algumas orientações mais contundentes e assustadoras, porém sem embasamento algum e com relativa dose sensacionalista: evitar de tirar a mão do ponteiro durante a conversação, evitar mover o ponteiro acidentalmente para fora dos limites do tabuleiro e, descrito de forma expressa, nunca fechar o tabuleiro antes de concluir a sessão. Ainda segundo as orientações descritas na folha, a sessão seria concluída quando médium desse uma ordem firme e direta ao espírito para que ele "fosse embora".
Enquanto avaliava todos aqueles objetos, inclusive o tabuleiro e seu ponteiro, o pai de Fernanda faz a pergunta central de toda a situação:
- Pe. Heleno, afinal de contas o que é tudo isso?
- Bem Sr. Renato, me parece que sua filha e as amiguinhas brincaram de maneira inocente e um pouco perigosa com esse tabuleiro que é chamado de Ouija, um jogo que usam para se comunicar com os mortos. Ele funciona assim: pode ver que o tabuleiro possui palavras já impressas para agilizar a suposta comunicação e letras. Com o ponteiro colocado no centro do tabuleiro e os participantes pousando uma das mãos nele, no momento em que o espírito "baixa" ele começa a responder perguntas feitas com a suposta movimentação da peça por ele até as palavras já impressas ou formando elas apontando para as letras impressas. Para começar o jogo é necessário fazer uma espécie de ritual. Por falar nisso Fernanda, vocês fizeram algum tipo de ritual para iniciar o jogo?
- Sim Padre. Rezamos uma oração. Está aqui na caixa também.
Fernanda me alcança um pequeno pedaço de papel escrito por ela a punho livre com os seguintes dizeres.
- Todas vocês rezaram essa oração?
- Não, apenas eu. E por oito vezes seguidas, bem como encontrei na Internet.
- Isso está escrito em latim. Sabe o que significa?
- Não.
- Não tem medo de fazer uma oração que tu não sabe o que significa?
Imediatamente abri um sorriso para aliviar a situação já tensa, tanto da parte da menina quanto dos familiares presentes. Mesmo assim, ela emudeceu.
- Pois bem, Fernanda, que tal se repetíssemos a experiência que tu teve com tuas amigas? Mas antes, vamos fazer o seguinte: vá ali na igreja e faça essa oração:
Tomei um bloco de notas que estava sobre minha escrivaninha e como um médico receitando uma medicação, escrevi um pequeno texto destacando a folha e entregando a Fernanda.

"A Cruz Sagrada seja a minha luz, não seja o dragão o meu guia. Retira-te, satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mau o que tu me ofereces. Bebe tu mesmo os teus venenos! Rogai por nós abençoado São Bento, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."

- O que é isso Padre?
- A Oração de São Bento. Vai e reza. Enquanto isso, vamos ficar aqui conversando. Preciso trocar umas palavras com teus pais e tua tia.
Com o breve afastamento de Fernanda, resolvo me dirigir a seus familiares a respeito explicando as minhas intenções sobre o que faríamos e como deveríamos proceder. Obviamente que a minha sugestão de reproduzir a experiência das meninas daqui a alguns minutos pegou a todos de surpresa gerando um sentimento de medo e angústia que tomou conta do ambiente, nítido nos olhares apreensivos, na paralisia e no ensurdecedor silêncio de todos. E essa era a minha intenção.
- Bom pessoal. Eu entendo a surpresa de todos vocês sobre a minha sugestão. Mas para que se prossiga isso é obvio que preciso da autorização dos pais da menina para isso. Meu objetivo é encurtar um pouco o caminho, reproduzindo de certa modo o que aconteceu naquela noite procurando identificar os elementos que formaram a situação e causaram esse transtorno. Não precisamos fazer isso se não desejarem, e, nesse caso, posso indicar profissionais especializados da psicologia e psiquiatria que poderiam traçar um diagnóstico da Fernanda. Porém, posso lhes afirmar que um estrago mental na menina já foi feito e por algum motivo bastante forte, mas esse processo de diagnóstico poderia demorar muito tempo. Se fizermos esse trabalho hoje, eu não apenas na condição de sacerdote, mas na condição de estudioso da psicologia, poderia já lhes entregar alguns apontamentos a respeito que podem ajudar em agilizar num futuro tratamento psicoterápico para Fernanda. Aliás, o que vamos fazer não irá dispensar um futuro acompanhamento profissional da menina. E então? Topam?
- Padre, o que o Sr. espera encontrar na seção? Não precisamos dizer que estamos assustados com tudo isso. Tem alguma coisa sobrenatural? - Interpelou a mão Rosane.
- Vou ser sincero para vocês. Sei muito pouco senão pelo o que vocês me contaram ou pelo que acabamos de ouvir. Mas pelo que percebo, tanto eu quanto vocês, pais e tia, sabem muito pouco sobre o que se passou com a Fernanda. Eu prefiro não responder nada a respeito. Mas fiquem tranquilos, eu sei o que estou fazendo.
Enquanto ausente, continuamos a conversar a respeito de Fernanda. Procurei interrogar os pais e a tia Solange a respeito da menina buscando entender um pouco mais sobre sua personalidade buscando, assim, algum gatilho que pudesse ter sido acionado para algum tipo de distúrbio nela. Segundo seus familiares, Fernanda sempre foi uma menina socializável, sendo considerada popular por todos os seus amigos, tanto da escola quanto nos demais círculos de convivência, como primos, seu time de vôlei e entre os filhos dos amigos da família. Aliás, eram as meninas, Patrícia e Carina, filhas de amigos dos pais, as mais próximas. Contaram também que, talvez devido a sua popularidade especialmente pela beleza (ela era considerada a mais bonita dentre as meninas da escola e dos outros meios de convivência), Fernanda também era conhecida por seu ar de superioridade e arrogância, desdenhando algumas amizades e refutando o flerte de vários meninos. A respeito de namoros, seus pais foram categóricos em afirmar que Fernanda nunca tivera nenhum tipo de relacionamento tampouco namorado, o que de imediato estranhei, pois a descrição de sua personalidade contrastava com o de uma menina que pudesse ter algum impeditivo psicológico para isso como uma exacerbada timidez. Na verdade, Fernanda era uma "patricinha", popular entre as meninas mais bonitas, detestadas pelas meninas de beleza mais modesta e desejada pelos meninos. No entanto, mediante a afirmação firme dos pais sobre o desinteresse de Fernanda sobre paqueras, foi nítida a linguagem verbal da tia Solange, que baixara a cabeça durante a fala dos pais para logo após direcionar o olhar para o lado discretamente, como que, não apenas discordasse da afirmação, mas que sabia de mais algo antagônico àquela informação sobre a sobrinha. Coletei aquelas informações e as guardei sem alarde, pois tinha quase certeza que as usaria posteriormente e revelar minhas impressões sobre a vida cotidiana de Fernanda não seria uma boa ideia podendo causar mal estar entre seus pais e talvez algum tipo de atrito entre nós.
Passaram-se entorno de trinta minutos até o retorno de Fernanda. Ela tinha uma aparência mais tranquila esboçando um pequeno mas ainda tímido sorriso. Tanto, que teve ânimo para passar na sorveteira próxima e comprar um sorvete para amenizar o calor e saciar sua vontade de doce. Estando todos novamente reunidos, os indaguei novamente se todos estavam de acordo em realizar aquela experiência, recebendo mais uma vez uma resposta afirmativa.
- Bom pessoal. Vamos fazer o seguinte: são quase 18h. Vou dispensá-los para que fiquem mais a vontade se quiserem retornar à suas casas. Eu também gostaria de me refrescar um pouco com um banho e fazer um lanche. Marcamos para daqui a pouco e as 20h aguardo vocês. Ah, Solange, tu precisa estar junto.
Solange arregala os olhos, correspondendo a minha convocação, mesmo que com a voz levemente embargada e com uma carga de titubeação.
- Si... Sim. Eu estava disposta a acompanhar sim. Mas não sabia que eu seria tão importante!
- Sim, tu és. Até mesmo pelo teu relacionamento com a Fernanda.
Nesse momento, Rosane vira-se para a irmã com um certo ar de surpresa, e em tom de indagação fala:
- Como assim? Solange, não sabia que tu e a Fernanda conversavam. É isso que entendi agora?
- Sim, Rosane. Faz um bom tempo que nós trocamos mensagens e de vez em quando ela vai na lancheria conversar comigo.
- Nunca me passou pela cabeça isso. Meu Deus, como eu sou distraída! Puxa, eu não desaprovo isso. De modo algum. Mas não sabia. Também, tu nunca me falou nada!
- Já faz quase um ano que virei amiga da Fernanda. Ela conversa comigo sobre as brigas entre vocês e mais umas coisas de menina. Mas nada demais, senão eu teria te contado alguma coisa. Só que nossa conversas pararam, e foi logo depois que tudo isso começou a acontecer. Imaginei que não era nada até que tu veio me contar sobre isso. Aí eu tomei a decisão de ajudar, por isso procurei o Heleno. Eu precisava ajudar a Fernanda.
- Ai irmã! Ainda bem que te tenho no meu lado! - Rosane começa a chorar segurando a mão da irmã Solange.
- Heleno, como soube?
- Ah Solange,...Faz parte do jogo.
Durante esse diálogo entre sua mãe e tia, Fernanda emudece como se assentisse à pequena revelação apresentada. Ao contrário do que se pudesse parecer, o desfecho disso foi relativamente feliz, pois também foi nítida a sensação de conforto entre Fernanda e seus familiares, como se um pequeno e desnecessário segredo fosse revelado: o simples fato de Solange e Fernanda, além de tia e sobrinha, terem se tornado amigas. 
O intervalo de duas horas deu tempo para que eu fizesse um lanche, tomasse um banho e ainda pudesse tomar uma cervejinha para relaxar. Seria preciso, pois percebia que a próximas horas seriam bastante tensas. 
Ás 20h em ponto ouço a campainha da Casa Paroquial. Ao receber a família, convido-os para adentrarem novamente ao meu gabinete, porém dessa vez acomodando-se numa mesa retangular com seis cadeiras que as uso para algumas reuniões de trabalho. Orientei para que todos sentassem em lugares previamente designados por mim, onde Fernanda ficaria na cabeceira da mesa e eu sentado a sua direita, a sua esquerda sua mãe seu pai ao se sua mãe e Solange ao meu lado. Ao centro da mesa deixei o tabuleiro Ouija direcionado para Fernanda e de forma que seu ponteiro estivesse ao alcance de todos na mesa. 
- Bem pessoal, o que iremos fazer deverá ser feito conforme minhas orientações. Cada um de nós irá colocar a ponta dos dedos da mão direita sobre o ponteiro de forma com que a alguma entidade que deseje se manifestar possa faze-la através da movimentação do ponteiro em direção às palavras já impressas ou na composição delas através da indicação das letras no tabuleiro. Fernanda, vamos iniciar da mesma forma como tu e as meninas iniciaram, ok? Tu vais fazer essa mesma oração de invocação de espíritos que trouxe na caixa e serás o médium do jogo. Vai ser tu quem vai fazer as perguntas à entidade e mais ninguém. Só eu e Fernanda vamos falar durante a sessão. Eu não vou me dirigir ao espírito, somente a Fernanda.
Além dessas, passei algumas outras instruções aos presentes antes de iniciar a sessão, como: manter a concentração, evitar outros pensamentos e de forma alguma tirar a mão do ponteiro.
Ao dar o sinal de que podíamos começar, Fernanda pede que todos na mesa dessem as mãos e com o papel da oração aberto na mesa na base do tabuleiro, lê em voz alta, mesmo que gaguejando e com dificuldade de pronunciar as palavras em latim, a oração usada por ela e as meninas para invocação dos espíritos:

" Laus angelis caducis, qui amissas et inopes suscipiunt animas, quae adhuc non sunt obliti. eas ad nos expelle et dic nobis quod velimus"

Tal como foi feito na sessão com as meninas, Fernanda lê em voz alta oito vezes a oração. Ao fim da oitava vez, ela faz a pergunta em voz alta
- Tem alguém aí?
Nada acontece e após alguns minutos, Fernanda novamente repete a pergunta:
- Tem alguém aí?
Novamente nenhuma manifestação assentindo a pergunta. Um silêncio mórbido toma conta do gabinete, quebrado pelo sacolejar das cortinas em resistência ao vento que subitamente ganha força por entre a grande janela aberta. Esse barulho quebrou a concentração de todos quando imediatamente fiz a advertência:
- Cuidado! Não se descuidem em tirar a mão do ponteiro. - e todos retomam a concentração demonstrando nervosismo pelas suas respirações ofegantes. 
Então me dirijo a Fernanda:
- Fernanda, está sentido um pouco de calor e dor na base de suas costas?
- Sim!
- Isso é sinal de que já temos alguém aqui. E os demais, estão sentindo a um certo abafamento e dificuldade de respirar como se o ar ficasse mais quente de repente? 
E todos responderam:
- Sim!
- Certo. Prestem atenção. Apenas eu irei retirar a mão do ponteiro. Todos vocês permaneçam como estão. Minhas mãos serão recolhidas pois o espírito que estiver aqui deverá perceber que não tenho a intenção de participar da conversa com ele. Ele pode entender que eu possa ser uma ameaça a ele, então continuarei na mesa e continuarei a orientar a Fernanda, mas minhas mãos ficarão repousadas nas minhas pernas como sinal de respeito e resguardo. Fernanda, por favor, continue a chamar por alguém.
E por mais duas vezes, Fernanda faz o chamado sem obter resposta. Na sexta tentativa, o ponteiro se move pousando na palavra impressa: "Yes".
- Muito bem, ele está aqui! - anunciei - Fernanda, pergunte o qual é o nome dele.
Fernanda pergunta então qual o nome da entidade que se manifestou, mas não recebe resposta. eu insisto para que ela pergunte o nome dele, mas não há movimentação do ponteiro. Eu volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunte ele ele é homem ou mulher.
A entidade responde com o movimento do ponteiro pousando na letra "H".
- Fernanda, pergunte a idade dele.
A entidade novamente não responde.
- Fernanda, pergunte o que ele quer.
Nesse momento, o ponteiro se move para a letra "V" e depois para a letra "C".
-Fernanda, pergunte se vocês dois já se encontraram.
O ponteiro se move pousando na palavra impressa "Yes".
- Fernanda, pergunta por que ele te quer.
Fernanda faz a pergunta em voz alta. Imediatamente o ponteiro lentamente se move pousando nas letras impressas nos  tabuleiro que formam uma única palavra: "PQEUSEIQVCMEAMA".
- Fernanda, pergunta para ele por que ele não diz seu nome se ele te ama tanto.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e o ponteiro não se mexe. Então volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunta se em algum momento tu fez algum mal para ele.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e o ponteiro volta a se mexer pousando nas letras impressas no tabuleiro compondo a seguinte frase: "NEUTEFIZMAL". Nesse instante, a menina começa a chorar e todos os presentes se entreolham. Então indaguei Fernanda.
- Fernanda, ele chegou a te dizer essas coisas quando tu e tuas amigas jogaram?
- Não.
- Tu tem alguma ideia de quem poderia ser?
- Não.
Tem certeza?
- Sim.
- Entendi. Pergunta para ele como sabe que tu ainda ama ele se ele te fez mal.
Fernanda faz a pergunta em voz alta e logo após o ponteiro volta a se mexer pousando nas letras impressas que formam a frase: "PQTUNAOMEESQUECE".
Após isso, mesmo sem minha orientação, Fernanda responde à entidade quase que gritando:
- Mas eu não sei que tu é! Vai embora. Me deixa!
Fernanda começa a chorar baixinho murmurando que não aguenta mais aquilo pedindo para a entidade ira embora e deixá-la em paz. Eu volto a orientá-la.
- Calma Fernanda. Calma. Pergunta como ele te descrever como tu está vestida.
Ao fazer a pergunta, o ponteiro se mexe pelas letras impressas formando a seguinte palavra: "SHORTJEANSBLUSABRANCA", descrevendo as roupas que Fernanda estava usando.
- Fernanda. Agora tu vai ser firme com ele dizendo para ele ir embora e que ele não tem como te ter. Diz para ele que ele não faz mais parte desse mundo e que se ele te ama ele deve te deixar em paz. Diz para ele que foi um erro tu ter chamado ele.
Fernanda dá as ordens orientadas por mim à entidade em voz alta e firme. Por alguns minutos ela continua a se dirigir à entidade de forma imperativa usando argumentos dando a entender que não há como tê-la. Após suas palavras, o silêncio na sala volta a tomar conta.
- Fernanda, pergunta se ele está ainda aqui.
Fernanda segue minha orientação perguntando em voz alta quando o ponteiro volta a se mexer pousando na palavra impressa "Yes". Eu novamente a oriento:
- Fernanda, pergunta se ele quer algum tipo de perdão teu.
- Perdão? De que?
- Não sabemos. Ele está dizendo que te fez mal. Pergunta então se ele deseja isso.
-Fernanda faz a pergunta em voz alta que lhe orientei e o ponteiro se mexe pousando na palavra impressa "Yes". Eu lhe oriento.
- Diz pra ele que tu o perdoa.
Em voz alta, Fernanda fala: "eu te perdoo".
O ponteiro então se mexe por sobre as letras impressas formando a seguinte palavra: "OBG".
- Agora Fernanda. Diz novamente para ele ir embora.
Fernanda mais uma vez dá a ordem para que a entidade se vá. Logo após o ponteiro se mexe pousando na palavra impressa "No". Eu oriento a Fernanda para que pergunte a entidade por que ele não vai, se ela a perdoou e se ele realmente a ama, que ele lhe deixe em paz. Ela então, faz as indagações em voz alta, tal qual a orientei, obtendo uma resposta através do ponteiro se movendo pelas letras impressas compondo a seguinte palavra: "PQNAOCONSIGO".  
Eu volto a lhe orientar:
- Fernanda, diz para ele que tu pode ajuda-lo a ir embora, mas ele precisa dizer o seu nome.
Fernanda então em voz alta se dirige à entidade da forma como lhe orientei, obtendo a resposta dela através do tabuleiro através da seguinte palavra composta: "NHOJ".
Um sentimento interrogativo toma conta de todos, pois a palavra que seria o suposto nome da entidade, não fazia sentido algum aos presentes. O silêncio novamente toma conta da sala o que fez com que minha atenção se voltasse para Solange que mais uma vez se expressa inconscientemente através de sua linguagem corporal estendendo suas costas e procurando uma posição mais confortável em sua cadeira, como se tivesse captado alguma coisa que não quisera compartilhar mas que lhe incomodara um pouco. Eu, porém, já havia entendido e decifrado aquele pequeno anagrama.
- Fernanda, diz de forma firme: "Zozo eu sei que é você! Deixa ele em paz!"
Fernanda repetiu minhas palavras em voz alta. Mandei ela repetir, o que novamente fez:
- "Zozo eu sei que é você! Deixa ele em paz!"
- Fernanda, diz para o John que ele pode ir!
Fernanda arregala os olhos dirigindo seu olhar para mim para depois dirigir seu olhar ao ponteiro e em voz firme e alta diz: "John, vai embora!".
Alguns instantes se passaram sem nenhuma manifestação do ponteiro sobre o tabuleiro. Então, eu novamente oriento Fernanda sobre a comunicação da entidade:
- Fernanda, pergunta se ele ainda está aqui.
Fernanda faz novamente essa pergunta sem obter resposta vinda do tabuleiro. Por mais duas vezes orientei a menina a perguntar se a entidade ainda estava presente sem obter resposta alguma. Então eu disse:
- Ok Fernanda. Está com a oração que te dei para fazer na igreja?
- Sim. Está no meu bolso traseiro.
- Pegue-a, por favor. Pode tirar a mão do ponteiro. Todos vocês podem tirar as mãos.
Foi perceptível a sensação de alívio de todos ao retirarem suas mãos do ponteiro do tabuleiro, pois houve uma estafa não apenas mental mas física dos participantes da sessão. Todos passaram a massagear seus braços devido ao longo tempo de estiramento de seus membros. Naquele momento, mais de 1h30min se passariam desde o início da sessão.
- Fernanda, por favor, leia em voz alta, frase a frase, a oração que te dei e todos, por favor, repitam as frases ditadas por ela. Por favor, vamos nos dar as mãos. Vamos rezar um pouco.

"A Cruz Sagrada seja a minha luz, não seja o dragão o meu guia. Retira-te, satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mau o que tu me ofereces. Bebe tu mesmo os teus venenos! Rogai por nós abençoado São Bento, para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."

Ao fim, eu complemento a oração:

"São Bento, nosso Protetor contra a feitiçaria, fiel servo do nosso Deus Pai Todo-Poderoso e eterno aprendiz de Jesus Cristo e Mestre de seus irmãos nos abençoe contra todas as forças do mal. Amém."

- Por favor, voltemos a nos concentrar na sessão, mas desta vez não quero que pousem suas mãos no ponteiro, mas sim que se deem as mãos. Eu permanecerei na mesma posição, com as mãos sobre minhas pernas. Fernanda, pergunta se o John ainda está aqui.
Para a incredulidade de todos, Fernanda faz a pergunta em voz alta quando o ponteiro volta a se mexer pairando na palavra impressa do tabuleiro "Yes". Eu intercedo, procurando acalmar a todos:
- Ok, mantenhamos a calma. Fernanda, pergunta por que ele ainda não foi embora. O que ele ainda quer?
Fernanda segue minhas orientações e o ponteiro volta a se mexer por entre as letras do tabuleiro formando a seguinte palavra: "JOAO844". Novamente eu intercedo:
- É uma passagem da Bíblia, do Evangelho de João. Como estou com as mãos livres, vou me levantar e buscar a Bíblia. Ali na janela tem uma. A deixei para segurar a janela aberta.
Então me levanto e vou em direção ao parapeito da janela para tomar em mãos minha Bíblia. Eu retorno já folhando-a posicionando na página do Evangelho de João Capitulo 8 Versículo 44 deixando-a aberta diante de Fernanda dirigindo a ela a seguinte orientação e apontando com o dedo a passagem nas páginas:
- Fernanda, leia em voz alta, daqui até aqui.
Fernanda lê a seguinte passagem em voz alta: 

“Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira."

Após a leitura por Fernanda, me dirijo aos presentes:
- Fernanda, por favor, pergunta se ele ainda está aí.
Fernanda mais uma vez faz a mesma pergunta já repetida por várias vezes naquela sessão recebendo mais uma vez a resposta através do ponteiro do tabuleiro: "Yes". Eu volto a orienta-la:
- Fernanda, pergunta se ele te enxerga nesse momento.
Fernanda faz a pergunta obtendo resposta através do ponteiro do tabuleiro posicionado na palavra impressa "Yes". Eu volto a lhe orientar:
- Manda ele dizer como.
O ponteiro então se mexe pelas letras impressas do tabuleiro compondo a seguinte frase: "POROUTROSOLHOS".
Eu olho para a janela e todos me acompanham. No parapeito está posicionado um gato preto olhando para todos os presentes. Então eu oriento a todos:
- Calma, fechem todos os olhos que farei uma oração silenciosa.
Novamente oriento Fernanda a perguntar se a entidade ainda estava entre nós, o que foi respondido com o ponteiro pairando na palavra impressa "Yes". Porém, o ponteiro não ficou parado nesta palavra, dirigindo-se para outras letras formando a seguinte palavra: "TIMOTEO25". Tomei novamente a Bíblia nas mãos folheando-a na procura da passagem em Timoteo 2:5 e logo posicionando-a em frente a Fernanda para que ela lesse aquele trecho do texto em voz alta, o que fez. O texto dizia:

"Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem"

Peço a Fernanda que volte a fechar seus olhos, assim como os demais. Oriento a menina para que novamente pergunte se a entidade está presente. O ponteiro se mexe novamente pairando na palavra impressa do tabuleiro: "Goodbye". 
Peço novamente para Fernanda perguntar por mais duas vezes se a entidade ainda estava presente, sem ouvir resposta alguma vinda do ponteiro do tabuleiro Ouija. Então eu anuncio a todos os presentes.
- Acabou!
Embora com seus rostos ainda estampados de várias dúvidas sobre os acontecimentos ocorridos naquela mesa, Fernanda e seus familiares compreenderam chegara o final de seu flagelo. Ela então ela cai num choro copioso que remetia num alivio mental e espiritual sendo imediatamente abraçada por sua mãe e sua tia. Seu pai Renato joga seu corpo contra a guarda de sua cadeira respirando profundamente demonstrando uma tentativa de relaxar depois de semanas angustiado pela situação da filha. 
Após alguns minutos com todos em silêncio, senão pelos soluços de Fernanda, convidei a todos para que deixassem aquela mesa e se acomodassem novamente no sofá e poltronas dispostos entre aquela mesa e minha escrivaninha.
"Vamos conversar", anunciei.
- Pois bem meu amigos, chegou a hora de todos nós entendermos o que realmente ocorreu aqui. Talvez todos vocês pudessem ter um único pensamento a meu respeito e à proposta que fiz a todos para tentar ajudar a Fernanda. Eu sempre me apresento como padre, um sacerdote católico devoto à missão de evangelizar e promover a fé entre as pessoas através da compreensão da palavra de Deus e de Jesus, mas todos também sabem das minhas demais formações acadêmicas nos campos da psicologia e psicanálise porque encontrei em muitos casos como esse respostas mais mundanas do que do além. A bem da verdade, e por várias vezes, as coisas que vi até hoje foram simplesmente explicadas através da compreensão da mente humana e resolução dos pequenos enigmas que ela constrói de modo invisível e silencioso. Para vocês terem uma ideia, presenciei a solução de vários casos de pessoas com distúrbios atribuídos a "abduções alienígenas", mas que na verdade eram casos de abusos de familiares mascarados pela repressão psicológica imposta a elas ou meramente autossugestão delas próprias procurando somente "chamar a atenção" das pessoas. Esses casos foram resolvidos através da aplicação da hipnose. Poderíamos ter usado hipnose com a Fernanda, se não fosse pelo fato de ter visto logo de cara que a coisa era um pouco mais séria.
O que eu estava tentando explicar à todo ali era o fato de que, chega determinado ponto, em algumas situações, que realmente devemos considerar que nem sempre conseguimos explicar a causa de uma crise com argumentos baseados na ciência, passando a considerar o emprego dos milenares conhecimentos construídos e adquiridos pela Igreja Católica, apesar destas situações serem cada vez menos aceitas no meio do catolicismo. No entanto, procura-se, antes disso, esgotar todas as possibilidades científicas para depois passarmos a encarar a situação como algo mais extremo. Por outro lado, pode-se também encarar os fatos como algumas pessoas querem que se encare: através das respostas simples e fáceis, atribuindo seus problemas à forças e entidades do além, mas sem deixar de procurar identificar indícios que venham a explicar plausivelmente as circunstâncias dos fatos.
Expliquei, portanto, que em terminado momento decidi abordar a situação de Fernanda como sobrenatural, passando a considerar que, de fato, ela tinha feito contato de modo ingênuo com algum tipo de espírito inquieto, inseguro e desamparado o qual ainda não tinha encontrado paz após sua morte. Não se tratava de uma possessão, por isso descartei o processo de exorcismo, mas sim de exortação da entidade, pois a situação demonstrava que o espírito ainda não havia entendido sua atual situação.
- Fernanda, o que ocorreu foi que, a "brincadeira" tua com tuas amigas de tentarem entrar em contato com algum espírito provocou uma situação que vocês não tinham condições de controlar. Quando se tenta esse tipo de contato, na maioria das vezes,  muitas outras entidades maldosas se aproveitam da ingenuidade e inocência, tanto da pessoa que está tentando fazer contato quanto do espírito que quer se comunicar. Os espíritos que tentam se comunicar são entidades que passaram para o plano dos mortos de uma maneira abrupta, geralmente através de mortes violentas como assassinato, acidentes ou mesmo suicídio. São almas perdidas que ainda não perceberam que não mais estão entre os vivos ou simplesmente não aceitam isso. Há outros casos, no entanto, que a morte ainda não foi aceita pelo espírito por estar carregada de ressentimentos, frustrações e sentimentos de vingança para com alguém que fez parte de sua história, não sendo necessariamente a pessoa que tenta o contato. São espíritos sem paz, por isso que há alguma facilidade para se estabelecer uma certa comunicação com eles.
Expus mais aspectos sobre o assunto explicando que, o contato com esses espíritos pode desencadear inúmeros perigos, pois eles usam àqueles que tentam contacta-los para tentar "resolver suas pendências" de alguma forma ainda no mundo dos vivos. E tudo começa com um primeiro contato que pode ser feito de várias formas, como nesse jogo do tabuleiro. Para a entidade, isso não é um simples jogo ou brincadeira e pode ser a oportunidade para tentar permanecer entre os vivos de uma forma arbitrária usando aqueles que tentaram contato consigo. A partir daí, inicia-se o processo do que é comumente chamado de "assombração", quando o espírito começa a perturbar a pessoa que tentou contato fazendo-a sentir sua pesada presença. A coisa começa a se complicar quando passam a surgir súbitas aparições da entidade para essas pessoas para posteriormente começarem a surgir sinais mais contundentes, como de agressões físicas, dentre os quais machucados, arranhões e hematomas. Tudo isso são sinais de que a entidade já estaria passando a se alimentar e drenar as forças de sua vítima para que finalmente possa apossar-se de seu corpo físico podendo leva-la a morte definitiva. E por mais que as pessoas tentem a não mais continuar com esse tipo de contato com a entidade uma vez feito, torna-se difícil desfazer o vínculo formado pois uma espécie de porta entre o nosso mundo e o mundo dos mortos teria sido perigosamente aberta. Provavelmente, foi isso que aconteceu.
Continuei a explicação dizendo que, especificamente sobre o método de comunicação do jogo do tabuleiro, é muito comum que um demônio chamado Zozo se manifeste. Ao que se sabe, os estudos e relatos existentes sobre ocultismo e necromancia descrevem Zozo como um dos vários anjos caídos banidos do céu há eras por Deus. Expliquei aos presentes que tal entidade gosta de enganar e jogar com as pessoas que possuem certa facilidade e capacidade para se comunicar com outros espíritos, os médiuns. Nesse caso, Fernanda não apenas tinha se proposto a ser a médium no jogo do tabuleiro como, sem mesmo saber, teria sua inata mediunidade especialmente desenvolvida. Seria, portanto, uma vítima perfeita para o demônio Zozo, que adora ver suas vítimas se contorcendo de confusão tendo mais prazer quando um humano acredita em suas mentiras. Ele é um enganador, o que não é surpreendente, pois o Diabo é reivindicado como o "Pai de Todas as Mentiras", sendo Zozo um poderoso Diabo no Inferno, sob Satanás.
Para mim, foi fácil constatar a atuação de Zozo no contexto dos distúrbios de Fernanda. A primeira constatação foi o aspecto facial da menina (pequenos hematomas na face, olheiras e uma palidez cadavérica) que já indicavam isso. Outras constatações foram: a resistência da entidade em revelar o seu nome, como se quisesse provocar as pessoas que estivera açoitando, bem como as respostas mnemônicas e abreviadas, como se estivesse digitando uma mensagem por aplicativo de celular de troca de informações, tentando demonstrar ser jovial, se passando por, ou se utilizando de um, espírito de um garoto. Apresentar-se escrevendo seu nome de trás para frente também foi uma constatação da presença de Zozo, sendo ele reconhecidamente um demônio brincalhão. 
O modo, no entanto, que se combate e se espanta Zozo é através do seu desmascaramento. E foi assim que fizemos durante a sessão quando rezamos todos juntos a oração de São Bento, uma arma poderosa contra a feitiçaria e ação de entidades demoníacas. A invocação de São Bento funcionou como um soco no queixo de Zozo, que aturdido, deixou com que o espírito que ele estava manipulando pudesse por si só se manifestar. Sim, Zozo estava brincando, tanto com Fernanda quanto com outro espírito que tentava, de fato, entrar em contato com a menina. Esse marionete de Zozo seria o tal John. E John, na primeira oportunidade que teve, revelara a presença demoníaca quando indica a todos os presentes através do ponteiro do tabuleiro a pista que nos faltava, nos orientando a ler a passagem bíblica João 8:44. O mentiroso foi descoberto, fazendo assim com que deixasse a todos em paz. 
Tudo se explicara, exceto por uma coisa:
- Fernanda, agora por favor, nos responda: quem é John?
- Não conheço nenhum John, padre.
- Não faz ideia de quem seja? Um ex-namorado, um colega, algum conhecido?
- Nunca tive namorados, padre. Até hoje, eu admito, eu só gostei de um menino e nome dele era Guilherme. Ele foi embora para os EUA há uns oito meses atrás.
Essa informação caiu como uma confissão junto aos pais de Fernanda. Sua tia Solange voltava seu olhar para ela de uma forma apreensiva, como na expectativa de que Fernanda pudesse falar mais alguma coisa, como um segredo. Os pais de Fernanda prenderam seus olhares para Fernanda não escondendo a surpresa, talvez não por recém saberem do interesse de Fernanda por um menino, mas por saberem quem era. 
Seu pai, Renato, se dirige a Fernanda:
- Guilherme, o filho do Alex?
- Sim, pai. Ele.
- Ah meu Deus!
A mãe de Fernanda, subitamente se manifesta, tendo um lampejo de memória:
- Aquele menino, Renato?
- Sim, Rosane. O nome dele era João Guilherme, mas ele só se apresentava como Guilherme, pois não gostava de seu primeiro nome. Ele morreu a seis meses atrás num acidente de carro nos EUA. Quando ficamos sabendo, acabamos por não mencionar o ocorrido a ninguém, pois nos parecia irrelevante. Nunca passou por nossas cabeças a ideia de que Fernanda pudesse ser apaixonada por esse menino. O Alex foi um colega meu de trabalho que acabou sendo transferido para os EUA.
Então, eu espalmei minhas mãos e pronunciei:
- John!
Como que num estado de choque, Fernanda fica paralisada com seus olhos arregalados, respiração ofegante e boca entreaberta, como que quisesse chorar e gritar ao mesmo tempo, mas sem forças para tal.
- Pois é, tudo agora faz sentido - eu disse.
Ainda relembrei a todos sobre a orientação dada pelo então revelado espírito de João Guilherme, já livre da influência de Zozo, para que fosse lido o trecho bíblico em Timoteo 2:5 que tentava explicar a Fernanda que é errado procurar os mortos, para o que quer que fosse.
- Bem, agora que estamos todos mais calmos, e já que expliquei o ocorrido a todos, devo dizer, Fernanda, que tudo isso deve de servir como um grande aprendizado, não apenas para ti mas para todos vocês. Procurar invocar os mortos é pecado e perigoso e isso nunca deve se repetir, pois as consequências poderiam ser terríveis. Por mais que a maioria do mal esteja entre os vivos, existem muitas coisas entre o Céu e a Terra que não compreendemos direito, Ok?
Fernanda balança a cabeça positivamente entendendo a lição para que nunca mais tentasse esse tipo de coisa. 
Novamente, faço uso da palavra:
- Bem, agora quero conversar apenas com os senhores pais. Solange, peço que tu e a Fernanda saiam um pouco da sala. Estejam livres para tomar um refrigerante aqui no bar da esquina. Por favor, aproveita e me traz duas latas de cerveja, porque mais tarde vou precisar!
Sem mais a presença de Fernanda e Solange, me levanto pedindo a todos um minuto para que eu fizesse algumas coisas:
- Deixa eu fechar essa janela. Tá na hora de ligar o ar condicionado e desligar essa estufa eu já não aguentava mais esse sufoco!
Os pais de Fernanda entreolharam se incrédulos, sem entender aquilo. Afinal, o ar condicionado não estava quebrado? 
Após ligar o ar condicionado e desligar o aquecedor que estava atrás de minha escrivaninha, volto a tomar meu assento na poltrona central com um pequeno sorriso, dizendo:
- Bem senhores pais, tenho uma coisa para lhes dizer: não havia espírito algum.
- Como assim padre? - esbraveja Renato.
- Calma Renato, eu vou explicar tudo agora. A sessão que tivemos foi inteiramente provocada por mim, mas de acordo com a sugestão inconsciente que Fernanda estava passando. Eu planejei com alguns detalhes na tentativa de entender o que realmente estava se passando com a menina e descobri. Vamos lá, vou repetir o que disse por várias vezes: sou um padre. A minha fé refuta tudo isso. Todos esses princípios que havia exposto fazem parte de diversas doutrinas que não chegam a ser propriamente uma religião, como o espiritismo. A comunicação com os mortos é peça central na doutrina espírita mas não cabe no catolicismo. Preferimos sempre encontrar as respostas menos obvias e mais complexas, porém mais verdadeiras. Não precisamos ver nada para crermos e isso nos traz sempre um sentimento de seriedade e ao mesmo tempo ojeriza, pois é muito fácil pra as pessoas encontrar algum conforto diante da perda de alguma pessoa querida tentando comunicar-se com ela após sua morte. Definitivamente não foi isso o que ocorreu e vou lhes mostrar.
Era evidente que, tanto Renato quanto Rosane estavam com muito mais dúvidas agora do que em qualquer momento. Rosane inicia um chuva de perguntas, uma atrás da outra, sobre todos os indícios que foram apresentados naquela sessão, os quais passei a explicar um por um.
- Veja bem: em primeiro lugar solicitei que Fernanda ficasse sentada naquela cadeira e logo lhe perguntei se ela sentia algum tipo de desconforto na base de suas costas  o que ela assentiu. Na verdade, se for olhar de perto, o assento da cadeira tem uma levíssima inclinação, bastando ficar sentada alguns minutos para qualquer um comece a sentir dores lombares. Depois disso, analisei o material que ela trouxe naquela caixa, principalmente a oração que fez para invocar espíritos usada para iniciar o jogo, o que na verdade é uma tradução grosseira em latim feita por aplicativos on-line encontrados na internet. Bastaria apenas cinco minutos de pesquisa no Google para que se encontrasse vários blogs escritos por jovens sobre instruções de como jogar o Ouija, inclusive preces e orações para invocação dos mortos. Nesse caso, quem tem um pouco de conhecimento sobre latim percebe a simploriedade daquele texto. Vocês também devem estar se perguntando como explicar a movimentação do ponteiro do tabuleiro e isso é simples, cuja resposta é conhecidíssima na psicanálise: "efeito ideomotor".   
Explicando melhor, o efeito ideomotor refere-se a pessoas fazendo movimentos ou agindo sem deliberação consciente. Embora alguns exemplos de efeitos ideomotores sejam bastante diretos, outros levantam questões substanciais sobre o uso adequado de ferramentas preditivas e até sobre a interação de seres humanos com elementos considerados à margem do conhecimento científico. O tabuleiro Ouija é um desses casos. Muitos cientistas sugeriram que essas atividades são baseadas em um efeito ideomotor, e não em outras causas teóricas comumente atribuídas ao sobrenatural. Uma das formas de se contestar as psicografias promovidas por médiuns espíritas pode ser encontrada através dos estudos sobre o efeito ideomotor. 
Sendo assim, todos os movimentos feitos pelo ponteiro nada mais foi do que a própria autossugestão inconsciente de Fernanda numa tentativa suposta de estabelecer contato com uma entidade do além. O que também deixei claro durante a explicação é que eu tinha 100% de certeza de que Fernanda procurou, provavelmente de forma inconsciente, fazer contato com sua paixão adolescente. 
- Senhores, posso garantir que Fernanda de alguma forma ficou sabendo da morte daquele menino, muito provavelmente através de amigos em comum da escola ou de outros círculos de convivência. Arrisco a dizer também que essa notícia foi um choque para ela, a ponto de promover essa blindagem psíquica fazendo-a praticamente esquecer, ou tirar de sua consciência, algumas informações que ela gostaria que fossem apagadas.
Solange novamente me questiona na tentativa de entender os eventos que presenciou:
- Mas padre, como o senhor explica o momento em que o ponteiro se mexe sozinho, sem nossas mãos?
- Por causa disso aqui.
Mostrei a ela um artefato que havia confeccionado. Era uma velha antena de rádio de mais ou menos um metro e meio tendo na ponta afixado um grande imã.
- Rosane, quando todos tiramos as mãos do ponteiro, tomei o cuidado para que ninguém visse eu manipulando isso. Eu retirei esse imã de um alto-falante velho, e o soldei na ponta dessa antena de rádio velha. Eu encosto o imã bem debaixo do tampão da mesa fazendo com que o ponteiro se mexesse sozinho. Se virar o ponteiro do jogo e olhar abaixo dele, verá que colei uma pequena placa de metal sem vocês perceberem. Isso é uma velha brincadeira de criança que fazíamos para assustar nossos amigos. Funcionou hoje mais uma vez! Eu fiz isso para que pudesse montar algumas mensagens que de fato gostaria de passar a Fernanda, principalmente a ideia de que não se deve mexer com os mortos. Afinal, a autossugestão de Fernanda não iria mandar ela ler pedaços da Bíblia.
- Mas padre, e o gato?
- Ah, o Espirro!
- Espirro?
- Sim, meu amiguinho Espirro, meu gato de estimação. Esse sem-vergonha anda sempre pela vizinhança e só volta pra comer e dormir. Ele adora subir e ficar me olhando naquele parapeito da janela. Foi por isso que a abri, para que ele viesse e ficasse sentadinho ali, como de costume, por isso tive que dizer que o ar-condicionado estava quebrado. Ele adora rodelas de salaminho, por isso que é fácil chamar ele. Quando fui pegar a Bíblia na janela, não a deixei ali para ela aberta, mas para que eu pudesse colocar duas fatias de salame ali e chamar o Espirro. O resto, vocês devem já ter deduzido: foi escrito por mim durante o jogo manipulando o ponteiro com o imã. E  para isso ninguém podia estar com as mãos nele.
Os pais de Fernanda franziam a testa e não paravam de me olhar com uma incredulidade sem precedentes. Além de acalmá-los ainda disse que teria mais comentários a fazer sobre Fernanda.
- Senhores, vocês perceberam que as mensagens foram todas abreviadas, como se tivessem conversando por Whatsapp. A Fernanda se comunica com vocês dessa forma pelo celular?
- Sim, padre. A Rosane, por ser professora, fica furiosa com ela por causa dessa preguiça em escrever as coisas de forma correta - Ponderou Renato.
- Então, uma forma bastante adolescente de se comunicar. Agora, Senhores, vem a parte mais séria e importante da coisa. Me respondam diretamente: vocês garantem que a Fernanda nunca se relacionou com ninguém? Vou ser mais incisivo: sabem me dizer se a Fernanda ainda é virgem?
- Como é que é Padre - diz Renato, num aspecto de surpresa e incômodo com a pergunta.
- Bom, vou ser direto. Eu acho que, sinceramente, Fernanda não era só apaixonada por esse menino Guilherme. Eu já vi casos do tipo, de meninas transtornadas com uma iniciação sexual forçada e traumatizante com alguém que desejavam muito mas que lhe no fim lhe decepcionaram. Não são raros os casos de abusos por meninos de meninas durante a adolescência. Eu creio, senhores pais, que Fernanda passou por alguma experiência traumatizante com esse menino a ponto de frustra-la e marcar sua psiquê profundamente. Pensem comigo: ter uma paixão por alguém e se decepcionar com o modo violento como foi tomada por essa pessoa, especialmente na inocente fase da adolescência. Eu acho que, depois dessa experiência, Fernanda não sabia como agir, especialmente para uma menina como ela: bonita, desejada por muitos e sempre admirada por todos em sua volta. Isso deve ter gerado um grande desespero nela, pois também sabia que não teria abertura para conversar sobre esse tipo de assunto com ninguém, especialmente vocês pais. Desconfio também que isso ocorreu alguns dias antes do rapaz ter ido embora. Sua partida também contribuiu para isso, pois ficou uma situação aberta e não resolvida. Com toda a certeza Fernanda nutria uma expectativa sobre o rapaz, mesmo com ele a distância, como que esperando um pedido de desculpas dele pelo mal que nela havia feito,  talvez para atenuar sua decepção procurando justificar a paixão que ainda restava pelo rapaz, o que não ocorreu. Imaginem agora o desespero dessa menina quando soube, de alguma forma, sobre sua morte. Ela não tinha com quem desabafar, e nem queria. Uma mistura de medo e orgulho que não a deixava tocar no assunto e isso se internalizou e a traumatizou tanto, a ponto de possivelmente ter bloqueando certas lembranças sobre esse menino. Eu acredito que, seu interesse pelo jogo do tabuleiro tem a ver com uma tentativa desesperada da Fernanda de se comunicar com alguém que gostou tanto, mas que lhe machucou profundamente para tentar dar um ponto final. Posso garantir que esse menina ainda sofre muito com essa mistura de sentimentos sobre esse jovem.
Mais uma vez um silêncio ensurdecedor toma conta do meu gabinete, quebra pelo choro desesperado de Renato.
- Meu Deus, meu Deus. Nossa filhinha! Rosane, como pudemos ser tão cegos assim? Meu Deus, meu Deus.
- Senhores - concluo - sugiro então que procurem definitivamente auxilio profissional. eu mesmo posso indicar uma psicóloga colega minha de pesquisas que poderá auxiliar todos vocês. Esse trabalho não deve ser apenas com a menina mas com todos os familiares. Mas antes, sugiro que conversem com a Solange, pois ela deve saber de alguma coisa, provavelmente  não todos os detalhes, pois esse tipo de trauma impede até mesmo as tentativas mais dolorosas das pessoas de desabafarem.
Para finalizar e não deixar nenhuma dúvida a respeito da sanidade do processo que conduzi, confessei a todos que, a menção do tal demônio Zozo também foi trabalho meu com o objetivo de deixar toda a sessão verossímil aos olhos daquela família.
- Gente, nos mesmos blogs da internet que a Fernanda pesquisou, é muito fácil encontrar a menção do demônio Zozo quando se joga o Ouija, inclusive com relatos supostamente verdadeiros sobre a manifestação dele durante esses jogos. Pura lenda urbana, fiquem tranquilos.
Eu me despeço de todos coberto de agradecimento por parte dos pais de Fernanda. A menina e suas tias já estavam de volta na antessala da casa paroquial. Ao abrirmos a porta do meu gabinete, Renato salta a frente e abraça efusivamente sua filha seguido por sua esposa Rosane. Antes de partirem, porém, dou a todos uma benção familiar especial.
- Agora vão em paz e Solange, me passa aqui essas latas de cerveja!
Após todos se despedirem e tomarem rumo a seus lares, me sinto a vontade para abrir minha camisa, ligar minha caixinha  de som para curtir suavemente  "For the love of God" do Steve Vai, minha terapia favorita de relaxamento. 
E mais uma vez me deparo nas reflexões da complexidade do ser humano e de sua relação com as coisas que ele não entende. E nunca entenderá.
Cada vez mais a ciência toma conta de nossas mentes e espíritos trazendo luz ou mesmo trevas para as perguntas que sempre fizemos sobre nossa existência e toda a dinâmica que nos envolve como seres humanos. Luz, porque a compreensão das coisas sob o método científico nos traz possibilidades reais da solução de muitos dos nossos problemas antes apenas deixados para que fossem resolvidos por si só e aos olhos do divino. Trevas, porque cerceia de vez a esperança das pessoas minando a fé daqueles que apenas querem crer, assim como aniquila todo e qualquer romantismo sobre as narrativas fantasiosas cuja única explicação não poderia ser encontrada em planos mundanos. No entanto, como agir quando ciência e fé cada vez mais se aproximam, ou quando as respostas derradeiras esbarram em paredes inexpugnáveis onde o método científico se dissipa restando apenas milenares anos de observação e relato? É por conta de reflexões como essa que um padre como eu pode sentir-se a vontade pra citar algumas palavras do renomado astrônomo Carl Sagan, um homem da ciência por excelência que não era religioso mas também nunca admitiu seu ateísmo: "Ausência de evidência não é evidência de ausência.". 
Alguém parou para pensar que os conhecimentos que temos sobre nossa existência se cruzam com a ciência e a filosofia, cada qual podendo ser escrito em diversos formatos teosóficos que polvilham as entrelinhas de incontáveis teologias por todo o nosso mundo? E, sendo assim, surge a difícil e complexa necessidade de explicar para aquelas pessoas simples as intrincadas relações entre essas diversas correntes de conhecimento sem correr o risco de confundi-las e iludi-las sob a tentação delas agarrarem-se posteriormente às fanfarras das pseudociências. Estas, oriundas da carência de sólidos fundamentos científicos, charlatanismo e vazios mitológicos que buscam muitas vezes provar de maneira doentia embarcadas em fanatismos apenas alguns simples pontos de vista apresentados sem a resposta para um todo. 
Pois então! Nem tudo conseguimos explicar à luz da ciência. O fato é que somos humanos, suscetíveis a exageros, juízos equivocados e muitas outras falhas. É por isso que nem tudo deve ser exposto como é, pois a humanidade de um modo geral não esta apta para tal. Nem mesmo àqueles que se julgam iluminados detentores do saber, uma presunção terrível para uma jovem espécie como a nossa nesse vasto universo.
Escorado no marco da porta encarando aquele tabuleiro sobre a mesa deixado por aquela família e, entre um gole e outro de cerveja bem gelada, falo em voz alta:
- Pois bem amigo, está na hora de tu descansar. Por favor, essa menina já sofreu o suficiente por tua causa, agora deixa ela. Tu também já sabes qual é o teu lugar, vai em paz e não dá mais ouvido praquele mentiroso.  Boa noite, João Guilherme.
O ponteiro do tabuleiro se move e paira na palavra impressa do tabuleiro "goodbye".